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As Caçadas de Pedrinho/Capítulo 1

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Capitulo I

E ERA ONÇA MESMO!


DOS moradores do sitio de dona Benta o mais andejo era o marquês de Rabicó. Conhecia todas as florestas, inclusive o capoeirão dos taquarussús, mato muito cerrado onde dona Benta não consentia que seus netos fossem passear. Certo dia em que Rabicó se aventurou nesse mato em procura dos cogumelos que crescem nos paus podres, parece que as coisas não lhe correram muito bem, pois voltou na volada.

— Que aconteceu? perguntou Pedrinho, ao ve-lo chegar, todo arrepiado e com os olhos cheios de susto. Está com cara de marquês que viu onça...

— Não vi, mas quasi vi, respondeu Rabicó tomando folego. Ouvi um miado suspeito e dei com uns rastos mais suspeitos ainda. Não conheço onça, que dizem ser um gatão assim do tamanho dum bezerro. Ora, o miado que ouvi era de gato, mas muito mais forte, e os rastos tambem eram de gato, mas muito maiores. Logo, era onça!

Pedrinho refletiu sobre o caso e achou que bem podia ser verdade. Correu em procura de Narizinho.

— Sabe? disse-lhe ele. Rabicó descobriu que anda uma onça no capoeirão dos taquarussús!...

— Uma onça!... Não me diga! Vou já avisar vόvό...

— Não cáia nessa, advertiu o menino.. Medrosa como é, vóvó ou morre de medo ou trata de nos levar incontinenti para a cidade. Muito melhor ficarmos quietos e caçarmos a bicha.

A menina arregalou os olhos.

— Está louco, Pedrinho? Não sabe que onça é um bicho feroz que come gente?

— Sei, sim, como tambem sei que gente mata onça.

— Isso é gente grande, bobo!

— Gente grande!... repetiu o menino com ar de pouco caso. Vóvó e tia Nastacia são gente grande e no entanto correm até de barata. O que vale não é ser gente grande e sim ser gente de coragem, e eu...

— Bem sei que você é valente como as armas, Pedrinho, mas olhe que onça é onça, hein? Com um tapa derruba qualquer caçador, diz Nastacia.

O menino bateu no peito com arrogancia.

— Pois quero ver isso! Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça cá para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem coragem de ir comigo, irei sozinho.

A menina arrepiou-se de entusiasmo deante de tamanha bravura e não quís ficar atrás. — Pois vou tambem! gritou. Uma menina de nariz arrebitado não tem medo de coisa nenhuma. Vamos convidar os outros.

Saíram os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o marquês de Rabicó, que estava na porta da cozinha ocupadissimo em devorar umas cascas de abobora.

— Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vái caçar a onça que você descobriu na mata.

Aquela noticia fez o leitão engasgar com o naco de abobora que tinha na boca.

— Caçar a onça? Eu? Deus me livre!...

Pedrinho impôs energicamente:

— Vái, sim, ainda que seja para servir de isca á féra, está ouvindo, sêo covarde?

Rabicó tremia que nem gelea fóra do cálice.

— Um fidalgo! prosseguiu Pedrinho em tom de desprezo. Um filho do nobilissimo visconde de Sabugosa a tremer assim! Que vergonha!... Rabicó não replicou. Bebeu um gole dagua para acalmar os nervos e voltou ás suas cascas de abobora com esta idéa na cabeça: "Hei de dar um geito qualquer. Não tem perigo de deixar-me comer crú pela onça".

O luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em redor e um ovo cozido na boca.

O segundo convidado foi o visconde de Sabugosa, o qual aceitou a proposta com aquela dignidade e nobreza que marcavam todos os seus atos de fidalgo dos legitimos. Iria, para vencer ou morrer. Viscondes da sua marca mostram o que valem justamente nos momentos perigosos.

Depois convidaram a Emilia, que recebeu a idéa com palmas.

— Ora graças! exclamou ela. Vamos ter afinal uma aventura importante. A vida aqui no sitio anda tão vazia que até me sinto embolorar por dentro. Irei, sim, e juro que quem vái matar a onça sou eu...

Esse dia e o outro foram passados em preparativos. Pedrinho levaria uma espingarda que ele mesmo tinha fabricado ás escondidas de dona Benta, espingarda de cano de guarda-chuva com gatilho puxado a elastico. Estava carregada com a polvora duns pistolões sobrados da ultima festa de S. Pedro.

A arma que Narizinho escolheu foi a faca de cortar pão, instrumento mestiço de faca e serrote.

O visconde recebeu um sabre feito de arco de barril, bastante pontudo, mas danado para entortar. Em vista da sua importancia e do seu titulo, tambem recebeu o comando da expedição.

— E você, Emilia, que arma leva? perguntou Narizinho.

— Levo o espeto de tia Nastacia assar frangos. Tenho mais fé naquele espeto do que nas armas de vocês todos.

Restava o marquês. Como fosse um grande medroso, em vez de arma Pedrinho deu-lhe arreios. Rabicó iria puxando um canhãozinho feito dum velho tubo de chaminé, que o menino havia montado sobre as rodas do seu carrinho de cabrito. Para carregar o canhãozinho foi necessario empregar a polvora de tres pistolões. Servia de bala uma pedra bem redondinha, encontrada no pedregulho do rio. Indo atrelado ao canhão, o insigne marquês ficaria impedido de fugir.

No dia marcado tomaram o café com farinha de milho da manhã e saíram na pontinha dos pés, para que as duas velhas nada percebessem. Transpuseram a porteira do pasto, atravessaram a mata dos tucanos vermelhos e de lá seguiram, rumo ao capoeirão da onça.

Rabicó não havia mentido. Os rastos da onça estavam impressos na terra humida. Ao fazerem tal descoberta o coração dos cinco herois bateu mais apressado. Dos cinco, não; dos quatro, porque, como todos sabem, Emilia não tinha coração.

— Que é isso, Pedrinho? disse a boneca notando-lhe a palidez. Será medo?...

— Não é medo, não, Emilia. E’...

— E’... receio, eu sei, caçoou a terrivel bonequinha.

O rubor da colera subiu ás faces do menino.

— Não brinque comigo, Emilia! gritou ele. Você e toda a gente sabe que só tenho medo duma coisa neste mundo — maribondo. De mais nada, hein?

O visconde, que havia trazido a tiracolo o binoculo de dona Benta, ajustou-o nos olhos para examinar "detectivamente" os rastos.

— E’ de onça, sim, disse ele, e de onça pintada.

— Como sabe? indagou Narizinho.

— Estou vendo no chão dois pelos, um amarelo e outro preto.

Aquela confirmação de que era onça mesmo e das grandes, desanimou profundamente Rabicó. Gotas de suor frio começaram a pingar da sua testa. Teve impetos de soltar-se do canhãozinho e disparar para casa; só não o fez de medo que Pedrinho despejasse no seu lombo a carga de chumbo destinada á onça. E resignou-se ao que désse e viesse.

Orientados pelos rastos da onça, os caçadores não tinham que errar. Seguindo-lhes a sua direção fatalmente dariam com a bicha.

— Avante, Saboia! gritou Pedrinho, espichando no ar a espingarda como se fosse espada.

— Avante! repetiram todos os outros, menos Rabicó, que estava sem fala; e com o maior entusiasmo caminharam assim durante meia hora.

Subito, o visconde, que ia na frente, de binoculo apontado, gritou com voz firme:

— A onça!

— Onde? indagaram todos, ansiosos.

— Lá longe, naquela moita — lá, lá...

Realmente alguma coisa se mexia na moita apontada e não tardou que uma enorme cara de onça se espichasse por entre as folhas, espiando para o lado dos cinco herois.

Pedrinho dispôs tudo para o ataque. Assestou na direção da moita o canhãozinho e ordenou ao artilheiro Rabicó, enquanto o desatrelava:

— Fique nesta posição. Quando ouvir a voz de “Fogo!”, risque um fosforo, acenda a mécha e dispare.

— Disparo para casa? perguntou o artilheiro mais tremulo do que uma fatia de manjar branco.

— Dispare o canhão, idiota! berrou Pedrinho.

Enquanto isso, a onça deixava a moita e, com o andar manhoso dos gatos, dirigia-se, agachada, para o lado deles. Era o momento. O visconde ergueu a espada e com voz grossa de comandante superior deu o berro de comando:

— Fogo!

Rabicó, todo treme-treme, não conseguiu nem riscar o fosforo. Foi preciso que Pedrinho viesse ajuda-lo. Por fim riscou e deitou fogo á mécha. Ouvi-se um chiadozinho e logo depois um tiro soou — Pum! Mas um tiro chôcho, que não valeu nada. A bala de pedra rolou a dois metros de distancia, imaginem! Havia falhado a artilharia, na qual eles tinham tantas esperanças.

Pedrinho então disparou a sua espingardinha. Outro tiro chôcho que nada valeu e só serviu para irritar a féra. Viram-na arreganhar os dentes e apressar a marcha na direção dos atacantes.

A situação tornava-se muito séria e Pedrinho, desapontado com o nenhum efeito das armas de fogo, berrou a plenos pulmões:

— Salve-se quem puder!

Foi uma debandada. Cada qual tratou de si, e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas arvores. Felizmente havia bem ali um pé de grumichama brava, que podia abrigar ao grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emilia. Já o velho visconde embaraçou as pernas na bainha da espada e com toda a sua importancia estendeu-se no chão ao comprido. Foi preciso que o menino o pescasse com um galho seco, de gancho. Rabicó fez coisa de que ninguem nunca o julgou capaz: botou-se á arvore que nem gato e conseguiu enganchar-se na forquilha do primeiro tronco. Pedrinho e Narizinho, que estavam no galho acima, puderam agarra-lo pela orelha e iça-lo fóra do alcance da onça. Quando a féra chegou estavam já todos muito bem empoleirados e livres dos seus bótes.

A onça ficou desapontadissima e ali permaneceu, sentada sobre as patas de trás, com os olhos fixos nos caçadores que a tinham logrado. Parece que sua intenção era ficar ali de guarda até que descessem.

Mas Pedrinho teve uma idéa.

— Espere que te curo, disse ele, lembrando-se que ainda trazia no bolso um pouco da polvora dos pistolões. Tomou um punhado e, ageitando-se no galho que ficava bem a prumo sobre a onça, derramou a polvora em cima dos olhos dela.

A idéa valeu. Completamente céga pela polvora a onça pôs-se a corcovear que nem doida, enquanto esfregava os olhos com as munhecas, como se quisesse arranca-los.

— E’ hora! Avança, macacada! gritou Pedrinho escorregando da arvore abaixo. Todos o imitaram, apanharam as armas e arrojaram contra a féra com verdadeira furia. Narizinho esfregava-lhe a faca no lombo como se a onça fosse de pão e ela quisesse tirar uma fatia. O visconde conseguiu, depois de varias tentativas, enterrar-lhe no peito o seu sabre de arco de barril. Emilia fez o mesmo com o espeto de assar frangos. Pedrinho malhava-lhe no cranio com a coronha da sua espingardinha. Até Rabicó perdeu o medo e depois de carregar de novo o canhão deu-lhe um bom tiro á queima-roupa.

Assim atacada de todos os lados, a onça céga não teve remedio senão morrer. Estrebuchou e foi morrendo. Quando deu o ultimo suspiro Pedrinho, com o maior entusiasmo da sua vida, entoou um canto de guerra:

— Ale guá, guá, guá...

E todos responderam um côro:

— Hurrah! Hurrah!...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.