As Doutoras/II/XX
Personagens: DOUTOR PEREIRA e EULÁLIA
DR. PEREIRA — Vem cá, Eulália. (Tira do bolso uma seringa.)
EULÁLIA — O patrão deseja alguma coisa?
DR. PEREIRA (Mostrando a seringa.) — Sabes o que é isto?
EULÁLIA — Sei, sim senhor; é uma seringa.
DR. PEREIRA — Mas o que tu não sabes, é o que está dentro dela.
EULÁLIA — Aí dentro não vejo nada.
DR. PEREIRA — Pois olhe, aqui dentro está o micróbio da febre amarela.
EULÁLIA — Cruz!!... Credo, meu amo!... Abrenúncio! Arrede-se para lá. Mas o que vem a ser isto de sicróbio?
DR. PEREIRA — É um bichinho.
EULÁLIA — Então a febre amarela é um bicho? Ora esta!
DR. PEREIRA — O que tu não sabes ainda é que metendo-se este bichinho no corpo de uma pessoa fica ela livre de ter o mal.
EULÁLIA — Pois então a febre é um bicho; mete-se o bicho no corpo da gente e a gente não tem febre? Tenha paciência, patrão, eu não engulo esta.
DR. PEREIRA — É muito simples.
EULÁLIA — E como se apanha o bichinho?
DR. PEREIRA — Com um instrumento que nós temos, chamado chupete esterilizado.
EULÁLIA — Chupete esterelizado, sim, senhor. (Prestando muita atenção.)
DR. PEREIRA — Tira-se uma gota de sangue de um doente de febre amarela quase a expirar. Esta gota é deitada em caldo apropriado. Aí o bichinho prolifera!
EULÁLIA — O que vem a ser prolifera, patrão?
DR. PEREIRA — Procria, desenvolve-se.
EULÁLIA — Dentro do caldo! Tudo aquilo? (Faz um gesto com as mãos como indicando formigamento.) Jesus! que porcaria!
DR. PEREIRA — Depois mete-se uma porção daquele caldo dentro desta seringa e injeta-se em um porquinho da Índia ou em um coelho.
EULÁLIA — Ai! O pobre bichinho, coitado, morre logo!
DR. PEREIRA — Não; daí a alguns dias.
EULÁLIA — E depois?
DR. PEREIRA — Depois tira-se uma gota de sangue deste porquinho da Índia e põe-se em um caldo idêntico. Deste caldo injeta-se ainda outros porquinhos que vão morrendo até que injetado num, ele tenha apenas a febre com caráter benigno. Com o caldo deste então é que se vacina o homem.
EULÁLIA — Quanto caldo e quanta porcaria, meu amo. Já sei que hoje não janto com o diabo da conversa. Se já estou aqui engulhando...
DR. PEREIRA — Eulália, a epidemia está grassando com muita intensidade, tu és estrangeira, além disto forte e robusta. Estás sujeita de um momento para outro a ter a febre...
EULÁLIA — O que é que o patrão quer?
DR. PEREIRA — Vacinar-te.
EULÁLIA — O quê? Meter essa seringa no meu corpo? Com caldo de febre amarela? Em mim o senhor não mete isto, não, mas é o mesmo. Chegue-se para lá, patrão.
DR. PEREIRA — Mas isto não dói, é uma coisa à toa. Não vês; é uma pequena seringa de Pravat.
EULÁLIA — E seringa depravada ainda de mais a mais.
DR. PEREIRA — Dá cá o braço, deixa-te de histórias.
EULÁLIA (Gritando.) — Socorro! Socorro! Aqui del Rei!