As Doutoras/I/II

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Personagens: OS MESMOS, menos EULÁLIA

MANUEL — Luisinha! Luisinha!... A senhora é incorrigível.

MARIA — Como acha então o senhor que devo tratar a minha filha?

MANUEL — A Doutora Luísa Praxedes. A doutora, sim, senhora! A mim parece-me também um sonho; mas é o título a que ela tem direito, que foi ganho à custa do seu trabalho e que é uma honra para a família e para a sociedade.

MARIA — Havemos de ver em que dá tudo isto.

MANUEL — Há de dar em alguma coisa que a senhora com as suas vistas curtas não pode enxergar. (Vestindo a casaca.) Onde diabo está a manga desta casaca?

MARIA — Tens adiantado muito com as tuas vistas largas.

MANUEL (Sem conseguir vestir a casaca.) — Maldita manga...

MARIA — Em todas as empresas em que te meteste tens dado com os burros n'água. Logo que nos casamos montaste uma grande fábrica de papel.

MANUEL — E não era uma boa idéia?

MARIA — Segundo os teus cálculos; mas o papel que fizeste foi tão ordinário que nem para embrulho o quiseram.

MANUEL — Fui infeliz, fui. Mas quem é que não erra? Afianço-te porém, que se eu conseguisse fazer ali alguma coisa, estava hoje com um fortunão.

MARIA — Tão grande como o que ganhastes com a exploração de mariscos, na linha de bondes para o Morro do Nheco, na iluminação de Valença à luz elétrica...

MANUEL — Isto prova, senhora, que sou um homem do progresso, que amo a minha pátria, que quero vê-la prosperar, engrandecer. (Sem encontrar a manga.) Que diabo, não me dirás onde é que se meteu esta manga? (Maria ajuda-o a vestir a casaca.) E a prova do meu patriotismo está nesta menina, laureada hoje com um título.

MARIA — Bem contra a minha vontade.

MANUEL — Bem contra a sua vontade, compreende-se; porque a senhora foi criada em uma casinha de rótula e janela na rua do Aljube...

MARIA — Onde recebi a educação a mais brilhante que se poderia ter naquele tempo. O que Luisinha, ou antes, o que a Doutora Luísa Praxedes sabe de francês, de inglês, de desenho e sobretudo de música, deve-o a esta sua criada. Parece-me que não te casaste com uma analfabeta!

MANUEL — Sim, mas tudo quanto sabes foi aprendido no tempo das bananas a três por dois, do toque do Aragão, das vile­giaturas em Mataporcos, das toalhas de crivo, do junco do pedestre... Tempos em que o Rio de Janeiro era iluminado a azeite de peixe.

MARIA — Mas em que as mulheres não se lembravam de ser doutoras e limitavam-se ao nobre e verdadeiro papel de mães de família.

MANUEL — Já tardava que não viesses com o chavão... a mãe de família. É sempre a figura de retórica já muito cheia de bolor com que o carrancismo pretende esmagar no nascedouro as aspirações grandiosas da emancipação do sexo feminino.

MARIA — É por estas e outras que tudo chegou ao estado de desorganização em que vivemos.

MANUEL — Isto que a senhora chama desorganização...

MARIA — É a ordem, talvez?

MANUEL — Não é a ordem ainda, mas é a evolução da qual muito naturalmente ela há de surgir. O papel da mulher de hoje não é o da de ontem. Aquelas criaturas que viviam em casa tran­cadas a sete chaves, pálidas, anêmicas, de perna inchada, feitorando as costuras das negrinhas, começam por honra nossa, a ser substituídas pela verdadeira companheira do homem, colaborando com ele no progresso da grande civilização moderna. Nós, os homens, temos a política, a espada, as letras, as artes, as ciências, a indústria... Por que razão seres organizados como nós, mais inteligentes até do que nós, haviam de se mover eternamente no acanhado círculo de ferro do dedal e da agulha?

MARIA — Porque basta-nos o amor.

MANUEL — Mas a prova, senhora, de que o amor está no programa de vida da mulher moderna, é o casamento de nossa filha, hoje, no dia de seu grau, com o Doutor Pereira, seu colega de banco na Academia.

MARIA — E entra, por acaso, o amor na união de Luísa com este homem?

MANUEL — Certamente.

MARIA — Olha, Praxedes, podes gastar toda a tua retórica, mas nunca me convencerás de que o Doutor Pereira e Luísa se amem! Acompanho-os há seis anos nas aulas, no anfiteatro, nos hospitais, nos exames...

MANUEL — E que tem isto?

MARIA — Nunca nos lábios daquelas duas criaturas ouvi a pa­lavra amor. Sempre entre eles, como que a separá-los, a medicina, a cirurgia, a terapêutica, o diagnóstico, a hematose, a diátese, a idiossincrasia, a cefalalgia, os emolientes, os tônicos, a patologia e toda esta série de nomes arrevesados que me ficaram no ouvindo à força de ouvi-los repetir constantemente. Esse sentimento que faz de dois corações um só!...

MANUEL — Aí vem a pieguice.

MARIA — Sim, esta pieguice sublime nunca poderia nascer e desenvolver-se naquele meio infecto de moléstias hediondas ou diante do sangue coagulado de órgãos putrefatos expostos em indecente nudez.

MANUEL — Bravo! No fim de contas, parece-me que em vez de uma, tenho duas doutoras em casa. Falta-te só o grau.

MARIA — O que me falta sei eu, é a energia bastante para não ter consentido que as coisas chegassem a este ponto. (Vai a sair.)

MANUEL — Mas, vem cá Maria Praxedes, pensas tu, porven­tura, que os casamentos hoje fazem-se como foi feito o nosso?

MARIA — Os casamentos, em todos os tempos, são feitos do mesmo modo.

MANUEL — O namoro de passar pela porta, piscar o olho; levar com a janela na cara, a loja do barbeiro da esquina como centro de operações, o bilhete cheirando a almíscar, os olhos requebrados, o descante de violão: meu bem, meu amor, minhas candongas... tudo isso acabou... O que há presentemente...

MARIA — É o pedido entre o diagnóstico de um catarro crônico e a aplicação de um vesicatório ou de uma cataplasma de linhaça... Já sei, já sei.

MANUEL — O que há presentemente é o casamento-contrato, isto é, o casamento propriamente dito como ele deve ser. O móvel de dois seres que se ligam é a conveniência.

MARIA — Então confessas com todo o cinismo que o casa­mento de Luísa...

MANUEL — Confesso...

MARIA — Mas onde está a fortuna do Doutor Pereira? Os pais são pobres... Forma-se hoje...

MANUEL — E a senhora sem querer compreender nada, a confundir tudo! O casamento de conveniência, sob o ponto de vista da evolução atual...

MARIA — Já tardava a evolução...

MANUEL — Quer ou não quer ouvir-me?

MARIA — Fale.

MANUEL — O casamento de conveniência, sob o ponto de vista da evolução atual, não é o casamento de dinheiro. O homem sem ofício nem benefício que se liga a uma mulher de fortuna para viver à custa do que ela tem, deveria ser expulso da comunhão civilizada. O verdadeiro casamento de conveniência que é a aspiração da Idéia Nova e de que a minha filha vai ser o exemplo edi­ficante, consiste na união de dois seres, tendo cada um o mesmo modo de vida, a mesma profissão. O marido trabalha, a mulher trabalha.

MARIA — É uma sociedade comercial.

MANUEL — Sim, mas vê o alcance enorme desta sociedade. Não é só a formação do pecúlio do casal, mas muito principalmente o desenvolvimento das classes, a seleção delas. O marido médico, a mulher médica... todos os filhos médicos... O marido advogado, a mulher advogada...

MARIA — Toda a prole bacharela em direito.

MANUEL — Justamente. O pintor ligar-se-á à pintora e desta união sairá uma família de pintores. Não vês o que a imprensa costuma dizer quando trata de um sujeito que faz alguma obra de arte importante? — "É um artista de raça!" Pois bem, esta frase vai deixar de ser doravante uma figura de retórica. Vamos ter médicos de raça, advogados de raça, a sociedade enfim toda de raça, desenvolvida e aperfeiçoada nos diversos ramos da sua vasta atividade. Compreendeste agora o alcance filosófico, político, moral e social deste casamento? Eis porque estou aqui radiante de alegria, cheio de emoções, quase doido.

MARIA — Podes tirar o "quase".