Arras por Foro de Espanha/III
O sol, que havia mais de meia hora subíra do oriente cingido da sua aureola de vermelhidão, no meio da atmosphera turva e cinzenta de um dia dos fins de agosto, dava de chapa no rocío ou praça onde avultava o mosteiro de S. Domingos, rodeado de hortas e pomares, que verdejavam pelo valle da Mouraria ao oriente, e pelo de Valverde ao norte. Já muitos bésteiros e peões armados de ascumas se derramavam ao longo da parede dos paços de Lançarote Peçanha fronteiros ao mosteiro, descendo uns por entre as vinhas d’Almafalla, [1] outros do arrabalde da Pedreira, ou bairro do almirante, [2] outros da banda da alcaçova, outros, emfim, desembocando das ruas estreitas e irregulares que íam dar á opulenta e celebre rua-nova. [3] Homens e mulheres apinhavam-se aos dez e aos doze no meio da praça e ás bocas das ruas; falavam, meneavam-se, riam, cbamavam-se uns aos outros. Ás vezes aquella mó de gente, cujo vulto engrossava de minuto para minuto, agitava-se como a superficie de um pego passando o tufão. Incerta, vacillante, informe, subitamente se configurava, alinhava-se, e semelhante a triangulo enorme, a quadrella gigante desfechada de trom monstruoso, vibrava-se contra a vasta alpendrada do mosteiro, cujas portas ainda estavam fechadas. Ahi hesitava, ondeava e retrahia-se, como resultaria a folha cortadora de uma acha d’armas quando não podesse romper as portas chapeadas de forte castello. Então aquella multidão tomava a fórma de meia lua, cujas pontas se encurvavam pelos lados de Valverde e da Mouraria, e vinham topar uma com outra por baixo do bairro ladeirento da Pedreira, d’onde, confundindo-se e irradiandose de novo, se espalhavam pela vastidão do terreiro. O povo, que dorme ás vezes por seculos, fòra accommettido d’uma das suas raras insomnias, e vivia essa possante vida da praça publica, em que de ordinario é ridiculo e feroz; mas em que não raro é sublime e terrivel.
Era a manhan immediata á noite em que occorreram os successos narrados antecedentemente: o povo preparava-se para uma lucta moral com o seu rei, mas não se descuidára de vir prestes para uma lucta physica, se D. Fernando quizesse appellar para esse ultimo argumento. Era a primeira vez neste reinado que a arraya-miuda dava mostras da sua força e reivindicava o direito de dizer armada—não quero!—O elemento democratico erguia-se para influir activamente na monarchia; enxertava-se nella como principio politico a par da aristocracia, que com a manopla de ferro arrojava a plebe contra o throno, sem pensar que brevemente este, conhecendo assim a força popular, se valeria della para esmagar aquelles que ora sopravam os animos á revolta, e davam ao vulgo uma nova existencia.
A hora aprazada para a vinda d’elrei ainda não havia batido; mas o povo, orgulhoso da importancia que subitamente se lhe dera, embevecido na idéa de que obrigaria elrei a quebrar os laços adulterinos que o uniam a Leonor Telles, não media o tempo pelo curso do sol, mas pelo fervor da sua impaciencia. Duas vezes se espalhára a voz de que D. Fernando chegára, e duas vezes o povo corrêra para o alpendre do mosteiro. As portas da igreja estavam, porém, fechadas, bem como a portaria e as estreitas e agudas frestas do mosteiro gothico, que, formado apenas de um pavimento terreo e humilde, contrastava com a magnificencia do templo, em cujas portadas profundas, sobre os columnellos ponteagudos que sustinham os fechos e chaves da abobada, os animaes monstruosos e hybridos, os centauros, os satyros e os demonios, avultados na pedra dos capiteis por entre as folhagens de carvalho e de lodão, pareciam, com as visagens truanescas que nas faces mortas lhes imprimíra o esculptor, escarnecerem da colera popular, que, lenta como os éstos do oceano, começava a crescer e a trasbordar. Apenas lá dentro se ouviam de vez em quando as harmonias saudosas do orgão e do cantochão monotono dos frades, que offereciam a Deus as preces matutinas. Era então que o povo escutava: e retrahia-se arrastado pelas blasphemias e pragas que saíam de mil bôcas, e que eram repellidas do sanctuario pelo sussurro dos canticos que reboavam dentro da igreja, e que transsudavam por todos os poros do gigante de pedra um murmurio de paz, de resignação e de confiança em Deus.
O povo, porém, era como os homens robustos do Genesis: era impio, porque era robusto.
O dia crescia, e crescia com elle a desconfiança. As noticias corriam encontradas: ora se dizia que elrei cedêra aos desejos dos seus vassallos e dos peões, e que viria annuncíar ao povo a sua separação de Leonor Telles; ora pelo contrario se asseverava que elle era firme em sustentar a resolução contraria. Havia até quem asseverasse que na alcaçova e no terreiro de S. Martínho se começavam a ajunctar homens d’armas e bésteiros. A colera popular crescia, porque a atiçava já o temor.
No meio de uma pilha de galeotes, carniceiros, pescadores, moleiros, lagareiros e alfagemes, dous homens altercavam violentamente: eram Ayras Gil e Fr. Roy: objecto da disputa Fernão Vasques; arguente o petintal; defendente o beguino.
“Que não vira, vos digo eu:—gritava Ayras Gil.—Disse-m’o Garciodonez, o mercador de pannos, que mora ao cabo da rua-nova, aos açougues, defronte das taracenas d’elrei.”
“Mentiu pela gorja como um perro judeu:— replicou Fr. Roy—Não era Fernão Vasques homem que faltasse a este auto, tendo-o a arraya-miuda elegido por seu propoedor.”
“Medo ou dobras do paço podem tapar a boca aos mais ousados, e faze-los dormir até deshoras—retrucou o petintal.
“Que fazem falar as dobras do paço, sei eu:—tornou o beguino com riso sardonico, lembrando-se do que nessa noite passára:—medo sabeis vós que faz fugir: inveja sabemos nós todos que faz imaginar...”
“Descaro e gargantoice que faz mendigar:—interrompeu Ayras Gil, vermelho de colera, cerrando os punhos, e descahindo para o ichacorvos, como galé que vae afferrar outra em combate naval.
“Excommunicabo vos”—murmurou Fr. Roy, fazendo-se prestes para resistir ao abalroar do petintal.
E o vulgacho que estava de roda ria e batia as palmas.
N’isto os gritos de alcacer! alcacer! reboaram para outro lado da praça: o povo correu para lá. Os dous campeadores voltaram-se: era o alfaiate.
Sem dizer palavra, o beguino olhou com gesto de profundo despreso para Ayras Gil; e tomando uma postura entre heroica e de inspirado, estendeu o braço e o index para o logar onde passava Fernão Vasques. Depois partiu com a turbamulta que o rodeava, em quanto o petintal o seguia de longe, lento e cabisbaixo.
O alfaiate, cercado de outros cabeças da revolta da vespera, encaminhou-se para a alpendrada de S. Domingos. Trazia vestida uma sáia [4] de valencina reforçada, calças de bifa, çapatos de pelle de gamo, chapeirão de ingres com fita de momperle, e cincta de couro, tudo escuro ao modo popular. Com passos firmes subiu os degraus do alpendre. D’alli, em pé, com os braços cruzados, correu com os olhos a praça, onde entre o povo apinhado se fizera repentino silencio. Depois, tirando o chapeirão, cortejou a turbamulta para um e outro lado; os seus gestos e ademanes eram já os de um tribuno.
“Alcacer, alcacer pela arraya-miuda! Alcacer por elrei D. Fernando de Portugal, se desfizer nosso torto e sua vilta, senão!...”
Esta exclamação d’um alentado alfageme que estava pegado com a balaustrada do alpendre, foi repetido em grìta confusa por milhares de bôcas.
De repente da banda da rua de Gileanes sentiu-se um tropear de cavalgaduras, que pareciam correr á redea solta: todos os olhos se volveram para aquella banda: muitos rostos empallideceram.
Uma voz de terror girou pelo meio das turbas.—“São homens d’armas d’elrei!”—Aquelle oceano de cabeças humanas redemoinhou a estas palavras, e começou a dividir-se como o mar vermelho diante de Moysés. N’um momento viu-se uma larga faixa esbranquiçada cortar aquella superficie movel e escura: era ampla estrada que se abríra desde a rua de Gileanes até S. Domingos. As paredes desta adelgaçavam-se rapidamente. Para a banda da Mouraria e da Pedreira os becos e encruzilhadas apinhavam-se de gente, e os reflexos dos ferros das ascumas populares, que erguidas scintillavam ao sol, começaram a descer e a sumir-se como as luzinhas das bruxas em sitio brejoso aos primeiros assomos do alvorecer. Fernão Vasques olhou em redor de si: estava só. Descórou; mas ficou immovel.
Entretanto o tropear aproximava-se cada vez com mais alto ruído: os bésteiros do concelho, postados ao longo dos paços do almirante, eram talvez os unicos em quem o terror não fizera profunda impressão: alguns já haviam estendido sobre o braço da bésta os virotes hervados, e revolvendo a polé faziam encurvar o arco para o tiro. Os bésteiros de garrucha tinham já o dente desta embebido na corda, promptos a desfechar ao primeiro refulgir dos montantes nús dos cavalleiros e escudeiros reaes. Do resto do povo os ousados eram os que recuavam; porque o maior numero voltava as costas e internava-se pelas azinhagas dos hortos de Valverde e vinhas d’Almafalla, ou trepava pelas ruas escuras e malgradadas do bairro do almirante.
Mas no meio deste susto geral apparecêra um heroe. Era Fr. Roy. Ou fosse imprudente confiança no cargo occulto que lhe dera D. Leonor, ou fosse robustez d’animo, ou fosse finalmente a persuasão de que o habito de beguino lhe serviria de broquel, longe de recuar ou titubear, correu para a quina da rua d’onde rompía o ruído, e mirando pela aresta do angulo um breve espaço, voltou-se para o povo, e curvando-se com as mãos nas ilhargas, desatou em estrondosas gargalhadas.
Tudo ficou pasmado; mas vendo e ouvindo o rir descompassado do ichacorvos, o povo começou a refluir para a praça. Aquellas risadas produziam mais animo e enthusiasmo que os quarenta seculos vos contemplam de Napoleão, na batalha das Pyramides. Os amotinados recobraram n’um instante toda a anterior energia.
Esta scena tinha sido rapidissima: todavia ainda grande parte dos populares hesitava entre o ficar e o fugir, quando se conheceu claramente a causa daquelle temor que apertára por algum tempo todos os corações. Era a còrte que chegava.
Montados em mulas possantes, os officiaes da casa real, os ricos-homens, conselheiros e juizes do desembargo vinham assistir ao auto solemne, em que da bôca d’elrei a nação devia ouvir ou uma resolução conforme com os desejos tanto da arraya-miuda como dos senhores e cavalleiros, ou a confirmação de um casamento, mal agourado por muitos nobres e por todos os burguezes, e condemnado de um modo nada duvidoso por estes ultimos. No meio das variadas côres dos trajos cortezãos negrejavam as garnachas dos letrados e clerigos do paço, e entre o reluzir dos esplendidos arreios das mulas alentadas e fogosas dos vassallos seculares, dos alcaides-móres e senhores, viam-se rojar as gualdrapas dos mestres em leis e degredos, dos sabedores e letrados, que constituiam o supremo tribunal da monarchia, a curia ou desembargo d’elrei.
A numerosa cavalgada atravessou o terreiro por entre o povo apinhado, e em todos os rostos transluzia o receio ácerca de qual seria o desfecho deste drama terrivel e immenso, em que entravam representantes de todas as classes sociaes.
Entre os membros daquella lustrosa companhia distinguia-se por seu porte altivo o conde de Barcellos, D. João Affonso Tello, tio de D. Leonor, a quem nos diplomas dessa epocha se dá por excellencia o nome de fiel conselheiro. Quando os amores d’elrei com sua sobrinha começaram, elle fizera, sincera ou simuladamente, grandes diligencias para desviar o monarcha de levar ávante seus intentos. D. Fernando persistíra, todavia, nelles, e então o conde, junctamente com a infanta D. Beatriz [5] e com D. Maria Telles, irman de D. Leonor, suscitára a idéa de a divorciar de João Lourenço da Cunha. O povo sabia isto, e posto que houvesse estendido a sua má vontade a todos os parentes de Leonor Telles, odiava principalmente o conde como protector daquelles adulteros amores. Foi, portanto, nelle que se cravaram os olhos dos populares, que, tendo-se em poucas horas elevado até á altura do throno, ousavam tambem dar testemunho publico do seu odio contra o mais distincto membro da fidalguia. [6]
“Velha raposa, em que te pese, não será a adultera rainha da boa terra de Portugal!—gritava um carniceiro, voltando-se para uma velha que estava ao pé delle, mas olhando de través para o conde que passava.
“Leal conselheiro de barregnices, por quanto vendeste a honra do compadre Lourenço?—perguntava um alfageme, fingindo falar com um vizinho, mas lançando tambem os olhos para D. João Affonso Tello.
“Que tendes vós com o lobo que empece ao lobo?—acudiu um lagareiro calvo e acurvado debaixo do peso dos annos.—Deixae-os morder uns aos outros, que é signal de Deus se amercear de nós.”
“O que elles mereciam—interrompeu uma regaleira—era serem alagantados [7] —com boas tiras de couro cru.”
“E ella, tia Dordia?—accrescentou um ferreiro.—Conheceis vós a comborça? As varas a quizera eu: uma do alcaide no chumaço; outra do coitado nas costas della!” [8]
“É costume, ergo direita a pena:”—notou um procurador, que gravemente contemplava aquelle espectaculo, e que até alli guardára silencio.
Estas injurias, que, como o fogo de um pelotão, se disparavam ao longo das extensas e fundas fileiras dos populares, iam ferir os ouvidos do conde de Barcellos, que, fingindo não lhes dar attenção, empallidecia e córava successivamente, e mordia os beiços de colera.
De quando em quando o vociferar affrontoso da gentalha era affogado no ruído de risadas descompostas, mais insolentes cem vezes que as injurias; porque no rir do vulgo ha o que quer que seja tão cruel e insultuoso, que faz dar em terra o maior coração e o anímo mais robusto.
Entre os parciaes de D. Leonor que vinham naquella comitiva, viam-se, porém, muitos fidalgos e letrados, que ou eram pessoalmente seus inimigos, ou pelo menos desapprovavam alta e francamente a sua união com elrei. Diogo Lopes Pacheco era o principal entre elles, e o povo ao vê-lo passar saudou-o com um murmurio, que foi como a recompensa do velho pelas desventuras da sua vida, desventuras que devêra a um caso analogo, a morte de D. Ignez de Castro.
Quando os fidalgos, cavalleiros e letrados da casa e conselho d’elrei se apearam juncto aos degraus do alpendre do mosteiro, o alfaiate, que viera misturar-se com o povo logo que desembocaram na praça, subiu após elles, e esperou que se assentassem no extenso banco de castanho que corria ao longo da alpendrada. Depois voltou-se para a multidão apinhada ao redor:
“Se elrei ainda não é presente—disse em voz intelligivel e firme—ahi tendes para ouvir vossos aggravamentos os senhores do seu conselho: porventura que elles poderão dar-vos resposta em nome de sua senhoria, e elle virá depois confirmar o seu dicto.”
“Senhor Fernão Vasques, sois o nosso propoedor: a vós toca o falar!”—replicou um do povo.
“Assim o queremos! assim o queremos!”—bradou a turbamulta.
O alfaiate voltou-se então para os cortezãos, conselheiros e letrados do desembargo d’elrei, e disse:
“Senhores, a mim deram carrego estas gentes que aqui estão junctas, de dizer algumas cousas a elrei nosso senhor, que entendem por sua honra e serviço; e porque é direito escripto, que sendo as partes principaes presentes, o officio de procurador deve de cessar no que ellas bem souberem dizer, vós outros que sois principaes partes neste feito, e a que isto mais tange que a nós, devieis dizer isto, e eu não; porém, não embargando que assim seja, eu direi aquillo de que me deram carrego, pois vós outros em ello não quereis pôr mão, mostrando que vos doeis pouco da honra e serviço d’elrei....” [9]
“Cal-te, villão!—bradou, erguendo-se, o conde de Barcellos com voz affogada de cólera, que já não podia conter—se não queres que seja eu quem te faça resfolgar sangue, em vez de injurias, por essa bôca sandia.”
O velho Pacheco pôz-se tambem em pé, exclamando: “ Conde de Barcellos, lembrae-vos de que os burguezes têem por costume antigo o direito de dizerem aos reis seus aggravamentos, de se queixarem, e de os reprehenderem. Nós somos menos que os reis.”
Fernão Vasques tinha-se entretanto voltado para o povo apinhado ao redor do alpendre, com o rosto enfiado, mas era de indignação, e havia feito um signal com a cabeça. No mesmo instante o povo abríra uma larga clareira, e quando os fidalgos e conselheiros, attentos para o conde e para Diogo Lopes, voltaram os olhos para o rocío ao tropear da multidão, um semi-circulo de mais de quinhentos bésteiros e peões armados fazia uma grossa parede em frente dos populares.
Fernão Vasques encaminhou-se então para D. João Affonso Tello, e com a mão trémula de raiva, segurando-o por um braço, disse-lhe:
“Senhor conde, vós sois que doestaes os honrados burguezes desta leal cidade em minha pessoa; porque eu nada fiz senão repetir em voz alta o que cada um e todos me ordenaram repetisse. O que propuz, não é meu. Eis seus auctores! Pelo que a mim toca, senhor conde, nào receio vossas ameaças. Quando o nobre despe o gibão de ferro para vestir o de tela, não sei eu se este é mais forte que o do peão, e se também a sua bôca não póde golfar sangue como a de um pobre villão.”
D. João forcejava por desasir-se do alfaiate, procurando levar a mão á cincta onde tinha o punhal; mas Fernão Vasques era mais forçoso, e o conde já tinha entrado na idade em que costuma minguar a robustez do homem. Não pôde chegar com a mão ao cincto.
“Conde de Barcellos:—proseguiu o alfaiate com um sorriso—não recorraes a esse argumento; porque eu também estou habituado a lidar com ferros azerados, ainda que mais delgados e curtos que o vosso bulhão.”
Estas ultimas palavras, dictas em tom de escarneo, mal foram ouvidas: a grita na praça era já espantosa; as injurias, as pragas, as ameaças, cruzando-se nos ares, produziam aquelle rouco e grande brado da fúria popular, que só tem semelhança com o ruído de tufão abysmando-se por cavernas immensas.
Os fidalgos e letrados tinham rodeado os dous contendores; os parciaes de D. Leonor o conde; os outros, cujo numero era muito maior, o alfaiate. E tanto estes como aquelles trabalhavam em apazigua-los, posto que todos os animos estivessem quasi tão irritados como os dos dous contendores.
Finalmente o conde cedeu. O aspecto da multidão, que se agitava furiosa, contribuiu, porventura, mais para isso que todas as razoes e rogativas dos fidalgos e cavalleiros, attonitos com o espectaculo da ousadia popular; desta ousadia que, menoscabando as ameaças do primeiro entre os nobres, era mais incrivel que a da vespera, a qual apenas se atrevêra ao throno.
Que fazia, porém, o nosso beguino no meio destes preludios de uma eminente assuada? É o que o leitor verá no seguinte capitulo.
- ↑ Hoje o monte da Graça.
- ↑ Hoje o bairro dentro da rua larga de São Roque, Chiado, Rua do Ouro, Rocio e Calçada do Duque.
- ↑ Hoje Rua dos Capellistas
- ↑ Muitos dos trajos civis do seculo decimo-quarto eram communs a ambos os sexos, ou pelo menos tinham nomes communs, como se póde vêr da lei de D. Affonso IV ácerca dos trajos.
- ↑ D. Beatriz era irman dos infantes D. João e D. Diniz e meia irman d’elrei.
- ↑ O titulo de conde era o de maior preeminencia entre nós, e João Affonso Tello era então o unico que em Portugal tinha semelhante titulo.
- ↑ Açoutados.
- ↑ Segundo varios quadernos legaes do nosso direito consuctudinario e municipal, em certos casos applicava-se ás mulheres casadas a pena de que resa o discurso do ferreiro. O alcalde vinha a casa da criminosa punha no chão um travesseiro, pegava d’uma vara e começava a bater em cima delle, fazendo-lhe o compasso o marido da culpada nas costas desta: tal era o modo por que as mulheres estavam ás varas, pena que com menos apparato se applicava tambem aos homens por muitos e diversos crimes.
- ↑ Textual.—Veja-se Fernão Lopes, Chr. de D. Fernando, cap. 61.