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As Doutoras/I/III

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Personagens: OS MESMOS e EULÁLIA

EULÁLIA — A menina já está prontinha, meus amos.

MANUEL — A menina, não, Eulália.

EULÁLIA — Desculpe-me, meu amo, a Senhora Doutora Luísa Praxedes já pôs aquela vestimenta. Como é que se chama aquilo?

MANUEL — Beca.

EULÁLIA — Está muito engraçada! Ai! que reinação! Eu sempre punha-lhe uma anquinha ou um puff: para armar mais a saia.

MANUEL — Ela está contente, Eulália?

EULÁLIA — Muitíssimo, meu amo. Assim que eu lhe vesti a tal seca...

MANUEL — Não é seca, é beca.

EULÁLIA — Como é mesmo?

MANUEL — Beca.

EULÁLIA — Olhem só o diabo do nome, beca! Pois assim que lhe vesti aquilo começou a passear de um lado para outro, no quarto... Assim, olhe... (Imita.) muito séria. Parecia, mal com­parando, o taverneiro ali da esquina, quando põe a casaca e a comenda.

MARIA — Está bem, está bem. Em vez de estar aí contando histórias é melhor que vá tratar do arranjo da casa.

EULÁLIA — Do arranjo da casa! Ora esta. Pois quem é que tem tratado disso até agora senão eu?

MARIA — Não responda, Eulália, vá.

EULÁLIA — Hei de responder, sim senhora. Estou aqui desde que cheguei da terra, há 25 anos e creio que a patroa não pode ter razão de queixa de mim.

MARIA — Certamente.

EULÁLIA — Enquanto a senhora andava o dia inteiro no meio da rua acompanhando a menina por toda a parte, eu ficava aqui a pé firme, como um cão de fila guardando-lhe a casa e a bolsa. A bolsa, sim senhora, porque se não fosse a Eulália dos Prazeres da Conceição de Maria, filha da Engrácia da Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja, a senhora era depenada por toda essa súcia de criados que entravam numa semana com as mãos abanando e saíam na outra levando tudo quanto pilhavam.

MANUEL — Tens razão, Eulália.

EULÁLIA — Que tenho razão, sei eu! Meu amo, não sabe da missa nem a metade.

MANUEL — Vai buscar a escova.

EULÁLIA — Olhe, quer ver como eu puxava pela fisiolostria da inteligência como diz o Antônio da venda, para não ser embaçada pelos tais criaditos?

MARIA — É a história do açúcar? Já a conheço de cor e salteada.

MANUEL — Vai buscar a escova.

EULÁLIA — E não era bem lembrada? Eles roubavam o açúcar, o que fazia eu?... Apanhava uma mosca, (Fazendo menção de quem apanha uma mosca.) abria o açucareiro, zás... (Menção de atirar.) e tampava-o com todo o cuidado. De vez em quando ia verificar se a mosca ainda lá estava... Não é bem lembrado, meu amo? Aprendi isto na casa de um visconde no Porto.

MANUEL — Está bem, vai buscar a escova.

EULÁLIA — Na manteiga também não me passavam a perna. Fazia-lhe em cima com a faca uma porção de rabiscos. (Batem à porta.)

MANUEL — Estão batendo. Vai ver quem é. (Eulália sai. Para Maria.) Eu vou lá dentro escovar-me. Esta maldita rapariga quando começa a falar... (Sai.)