As Joias da Coroa/V
Era, de fato, Inácio, o criado do duque, que o leitor viu no princípio desta narrativa a conversar com Manuel de Pavia. O inescrupuloso arranjador do negócio da Conceição conversara longamente com Inácio a respeito de umas joias do duque de Brangantina. A primeira das consequências dessa entrevista era o encontro alta noite, à base dos muros que protegem o torreão do lance esquerdo do palácio.
No ponto marcado, encontravam-se os dois.
Antes de darmos conta ao leitor do que se passou em seguida ao encontro no lugar marcado, devemos informá-lo de uma circunstância de alta monta.
Na rua no. ... há uma grande loja de ourivesaria. Três grandes vitrinas de cristal abrem-se para o público, apresentando o mais ofuscante e precioso conjunto de ouro e pedrarias que s e pode imaginar. Sobre luxuosos lençóis de veludo de carregadas cores, amontoam-se incríveis porções de esmeraldas, sem engaste, rubis, safiras, diamantes espalhados como se fossem grãos de milho, mostrando com orgulho as mais delicadas clivagens e as mais finas cintilações prismáticas que a imaginação concebe.
No interior da loja, luzem pelas prateleiras os mais belos produtos de ourivesaria, joias de um valor inapreciável, fabulosas pratarias...
O dono desse Eldorado é um negociante forte.
Disfarçada, a um dos ângulos da loja, entre dois belos armários de madeira preta recortada em flores, e luzidamente lustrada, existe uma pequena porta que apresenta à vista o aspecto de um espelho encostado à parede. Entra-se por aí para os compartimentos íntimos da loja. Logo depois da porta, encontra-se um pequeno escritório, biombo de madeira em volta, mobiliado por uma escrivaninha, algumas cadeiras e uma grande burra sólida, pesada e impenetrável como um monólito egipciano.
Coa-se para esse lugar a claridade de uma área próxima. A essa luz frouxa escreve o guarda-livros da casa, agente de quase todos os negócios do proprietário do estabelecimento e, nesse caráter, homem da mais provada confiança para o ourives.
Enquanto este, trajando como um gentleman, saboreia preciosos charutos no meio dos lúcidos efeitos das mercadorias do seu aristocrático negócio, indolentemente arrimando os cotovelos aos caixilhos envernizados dos mostradores, ou ao tapete escovado dos balcões, crivando de moderados apartes a conversação entusiasta do grupo de políticos seus amigos, que vêm todos os dias palestrar-lhe às soleiras... no escritório por trás da porta de espelho, o guarda-livros entabula as suas negociações.
Este empregado é um sujeito prático, inteligente, fino e, além de tudo, tem um curso bem acabado de mineralogia. É de pequena estatura, nervoso, tendências dominadoras, voz enérgica, linguagem rápida, acompanhada de sons guturais, irônicos, significativos. É feio de cara. Nariz fino, olhos pequenos e espertos, pouca barba. Tipo, fuinha; espírito, raposa. Chama-se Aleixo de tal.
Em noite de 11 de março de 18... duas conversas importantíssimas travaram-se na grande ourivesaria.
Junto dos mostradores a balava-se a golpe de alevantada retórica o ministério do tempo. Muitas vezes estremeceram de susto os castiçais de prata e as badejas, os tinteiros de ouro, as medalhas com as iniciais de brilhantes, as pulseiras, os colares, os brincos, as abotoaduras, as alegres fantasias... Eram os murros da eloquência dos políticos esborrachados sobre o balcão, por não poderem chegar à cara de qualquer ministro ou chefe de partido contrário ao do orador.
Os circunstantes ou riam estrondosamente daquela energia caricata, ou protestavam contra as asserções que se faziam.
No escritório do sr. Aleixo havia coisa mais interessante. Conversava-se com tanto fogo como na loja; porém as palavras não faziam estrépito.
A pouca distância da escrivaninha, Aleixo prestava atenção ao que dizia um sujeito moreno muito barbado de óculos azuis. O bico de luz que alumia o escritório deixa-nos reconhecer o sujeito. É o nosso Manuel Pavia, ligeiramente disfarçado. Ouçamos o que ele diz:
— ...Assim, vê o senhor que não haverá dificuldade... Não há muito risco para mim em levar a cabo a empresa e nenhum para o senhor em prestar-me um serviço que lhe dará tanto lucro.
Fez-se uma pausa, durante a qual se ouviu uma gargalhada sonora dos políticos que discutiam na loja. Depois Aleixo começou:
— Disse-me o senhor que conta absolutamente com o auxílio de um criado que reside no palácio... o duque vai ao baile, dorme, como costuma, no palacete do marquês, vai depois, sem voltar ao palácio, para a quinta de verão de Anatópolis. A duquesa acompanha-o, sem levar, necessariamente, as joias com que se apresentará no baile... ficam as condecorações do duque, etc... Toda essa riqueza vai provisoriamente para um armário antes de ser guardada definitivamente na burra... muito bem... sabe que o particular do duque pretende aproveitar a ausência deste para estar algum tempo com a família, que não mora na quinta... não é assim?...
— Sim, senhor.
— E o senhor aproveita-se da ausência dele... Acha fácil a coisa... Mas ainda não refletiu nas averiguações que há de fazer a polícia...
— Já pensei, já pensei...
— Olhe que o negócio não é o mesmo daquelas joias que filaste à Milica, quando ela perdeu as graças do duque e foi para a rua...
— Isso sei eu melhor do que o senhor — interrompeu Pavia, movendo o queixo num gesto nervoso e impaciente. — Por isso, o senhor há de dar desta vez mais alguma coisa pelas pedras do que deu pelas de Milica...
— Não seja esta a dúvida... a coisa é a polícia... a polícia.
— Não morra de temores da polícia. Asseguro-lhe que ela não fará coisa alguma... Se aparecer, perderá seu tempo. Ficará nas interrogativas. Terá suspeitas apenas... Suspeitará de mim como suspeitará de vários outros... mas suspeita nunca foi base para uma condenação...
— Mas a casa que o senhor alugou na Tijuca é um indício...
— Como?... Se eu não me retiro da quinta?! Conservo-me nas mãos da polícia até que ela se convença da minha inocência?!... Quem será capaz de imaginar que as joias roubadas estão em casa de tal ourives... aqui em sua casa... Se alguém tivesse reparado na minha entrada hoje aqui, e alguém notar a minha saída, se as minhas barbas tivessem a mesma cor das que eu trago, se estes óculos azuis fossem de meu uso... seriam indicações possíveis à polícia, caso ela desconfiasse deste estabelecimento... o que fora loucura!... Mas felizmente...
— Certamente tudo é favorável. Todavia, que lhe garante que não haverá testemunhas no jardim do palácio?
— Isto é um caso possível, mas não é provável... Quando o duque está fora... a quinta é pouco frequentada... Os que lá moram, recolhem-se todos e abandonam o parque... não é provável... E se não houver testemunhas, se não se encontrarem vestígios dos objetos subtraídos, o que se há de fazer?
— É fato...
— Demais, eu estou convencido de que, se, apesar de todas as minhas precauções, a coisa transparecer, terei por mim o duque, que não quer perder-me e aprecia-me... A tal duquesa vota-me um ódio de morte... Talvez se lembre de acusar-me, mas é uma velhinha que não tem voz ativa na casa... Tem-me ódio, por ter ciúmes do marido.
O guarda-livros aplaudiu com a sua risadinha habitual e observou:
— Na verdade, se o senhor conta com a proteção infalível da sua própria vítima, eu sou o primeiro a responder pelos resultados da empresa...
— Deixe a coisa andar..
— Até desejo muito a sua felicidade, porque não sei se se lembra de umas joias que nos levou daqui, há dias, para uma nova menina que andava em vésperas...
— Lembro-me. Ainda não as paguei, mas pago. Aí está... Do dinheiro que o senhor me der, eu desconto...
— É exatamente o que queremos... é o que nos convém...
— Deixe a coisa andar... — brejeirou Pavia.
— E há de andar como um patim, estou certo...
— Mande, pois, uma pessoa de confiança, ou vá pessoalmente, na noite de 13 para 14, esperar pelo resultado da minha campanha e pelas joias...
— Hei de ir eu mesmo...
— Acho melhor assim... Não devemos envolver muita gente... nem todos são discretos, e... não há também... tanta riqueza que chegue para muitos... nada!... Se fosse possível irmos só, os dois... dispensando auxílio de criados...
— Se são imprescindíveis...
— ...não há remédio... — concluiu Pavia, estremecendo o queixo, segundo o seu frenético costume.
Na loja, ressoavam ainda as exclamações dos conversadores.
— Estamos convencionados — disse Aleixo, como para encerrar os tratos. — Depois d'amanhã vou postar-me onde... Ainda não me disse o lugar, creio...
— É verdade... É preciso determinar um ponto.
— Mas, qualquer...
— No matadouro...
— Bem... Coloco-me junto de um dos pilares do portão... espero pela sua chegada até o romper do dia... Vê que tenho boa vontade... Avalio o tesouro com a honradez que sabe... e, conforme os valores, arranjo um negócio muito ao sabor dos nossos interesses...
— É rigorosamente o que eu desejo.
Depois desta frase de Manuel de Pavia, seguiu-se um silêncio profundo. Pavia, com os olhos cravados no chão, absorvia-se em meditações.
Passados alguns momentos, sorriu de um modo estranho e levantou o olhar para o guarda-livros. Aleixo firmava a vista naquele honrado depositário da confiança de um rico e poderoso duque, e assistia às cambiantes de expressão que davam-lhe à fisionomia os arroubos da meditação. Quando Pavia ergueu a cara, o seu olhar e o de Aleixo cruzaram-se faiscando como os floretes de dois dignos adversários que medem distâncias.
Ambos os adversários, depois de se medirem, trocaram risos que traduziam claramente a compreensão que tinham um do outro.
— Não devo sair enquanto estiverem aí esses maçantes...
— Eles não se demoram. Às nove, fecha-se a casa. São oito e trinta e cinco... Daqui a pouco o patrão deita-os no meio da rua...
— Quando forem fechar a porta, eu retiro-me... haverá menos gente na rua...
Ouviu-se uma risada na loja. Aleixo deixou Pavia no escritório e foi espiar à fechadura da porta de espelho.
— Já vão, já vão! — disse, voltando-se para Pavia. — Não!... Ainda ficou um... Que ostra!... Ora, até que enfim... Lá se foi o último! Se quiser sair agora...
— Já vou — disse Pavia.
— Portanto, até depois d'amanhã... portão do matadouro... lá para uma ou duas da madrugada.
— Sim.
E Aleixo passou com Pavia para a loja.
Pavia despediu-se dele, cumprimentou ligeiramente o dono do estabelecimento, que estava em uma porta a olhar para a rua com as mãos cruzadas sobre as abas do fraque, e foi-se.