As Joias da Coroa/VI
Três dias depois da conferência com o guarda-livros do rico ourives, realizava-se o contrato de Manuel de Pavia com o criado Inácio, e os dois cúmplices encontraram-se fora de horas para levar a efeito o projetado roubo.
Certificado de que a pessoa que tinha em frente era na verdade Inácio, Manuel de Pavia, com a voz comprimida por precaução, perguntou-lhe:
— Fez tudo o que eu lhe disse?...
— Fiz...
— Tem os formões? O macete forrado de pano? Tirou a corda que eu deixei no meu jardim, perto da cancela?...
— Não esqueci nenhuma de suas considerações... Quando saí de sua casa, fui à sala do armário, sem que se notasse a minha entrada no palácio... O armário é muito fácil de se arrombar, como bem me disse o senhor... A porta do jardim, abrindo-se o trinco por dentro, não oferece resistência... Só mesmo o seu dinheiro e as suas promessas poderiam fazer um sujeito depositar uma fortuna daquelas em tal lugar...
Pavia riu-se orgulhosamente da observação de Inácio:
— Quando eu o aconselhei a ter toda a confiança em mim, bem sabia por que falava...
— Pois eu, antes de ir deitar-me, abri o trinco da porta, certo de que o particular do duque, não sabendo do imprudente depósito das joias, e apressado em ir dormir com a família, não se demoraria a examinar... Fui deitar-me muito calado... Ainda há pouco, saí do meu quarto, subi à sala grande, puxei a porta do jardim... não custou muito... Deu um pequeno estalo que ninguém devia ter ouvido... Aberta a porta, saí para o parque... fui ao seu jardim... tirei a corda que estava escondida no mato e aqui está na minha mão... Ah! ia-me esquecendo... Fui ali às obras que se estão fazendo perto da entrada da quinta, apanhei este formão e este macete... Nessa ocasião quase acordei um sujeito que ali dorme para vigiar as ferramentas...
— Guarneceu de pano o macete?...
— Aqui o tem preparadinho...
— Portou-se muito bem... Podemos principiar a coisa...
Os dois ladrões dirigiram-se, pé ante pé, para uma escadinha de pedra que conduz a um jardim, graciosamente plantado sobre a muralha junto da qual estivera Pavia esperando; saltaram uma pequena grade de ferro; subiram a escada e foram até a porta do palácio, aberta pelo criado.
A porta estava apenas encostada... Pavia empurrou-a e entrou. Inácio entrou depois dele. A porta tornou a fechar-se.
A sala do palácio estava de uma escuridão impermeável.
O menor ruído provocava a ressonância imponente dos lugares grandes e vazios. Os dois atrevidos criminosos sentiam-se impressionados com aquela escuridão e aquela ressonância de catacumba.
— É preciso luz — disse Pavia baixinho.
As palavras, ressoando frouxamente nos ângulos da sala, zumbiram-lhe aos ouvidos por muito tempo...
— Eu me esqueci da vela — objetou Inácio.
— Eu a trouxe...
E Pavia, como que temendo iluminar o seu crime, tirou com a mão trêmula uma caixa de fósforos e uma vela de que se munira, mas hesitou em ferir fogo...
— Não achou a vela? — informou-se o criado do duque.
— Achei... aqui tem... segure, para eu riscar o fósforo.
Inácio tateou pelo ar até encontrar a mão de Pavia e tomou a vela. Pavia riscou o fósforo. O fósforo falhou.
— Diabo! Estou trêmulo...
Pavia riscou de novo. Riscou terceira vez. Toda a escuridão da sala fugiu à explosão do fulminante.
Os ladrões tinham certeza de que aquela porção do palácio devia estar sem viva alma. O particular do duque, que habitava um compartimento vizinho da sala do armário, achava-se fora. Os criados alojavam-se no pavimento inferior. Não havia, pois, quem ouvisse os rumores feitos na sala.
Entretanto, quando a chama do fósforo brilhou, os bandidos estremeceram como que de susto e lançaram instintivamente um rápido olhar indagador aos quatro lados da sala.
Era um espaçoso aposento sem utilidade especial. Parecia servir apenas de passagem para o jardim. Não tinha móveis ao centro. Filas de cadeiras de grandes encostos, espichando para o teto uns florões medievais, antigos como a genealogia dos Bragantinas, bordavam as paredes, afetando altivamente a sua imobilidade nobre, estúpida, militar. Da ombreira das portas desabavam reposteiros verdes, pesados como chumbo.
No ar pairavam cheiros de mofo e de pó; no teto, revoluteavam uns dourados de mau gosto, como serpentes amarelas, enroscadas pelos estuques... Pavia e Inácio viram que não havia, além deles, pessoa alguma no lugar.
No fundo da sala, havia um grande armário envidraçado por dois largos espelhos. Aí, estavam as desejadas preciosidades.
Pavia imaginava estar vendo as pedrarias estrelando o fundo de um bonito cofre de madeira lavrada... ali ao alcance da mão.
Ao receio de uma surpresa sucedera um íntimo prazer avarento, à vista de um montão de riquezas...
A vela refletia-se no espelho do armário... Pavia espantou-se... Pareceu-lhe que havia gente lá dentro...
— Que poltrão! — disse ele. — Estou com medo de mim mesmo.
E os dois chegaram ao depósito do tesouro...
Estava ali o sonho... e não havia dragões a guardarem-no.
Os ladrões começaram.
Manuel de Pavia sabia que as joias estavam num escaninho à direita.
— Elas estão por aqui... Quebrar o espelho é fazer muito barulho e... depois, a madeira é fraca...
Enquanto falava, Pavia bateu com a mão no ângulo direito do armário como que avaliando a espessura da tábua. Pediu em seguida o formão a Inácio, tomou o macete e encostou o corte do seu instrumento no armário.
Começaram então umas pancadinhas abafadas pelo pano que envolvia o macete... A sala enchia-se de sonoridades surdas como as de um tambor em que se toca levemente.
O trabalho foi demorado.
Afinal, um grito alegre como a detonação de um foguete escapou dos lábios de Pavia:
— Entrou! — exclamou ele com as feições alargadas na mais expansiva satisfação.
Tinha entrado o formão.
Deste momento em diante, todo o trabalho consistia em fazer rachar-se a tábua do armário.
Pavia calcou sobre o formão como sobre uma alavanca. A madeira estalou... Inácio substituiu a Pavia no trabalho; meteu as mãos na abertura que o companheiro fizera e completou a obra.
Estava feita a passagem.
Manuel de Pavia apanhou a vela que o cúmplice deixara no soalho e iluminou o interior do armário. Mal chegou a chama à abertura do arrombamento, mil cintilações brilharam...
— O cofre!...
Os dois ladrões sentiram-se chocados. Toda a emoção traduziu-se-lhes por um silêncio absoluto.
Inácio quis retirar o cofre... Pavia, com medo talvez de ser roubado pelo companheiro, desviou-lhe as mãos do buraco do armário.
Inácio cravou-lhe um olhar afiado, terrível. Dir-se-ia que passava pelo espírito do criado um meio muito simples de assenhorear-se daquilo que o cúmplice queria para si.
Pavia tirou o cofre e, voltando-se para Inácio:
— Está feito o mais difícil! Agora convém... convém... disfarçar a coisa...
— Será para isso que quer esta corda?
— Para isso mesmo!... Vamos abrir os trinchos de várias janelas para se acreditar que houve descuido do fechador... De uma das janelas atiraremos a corda por cima da hera da parede... Se houver indagações da polícia, esta corda pode fazer uma embrulhada... A polícia é estúpida... dirá que o ladrão veio de fora... tanto que serviu-se de uma corda... A questão é achar onde se prenda um nó... Vamos ver...
Pavia, seguido pelo companheiro, afastou-se do armário, sobraçando o cofre e atravessou a sala em direção às janelas.
Abriram cuidadosamente algumas. Espiaram para fora e examinaram.
— Esta serve! — disse Pavia, à terceira janela aberta... — Não dá para o jardim... E tem aqui um bom gancho...
Havia de fato no peitoril da janela um gancho de ferro, destinado naturalmente a sustentar um globo de luminária. Não era forte, mas servia para quem quisesse arriscar-se. E os ladrões arriscam-se.
Atando-se ao gancho a corda, era possível escorregar até embaixo da muralha que sustentava o jardim, de sorte que parecia que os ladrões não tinham passado pela porta da sala.
Pavia amarrou uma das pontas da corda e atirou a outra para o parque...
— Bem! — disse depois. — Agora eu vou ver se ponho a salvo o cofre... Você deixe cerradas estas três janelas... Feche cuidadosamente a porta, fazendo entrar a lingueta e prendendo os trincos... E... vá para o seu quarto... Quando levantar-se... levante-se cedo como costuma... quando sair da cama venha logo a esta sala e dê sinal de alarma, faça barulho...
— E depois...
— Eu respondo, pelo resto... Apareça ou não a polícia, asseguro-lhe que não nos sucederá coisa alguma... Neste negócio a polícia há de fechar os olhos... Você verá... E, para tranquilizá-lo de todo... Eu sou um homem indispensável ao duque... Ele não me fará mal algum, por conseguinte não fará aos meus companheiros de pândega... Fique sossegado...
E Manuel de Pavia, sempre como o seu cofre, saiu para o jardim, deixando Inácio na sala. Quando este ia fechar a porta, o ladrão inclinou-se para ele e disse, à meia voz:
— Não haverá nada... O homem tem medo de mim.