As Joias da Coroa/VII
Não tivemos ainda a honra, nem a ocasião de apresentar ao leitor o milionário senhor da quinta de Santo Cristo, o sr. duque de Bragantina.
Agora que vamos encontrá-lo figurando ativamente nas meadas da nossa narrativa, apressamo-nos em fazer a necessária cerimônia.
Atravessemos, embalados maciamente na arfagem sonolenta de uma barca a vapor, as ondulações bonançosas da vasta e serena baía de Paranaguá.
Galguemos a encosta daquelas montanhas alterosas, denteadas, que mordem o firmamento ao longe. Penetremos os cerrados de floresta que aveludam de verde o esqueleto rude, vulcânico, daquelas cordilheiras.
Quando estivermos perto daqueles vapores que vestem-se de ouro a romper do dia e que choram sangue ao fugir da tarde: logo que sentirmos a frescura invernal das serras penetrar-nos o tecido da roupa; quando sentirmos intensamente o perfume da mataria a deliciar-nos o olfato, subindo das grotas no meio de lufadas de nevoeiro como do fundo de enormes turíbulos... nessa ocasião, atravessemos um olhar por entre os arvoredos, que havemos de lobrigar, estendida no meio de um vale, no lugar onde devera existir antes a fita cristalina de um regato, sorrindo aos ventos que a bafejam e às flores que as matas atiram sobre ela, havemos de ver um retiro de prazeres, que se chama uma cidade.
É aí Anatópolis.
Um outro parque de Santo Cristo. Anatópolis é a continuação da quinta do duque de Bragantina. Quando há muito calor no palácio da quinta, o duque de Bragantina passa a baía de Paranaguá e vai buscar refrigério em Anatópolis.
Ao tombar do dia ou pela manhã, um homem aparece, em tempos de verão, a passear pelas arejadas ruas da cidade.
Vai todo de branco, coberto por um amplo chapéu de Chile, fresco como o vestuário. É de uma estatura bonita e excepcional. É velho. As barbas envolvem-lhe o rosto em flocos admiráveis de nevada brancura. O rosto possui ainda uns matizes róseos de mocidade. Tem os olhos pequenos e azuis e usa óculos, uns veneráveis óculos de grossos aros de tartaruga.
Ao redor desse homem, apertam-se muitos amigos, desfazendo-se em cortesias e obséquios.
Se a um destes o leitor perguntar quem é aquele velho, ele dirá espantado:
— Oh, não conhece! É o senhor duque de Bragantina!
É o duque exatamente. Vai caminhando pela rua satisfeito, dirigindo aos que o cercam gracejos e pilhérias, com a voz aflautinada que o caracteriza.
Quando passa por alguma rapariguinha gentil que lhe sorri de uma janela, ele faz-lhe um cumprimento bem desenhado, vai dissertando sobre um assunto qualquer. Ou seja a explicação pela física da propriedade que tem a água de molhar, ou a virtus dormitiva do ópio. Não gosta dos assuntos transcendentais nem de objeções impertinentes; discute para conversar, só para isso. E os amigos o compreendem, não o contrariam.
Por alguns momentos de observação pode-se saber quem é o duque de Bragantina. A roda de amigos que o envolve diz-nos que ele é rico e poderoso; o cumprimento galante à rapariguinha da janela indica-nos que ele é inclinado ao sexo das belas; a sua conversa mostra-nos, pelo objeto, que ele gosta da ciência; pela dissertação, que ele não a cultiva; pelo ar de imposição com que fala, conhece-se que ele não admite obstáculo diante de si.
E tudo é verdade. Herdeiro do sangue orgulhoso de uma extensa cadeia genealógica de requintada fidalguia, nasceu o duque da Bragantina com todas as predisposições para o mando. Seu pai foi um cavalheiro educado nas páginas dos Lusíadas; lera o poema dos lusos e decorara o canto nono; daí a vida que levara de bravuras épicas e galantes e fora um Leonardo que nunca deixara escaparem Efires.
Filho de tal pai e continuador de tais fidalguias, era impossível que no caráter do duque de Bragantina não se fundissem os arrojos, as sensualidades paternas com as arrogâncias da raça.
Na idade de quatorze anos, tendo perdido o pai aos cinco, depois de uma educação viciada pela flexibilidade bajulatória de alguns dos seus educadores e pela violência ofensiva de outros, que deram ao menino uma duplicidade de gênio, ora arrogante para uns, ora humilde para outros, começou a imiscuir-se o jovem fidalgo na gerência da sua vida e dos seus haveres.
A fortuna do duque era colossal. Facilitava-lhe uma vida principesca. Conseguindo libertar-se dos tais educadores impertinentes, viu-se o moço entregue à própria natureza e às adulações dos seus áulicos.
Brilhante correu-lhe a existência. Fortaleceram-se os sentimentos despóticos que lhe haviam plantado n'alma as adulações corruptoras dos seus primeiros mestres, ao passo que não desaparecia o gérmen da falsidade que se criara da necessidade de iludir aqueles a quem o duque temia em pequeno.
Qual foi a consequência?
A consequência foi que derramaram-se precoces as alvuras do encanecimento por sobre a cabeça do duque; e, quando, em momento de rápida meditação, o fidalgo se concentrava para fazer um exame de si mesmo, reconhecia-se vazio dos recursos de que necessitava para apresentar-se em rodas ilustradas, onde queria figurar, ao mesmo passo que, pensando na vida, achava-se intimamente parecido com o retrato moral de seu pai que lhe pintavam as tradições de família, exceção feita das aventuras heroicas e dos rasgos de franqueza.
Por isso é que contavam à boca pequena uns episódios grotescos do duque de Bragantina em várias sociedades científicas e literárias, onde costumava apresentar-se; por isso, também, o arrabalde de Santo Cristo ressoava surdamente com os boatos tímidos das façanhas amorosas de certo homem de barbas brancas.
Por felicidade do duque ele unira a sua existência à de uma generosa fidalga, que sabia amargar em silêncio todas as brincadeiras do esposo e distraía-se dos sofrimentos domésticos, entregando-se de corpo e alma à mais antiga prática da caridade para com os que necessitavam dela.
Os moradores da pequena aldeia consagravam à duquesa uma verdadeira adoração. Raro era aquele que não a tinha visto à sua porta, indagando do estado de qualquer enfermo, aconselhando o uso de um medicamento, ou dando disfarçadamente uma esmola...
Esta santa senhora esforçava-se por contrabalançar com as suas virtudes os excessos do duque.
Em atenção a ela, algumas pessoas de consideração permaneciam na roda perigosa do marido. Por essa razão, os amigos do duque não eram todos da ordem dos alegres companheiros de passeio pelas ruas de Anatópolis.
A estes, costumava o grande fidalgo dar a honra da sua companhia durante o verão. Aos sábados, porém, vinha só, ou com a duquesa, visitar a quinta de Santo Cristo.
Na época que começavam os sucessos da nossa história, apesar do estio, não se achava o duque em Anatópolis.
Viera de lá por um dos sábados.
Tinha de voltar na segunda-feira e já o povo anatopolitano se preparava para recebê-lo, entre regozijos e foguetes. Mas o duque, não apareceu. Era uma grave contrariedade para aqueles felizes desocupados. Tinham talvez de passar uma semana sem ver na rua a esplêndida e branca figura do fidalgo de chapéu Chile.
Um desgosto para eles e um motivo de tristeza para a cidade.
Faltar aos seus habituais não era regra do duque. Pelo contrário. Ele era o que se pode chamar a pontualidade em pessoa. A pontualidade, porém, possui um sério inimigo que, aliás, não é incompatível com ela: o capricho.
O duque era um homem caprichoso. Ainda uma consequência do servilismo dos maus educadores.
Como homem caprichoso, não era de admirar que deixasse uma vez de se apresentar em Anatópolis conforme o costume.
O duque de Bragantina tivera na verdade um dos seus caprichos.
Tinha dito na quinta que, depois do baile do marquês de ***, em cujo palácio passaria a noite, iria diretamente a Anatópolis, sem voltar a Santo Cristo. Um motivo qualquer ou mesmo motivo nenhum o fizera resolver o contrário.
Parece que o capricho explicava-se por uma incumbência de que o duque encarregara o seu íntimo Manuel de Pavia...
Por um motivo ou outro, o fato era que, no dia seguinte ao baile do marquês de ***, às dez horas da manhã, subia o duque as avenidas do palácio de Santo Cristo, contra toda a expectativa.
Nessa manhã, gravíssimas coisas se haviam passado.
O palácio do duque era um inferno. Uma atividade doentia se apoderara da mordomia, da criadagem, de todos os que residiam no palácio ou na quinta.
Viam-se os criados correndo pelos corredores. O particular do duque, que saíra do palácio na véspera, fora chamado a toda pressa. Os habitantes da aldeia situada ao norte do parque afluíam às portas do palácio. Perguntava-se, procurava-se, indagava-se, discutia-se, contrariava-se; havia exacerbações, impertinências, iras, temores, dúvidas, interrogações.
O palácio era um inferno, dissemos.
Imagine-se.
Acabava de ser invadido pela polícia.
Haviam comparecido delegados, inspetores, a polícia toda, simbolizada pelo ativo e enérgico sr. dr. Louro Trigueiro. A invasão do palácio não se fizera, porém, em nome da lei, contra a vontade de seus moradores. Muito diverso disso. As autoridades tinham sido chamadas pela gente da casa.
Apenas assomou ao portão o duque de Bragantina, correram a ele, brancos, lívidos de contrariedade, de receio e de indecisão, todos os que estavam na quinta. O mordomo vinha tremendo como um gotoso; os criados vinham pálidos como se caminhassem para uma guilhotina; o particular não teve ânimo de apresentar-se. Ficou prostrado em um dos aposentos.
À frente da multidão, que foi encontrar o duque, notavam-se o chefe de polícia e o marquês d'Etu, filho único do duque de Bragantina.
O chefe de polícia era o dr. Trigueiro, a quem já nos temos referido; o marquês de d'Etu era o proprietário de um belo palácio no pitoresco arrabalde das Bananeiras e de numerosas coleções de quartos para morada de pobres, às quais se dá geralmente o nome de cortiços.
Se aludimos a estas propriedades do marquês é porque falar no filho do duque de Bargantina, sem tocar nos tais cortiços, fora deixar incompleto um retrato.
O marquês d'Etu era apelidado o príncipe dos cortiços pela maledicência dos círculos aristocráticos. Em verdade a mofa da alcunha era justiceira. O marquês era um produto abortivo do tronco dos Bragantinas. Um gentilhomme profundamente bourgeois. Mas o seu burguesismo dava somente para atribuir maior importância a uma conta de açougue, com alguns tostões de menos, do que a quantos documentos nobiliárquicos em regra fossem necessários para ligá-lo à família dos Bragantinas.
Estes instintos de avareza não se enquadravam perfeitamente com as orgulhosas liberdades do duque. Em razão disso, pouco aparecia o marquês d'Etu na quinta do Santo Cristo. O pai e o filho não alimentavam estreitas relações. E só uma causa séria podia levar o marquês ao palácio do seu ilustre pai.
Tinha, por conseguinte, uma importante significação a presença do marquês em Santo Cristo.
Demais, o marquês, um homem de boas cores e militar que se gloriava de alguns contestados mais brilhantes feitos bélicos, dirigia-se ao encontro do duque com o rosto desfeito, o olhar desorientado e alguma umidade lacrimosa pelas pálpebras. Pobre soldado!
O duque de Bragantina achou esquisito aquele bando de gente que se aproximava dele.
Aquele monte de librés verdes manchadas de amarelo, botões azinhavrados, sobrecasacas pretas, jaquetas rústicas; aquelas caras amedrontadas, a maneira de andar daquela gente, a gesticulação desesperada do marquês d'Etu, a presença extraordinária deste fidalgo em sua casa, o ar atrapalhado, cheio de risos verdes, azuis, brancos e amarelos do chefe de polícia... aquela multidão, aquelas fisionomias, tudo tão fora do comum... Para um homem como o duque, que vivia bocejando nos grandes salões e na monotonia dos dias da quinta, aquele aspecto extraordinário causava um íntimo prazer. A curiosidade, aguçada pela presença do filho, que havia muito não o visitava, pela presença da polícia, pelo rebuliço daquele povo à sua chegada, causava-lhe gostosas titilações no espírito.
O duque, entretanto, amestrado proficientemente na arte de fingir, aparentou simplesmente admiração.
— Que quer dizer esta revolução? — perguntou, como se falasse consigo mesmo.
— Houve alguma coisa no palácio — disse, arregalando os olhos, um amigo que ia ao lado do duque.
— Que há de ser, meu Deus? — murmurou assustada a duquesa, que seguia apoiada no braço do marido...
Quem chegou primeiro foi o marquês d'Etu. À medida que adiantava-se, o marquês precipitava os passos. Por fim, lançou-se para o pai, gritando:
— Roubado! Roubado!...
O príncipe dos cortiços esqueceu-se de saudar a duquesa e de apertar a mão do duque.
— Roubado! — exclamava, com os lábios esticados e o peito arquejante.
— Bom-dia, marquês! — disse-lhe friamente o duque.
— Roubado! — repetiu inconscientemente o marquês.
— O que explica a sua agradável presença em nossa casa?... Então...
— Roubado! — insistia o príncipe.
— Acalme-se, marquês! — aconselhou pausadamente o sr. de Santo Cristo. — Conversemos em primeiro lugar. Depois...
— Fui roubado!
— Prenderam o ladrão?
— Sr. duque.
— Oh! Sr. dr. Louro!... explique-me o motivo por que o vejo aqui hoje... Que negócio de roubo é este?...
— Roubaram-me! — interrompeu, fora de si, o marquês d'Etu.
— Sr. d'Etu, tranquilize-se, havemos de descobrir...
— Sr. duque — começou o chefe de polícia.
— Roubaram-me — cortou o marquês —, roubaram o anel de minha mulher!
— Conte, dr. Louro... — pediu o duque.
— Dr. Trigueiro, conte — repetiu o marquês.
— Dr. Louro, estou curioso...
— Dr. Trigueiro, estou desesperado...
— Ora, sr. marquês... — disse com impertinência o duque. — Sossegue! Deixe-me conversar com o doutor chefe de polícia... Havemos de achar o anel.
— Um anel de quinhentos mil-réis!... — gemeu prolongadamente o marquês.
— Sr. marquês — disse o chefe de polícia —, as joias hão de se encontrar.
— As joias? — interrogou o duque. — Então não se trata só do anel do sr. marquês?
— De minha mulher! — corrigiu o marquês d'Etu, no seu tom lamuriante.
— Sr. duque, o negócio é muito mais grave — disse o chefe de polícia.
O fidalgo coçou o queixo com o indicador, mergulhando a mão nas alvas barbas e disse, distraidamente:
— Sim?!...
E, voltando-se para um criado, que estava por trás dele, perguntou:
— O cocheiro já entrou com o carro?...
— Como o sr. duque disse que queria subir a pé...
— Já sei... Já sei... Diga-me se ele já recolheu o carro...
— Sim, senhor!
— Previna-lhe então para que não se esqueça de ver por que está mancando aquele cavalo...
O lacaio fez uma continência e retirou-se apressadamente.
O duque, do alto da sua estatura, deitou majestosamente por cima da cabeça dos circunstantes um vagaroso olhar para os gramados do parque verdejante à luz da formosa manhã; depois de algum tempo, voltou-se para o filho e para o chefe de polícia e disse-lhes muito friamente:
— Se o negócio é grave, é melhor conversarmos dentro de casa...
O chefe de polícia, meio enfiado por ver o pouco caso com que o duque tratava um negócio considerado grave pela polícia, teve de abrir passagem para o senhor de Bragantina, que, havendo parado com a chegada do marquês d'Etu, punha-se de novo a caminho para o palácio.
O príncipe dos cortiços, sempre exaltado e nervoso, teve de interromper umas coisas que dizia vivamente o dr. Trigueiro, para igualmente deixar seguir o duque.
Formou-se logo uma espécie de caravan imensa, que se foi alongando na direção da morada do duque de Bragantina.
À vanguarda, caminhavam os senhores da quinta, o marquês d'Etu, o dr. Louro Trigueiro, o mordomo do palácio e o amigo inseparável do duque, o seu médico, o dr. Jassey. Seguiam-se dois delegados de polícia, soldados, criados e trabalhadores e, no extremo da marcha, um bando de mulheres, tagarelando muito, com uns filhinhos redondos e sujos enganchados ao quadril e outros agarrados às saias.
Por cima da procissão, nadava um zunzum enorme e confuso.
O duque caminhava em silêncio, olhando tranquilamente para o arvoredo do parque, acompanhando com a vista as linhas caprichosas que as andorinhas traçavam no céu. A duquesa, com a dificuldade própria dos anos, aumentada pelos padecimentos, suspendia-se aos braços do esposo e olhava para o chão, seguindo calada como o duque.
No pórtico do palácio a caravan dividiu-se: os que iam à frente entraram no palácio. Os da retaguarda ficaram quase todos parados em grupos, diante das escadarias do edifício.
Havia lacaios do duque, jardineiros do parque e moradores da aldeola da quinta.
Falavam muito, mas à meia voz, como em respeito ao palácio.
— Digam lá o que bem quiserem... Para mim, o ladrão das joias é gente da casa — afirmava uma mocetona robusta e feia, remexendo os ombros e as gordas cadeiras...
— Eu também acho — concordava receosamente outra mulher de seus quarenta anos, com as mãos cruzadas sobre o ventre e um lenço amarrado à cabeça.
— Mas a corda da janela? — objetou de mau humor um lacaio.
— Ora, a corda! — replicou a mocetona. — A corda está lá porque a penduraram!
— Quem pendurou? Não foi quem teve necessidade de subir pela janela aberta?
— Ora qual, seu José, então de dentro não se podia atirar a corda?... Até aquele nó que lá está, não era possível que se desse, sem se achar muito à vontade debruçado na janela.
— Mas quem lhe disse, sua bruxa...
— Bruxa... Olha lá, hein!...
— Quem lhe disse que o ladrão deu o nó, estando cá embaixo?... Antes de dar o nó forte, ele atirou a corda, que é bem comprida, passou uma das pontas por cima do gancho, deu uma laçada com as duas porções, para a corda não escorregar; trepou até o peitoril...
— É uma história muito bonita, é; mas eu não acredito nada.
— Ao menos foi a explicação que deu o Inácio, quando descobriu o roubo — disse um velho jardineiro, entrando na conversa.
— Eu não quero falar mal dos outros — replicou ainda a teimosa mocetona —, mas isto até faz desconfiar que um ladrão de fora havia de saber onde estavam as joias?
— Isto lá não — contestou a mulher de lenço na cabeça, com o seu ar toleirão —, isso lá não... os ladrões sempre sabem onde estão as coisas; a prova é que roubam... Isso lá não
— Isso, isso, o quê, minha tola? — interrompeu a mocetona. — Você não sabe o que está dizendo... Não se meta aqui...
— Ah! sinhá Chica, não seja tão malcriada com a gente...
— Pois eu tenho culpa de que você seja idiota?...
— Idiota, não!... Por causa de umas sirigaitas sem coração é que a pobre da Emília está lá para morrer... Todo o mundo também a chamava de idiota... mas eram os malvados...
— Ora, é muito boa! — tornou a sinhá Chica, pondo as mãos na cintura como as asas de uma jarra. — É muito boa a Emília estar atrapalhada com a sua tísica! Não sei como se há de culpar os outros...
— Você não se lembra daquela vez que ela chorou por causa da Conceição?...
— Pois a Conceição veio cá com desaforos comigo... apanhou...
— É! É!... Mas se o seu Januário não fosse um pobre velho, você não havia de fazer mal à criança...
— Vejam só!... ah! ah!... O seu Januário é o primeiro a xingar a nora de maluca e a descompor a Conceição... Demais, a Conceição não tem nada com a Emília... Não é filha... Não é sobrinha... Ainda se eu desse no menino...
— Está bom! Está bom!... Não quero questões com a senhora...
— Que me importa!...
Enquanto as duas mulheres discutiam a sua questão pessoal, em outros grupos ainda se debatia vivamente o negócio do roubo.
A crença geral era que o ladrão das joias não viera do exterior.
Contra esta suposição protestavam, irritados, os lacaios do palácio. Ninguém, todavia, deixava-se levar pelos seus argumentos em defesa da classe, os quais se reduziam todos mais ou menos à história da corda explicada por Inácio, o descobridor do crime.
— Nada! Nada! — diziam. — Como é que um ladrão da rua poderia saber que o lacaio que saiu do palácio do marquês de ***, depois da reunião, levava uma riquíssima porção de joias? E, caso soubesse, por que não lhe havia tomado o cofre, aproveitando a falta de polícia de qualquer esquina sombria.