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As Caçadas de Pedrinho/Capítulo 3

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Capitulo III

OS HABITANTES DA MATA SE ASSUSTAM


AS cenas da caçada da onça haviam sido presenciadas por varios animaizinhos selvagens, entre os quais um intrometidissimo saguí. Ficou tão admirado da proeza dos meninos que levou longo tempo a piscar muito depressa — sinal de que estava pensando alguma idéa de saguí. Por fim resolveu-se e, pulando de galho em galho, foi em busca duma capivara, que morava perto, na beira do rio.

— Sabe, capivara, o que aconteceu á onça da Tóca Fria? Morreu... disse o saguí com uma carinha muito assustada.

— Morreu de quê, saguí? indagou a capivara. De morte morrida ou de morte matada?

— De morte matadissima, respondeu o saguí. Os meninos do sitio de dona Benta mataram-na a tiros e facadas e espetadas, e depois arrastaram-na por meio de cipós.

E contou por miudo toda a cena a que havia assistido. A capivara abriu a boca. Era aquela onça o terror de todos os bichos das redondezas, graças á sua força e ferocidade. Por varias vezes os caçadores das terras vizinhas haviam organizado batidas afim de dar cabo dela, sem nenhum resultado. A onça escapava sempre. Como, então, fôra vitima dos netos de dona Benta, simples crianças? Era espantoso, não havia duvida. E se essas crianças haviam matado a onça, que dominava toda a mata, com muito maior facilidade matariam a qualquer outro filho das selvas, fosse veado, paca, tatú ou mesmo capivara.

— A situação é bastante grave, disse por fim o animalão, depois de muito pensar e repensar. Vejo que esses meninos constituem um grande perigo para todos nós. Vou convocar uma assembléa de todos os bichos, na qual o caso seja discutido e providencias sejam tomadas para a nossa segurança.

Ia passando pelo céu azul um gavião perseguido por dois bentevis. A capivara chamou-os.

— Parem com essa briga, disse ela, e venham ouvir o que tenho a dizer. A situação de todos os viventes da floresta é muito grave.

Quando a vida dos animais selvagens se vê ameaçada de perigo geral, as velhas rivalidades cessam. A jaguatirica deixa de perseguir as lebres. A lontra esquece a fome e póde até conversar em muito bons termos com os peixes de que se alimenta. O cachorro do mato passa perto do porco-espinho sem que este erice as agulhas. Assim, ao ouvirem as palavras da capivara, tanto o gavião como os bentevis esqueceram a briga e vieram sentar-se deante dela, um ao lado do outro, como se nada tivesse havido entre eles.

— Os meninos de dona Benta mataram a onça da Tóca Fria, começou a capivara. Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a maior facilidade, a qualquer outro animal menos forte do que a onça. Estamos pois com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar providencias. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês, que voam, sejam meus mensageiros. Voem sobre a mata, e avisem a todos para que estejam aqui reunidos amanhã á noitinha, debaixo da Figueira Brava.

O gavião e os bentevis obedeceram. Voaram de arvore em arvore dando uns pios que significavam reunião geral na Figueira Brava, no dia seguinte.

Essa figueira parecia ter mil anos de idade. Era a maior arvore da zona. Em seu tronco o tempo abrira um enorme ôco, no qual dez homens poderiam abrigar-se perfeitamente. Herva nenhuma crescia debaixo dela, porque as hervas não crescem onde não bate sol e ali havia seculos que não batia um raio de sol.

No dia seguinte á tarde os animais foram-se chegando. Vieram as pacas, tão medrosinhas; vieram os veados ariscos; as antas pesadonas; os coatís sempre alegres e brincalhões; os cachorros do mato e as iráras de olhar duro; as jaguatiricas de movimentos macios. Vieram os tatús encapotados em suas cascas rijas; as lontras embrulhadas em suas capas de pele macia como o veludo; as preás assustadinhas. Tambem vieram cobras — as giboias enormes que engolem um bezerro taludo; as cascaveis de guizos na ponta da cauda; as lindas corais vermelhas; as mussuranas que se alimentam de cobras venenosas sem que nada lhes aconteça. E sapos — desde o sapo ferreiro, cujo coaxo lembra marteladas em bigornas, até a pequenina pereréca, que vive pererecando pelo mundo. E aves, desde o negro urubú fedorento, até essa joia de asas que se chama beija-flor. E ainda insetos — borboletas de todos os desenhos e côres, besouros de todas as cascas, serrapaus de todas as serras, alem de joaninhas e louvadeuses e carrapatos...

Os macacos empoleiraram-se nos galhos da figueira e no rebordo inferior do ôco. Enquanto esperavam, divertiam-se fazendo cabriolas das mais complicadas, e caretas.

Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em que se achavam todos.

— Quem faz um cesto faz um cento, concluiu ela. O fato de terem matado a onça vái encher esses meninos de coragem e faze-los repetir suas entradas nesta floresta afim de nos caçar a todos. O caso é bastante sério.

— Peço a palavra! gritou um bugio, que estava de cabeça para baixo, seguro pelo rabo no seu galho. Acho que o melhor meio de vocês escaparem furia desses meninos é fazerem como nós macacos fazemos: morar em arvore. Quem mora em arvore está livre de todos os perigos do chão.

— Imbecil! resmungou a capivara, furiosa de tamanha asneira. Não é atôa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens. Esta reunião foi convocada para discutir-se a sério, visto que o caso é muito sério. Quem tiver uma idéa mais decente que a deste idiota pendurado, que tome a palavra e fale.

Um jaboti adeantou-se e disse:

— O meio que vejo é mudarmo-nos para outras terras.

— Que terras? replicou a capivara. Não ha mais terras habitaveis neste país. Os homens andam a destruir todas as matas, a queima-las a reduzi-las a pastagens para bois e vacas. No meu tempo de menina podiamos caminhar cem dias e cem noites sem ver o fim da floresta. Hoje, quem caminha dois dias para qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. A idéa do jaboti não vale grande coisa. Impossivel mudarmo-nos, porque não temos para onde nos mudarmos.

— Amor com amor se paga, disse uma jaguatirica. Matando a nossa rainha esses meninos nos declararam guerra. Paguemos na mesma moeda. Declaremos guerra a eles. Reunamos todos os animais de dentes agudos e garras afiadas para um assalto geral ao sitio de dona Benta.

A capivara ficou pensativa. Isso de assaltar um sitio era realmente coisa que só onças e jaguatiricas podiam fazer, pois que são animais guerreiros.

— Sim, disse a capivara, a idéa não me parece de todo má, mas semelhante guerra só poderá ser feita por vocês, onças, ajudadas pelos cachorros do mato e iráras. Eu, por exemplo, e tambem as pacas e veados e lontras e borboletas e serrapaus e carrapatos, não entendemos nada de guerra.

— Pois fique a guerra a nosso cargo, disse a jaguatirica. Encarregar-me-ei de reunir todas as onças e jaguatiricas e cachorros do mato e iráras da floresta para um ataque ao sitio de dona Benta. Havemos de vencer àqueles meninos e comer a todos da casa — inclusive as duas velhas.

A assembléa aprovou a lembrança. Muito bem, pensaram os animais. As onças fariam a guerra. Se vencessem, a bicharia inteira das selvas estaria salva de novas incursões dos meninos. Se não vencessem, a vingança deles iria recair sobre as onças, não sobre os outros. Otimo!

— Está aprovada a idéa, disse a capivara. A senhora jaguatirica encarregar-se-á de falar com as suas companheiras, com as onças grandes, as iráras e cachorros do mato, combinando os planos estrategicos da melhor maneira. E nós, animais pacificos comedores de hervas, ficaremos de lado, ajudando os guerreiros com as nossas “torcidas”.

A assembléa dissolveu-se. Cada qual foi para a sua tóca, e a jaguaritinga disparou em procura das companheiras afim de combinar os meios de conduzir a guerra.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.