As Joias da Coroa/VIII
A festa do marquês de *** terminara cedo.
Às onze horas, o pequeno número de pessoas, que tinham concorrido a ela, começava a retirar-se.
Não tinha sido verdadeiramente um baile. Fora um pretexto para algumas horas de alegre palestra.
Os vizinhos, acostumados àquelas breves reuniões do marquês, não admiraram de ver cessarem antes da meia-noite os rumores festivos das salas iluminadas do fidalgo.
Os duques de Bragantina não haviam faltado ao especial convite que lhes fora dirigido. Mais ou menos às oito horas, apareceu na porta da sala principal do marquês o senhor de Santo Cristo apertado na mais rigorosa etiqueta. Ostentava no largo peito algumas das inúmeras condecorações de que se fizera merecedor pelos auxílios pecuniários que largamente distribuía.
Pelo braço, trazia a duquesa, séria, mas ricamente vestida e enfeitada de joias de fabuloso valor. Trazia um colar de diamantes, cheio de enormes pedras de uma pureza incomparável, que constituía o mais precioso legado da fortuna dos primeiros antepassados da duquesa.
Entre os outros adereços, havia um anel pertencente à duquesa d'Etu, que se achava por um motivo qualquer na caixa de joias da sra. de Bragantina e fora por ela casualmente trazido.
Começou a festa. As moças dançaram. Cantou-se. Houve excelente música e melhor palestra.
No fim de tudo, antes de se recolherem aos aposentos que lhes eram destinados, o duque e a duquesa despiram-se das joias que traziam.
A duquesa condicionou-as cuidadosamente em um bonito cofre lustrosamente envernizado que o marquês forneceu.
Como o duque de Bragantina tencionava partir com a esposa no dia seguinte, diretamente para Anatópolis, resolveu mandar as joias para o palácio.
Um criado de sua confiança, que o acompanhara à festa do marquês, foi incumbido de as levar. O homem tomou o cofre, montou o cavalo e, às 11 horas e meia da noite, entrava no palácio de Santo Cristo.
Na quinta, já todos dormiam àquela hora. Apenas uns criados conversavam à porta do palácio. O lacaio pediu-lhes que vigiassem o cavalo, enquanto ia guardar umas coisas, e entrou no edifício.
Foi até a sala grande do lance esquerdo da casa.
— Vou fazer um grande favor, deixa estar — murmurou ele.
E com o cofre que lhe havia sido confiado, dirigiu-se para o armário de espelhos, que se via na sala.
Na fechadura do armário via-se uma pequena chave. O criado deu-lhe volta. Um dos espelhos deslocou-se.
— À direita — murmurou o lacaio —, à direita... segundo o trato...
E colocou no canto direito da primeira prateleira do armário o preciosíssimo cofre...
— Agora, corre por conta dele — balbuciou ainda... — A chave eu levo... direi que não vi o particular, que é quem deve vigiar estas coisas...
Assim falando, o lacaio trancou a porta e guardou a chave. Apagou em seguida o gás e deixou a sala.
Ao sair do palácio, enfiava o pé no estribo do cavalo em que devia voltar para a casa do marquês, despediu-se dos homens que estavam à porta:
— Podem ir dormir... o sr. duque não volta hoje; vai amanhã para Anatópolis. Boa-noite.
Os criados seguiram o conselho do companheiro e, quando o viram desaparecer no escuro do parque, recolheram-se e trancaram as sólidas portas do palácio...
Uma hora depois, só duas pessoas andavam acordadas por esses lugares: Manuel de Pavia e Inácio.
No dia imediato à noite em que o leitor viu empenhados na sua empresa criminosa os dois homens de serviço do duque de Bragantina, foi Inácio a primeira pessoa que entrou na grande sala do armário.
A claridade pálida das cinco horas invadia o salão e iluminava modestamente as paredes. Estavam três janelas abertas.
Inácio corre para fora, gritando:
— Três janelas abertas! — exclamaram espantados os dois criados.
— Não é isso só!... Vejam aqui o armário arrombado... furtaram alguma coisa...
— Roubaram! Roubaram!
Mais outros criados se apresentaram.
— É preciso acordar o mordomo — dizia um.
— É preciso chamar o particular do duque que passou a noite fora do palácio.
— É preciso! — afirmava fortemente Inácio. — É preciso saber-se o que roubaram e quem foi o ladrão!
— Vamos acordar o mordomo.
— Chamem o particular.
Em poucos instantes, apresentou-se o mordomo assustadíssimo, metido num enxovalhado robe de chambre de grandes ramagens cor de rapé, com os olhos cerrados ainda pelo chumbo da soneira da manhã e a cara amarrotada de quem não se lavou ainda.
O mordomo levantou-se para acudir ao chamado insistente de um criado, que o fora prevenir de que tinham entrado ladrões no palácio.
— Oh! Como deixaram abertas as janelas? — gritou ele, dirigindo-se aos criados.
— Eu pensei que elas estivessem fechadas — respondeu Inácio com voz um pouco alterada. — De mais, quem costuma fechar este lado do palácio não sou eu... Quando examinei, as portas estavam encostadas... Esqueci-me de ver os trincos...
A voz de Ináci, comovida pelo medo que ele tinha de se ver apertado num interrogatório, foi-lhe útil, porque o mordomo supôs que aquilo fosse receio de ser despedido.
— Pois você está arranjado, meu amigo... Devia ter examinado... Está arranjado...
— Mas, sr. mordomo...
— Não sei... Você vai pagar caro o descuido.
— Olhem esta corda!... — gritou uma pessoa que fora procurar pelas janelas vestígios dos ladrões. — Olhem a corda!
Todos, inclusive o mordomo e Inácio, correram para a janela.
— Os tratantes! — disse sem mais exame o mordomo. — Subiram por esta corda! Que atrevidos!... E vocês não ouviram barulho?
— Nós dormimos lá embaixo... Além disso, os reposteiros não deixam ouvir-se o barulho que se faz na sala.
— O que dirá o sr. duque?... — diziam todos olhando para a corda que desaparecia pela hera da parede.
Aquele fato da escalada às janelas e do arrombamento do armário incomodava extraordinariamente o mordomo. Não menos incomodados se achavam os criados, certos de que seriam eles os responsabilizados...
Sem saber que resolução tomar, olhavam para a cara do mordomo.
O mordomo estava lívido.
— Ainda precisamos verificar o que é que os ladrões levaram — disse o mordomo. — Só o particular poderá nos informar... Foram já chamá-lo?
— Sim, senhor — responderam simultaneamente vários criados.
Como para confirmar esta resposta, fez-se uma grande bulha num aposento vizinho e precipitou-se na sala, arquejante, o particular do duque.
Era um pobre velho de mais de sessenta anos, que estava desde longa data a serviço do duque.
Sempre que este fazia qualquer viagem, o particular retirava-se do palácio e ia passar algum tempo com a família, que residia no arrabalde de Santo Cristo, a alguma distância da quinta.
Como o duque dissera na véspera que, da casa do marquês de ***, seguiria para Anatópolis, o particular, apenas o amo saiu com a duquesa para o baile, abandonou o palácio e seguiu para a casa da família.
Nenhum crime havia no procedimento do particular. A sua presença na quinta só era necessária quando aí estava o duque.
E se, por um motivo qualquer, como, por exemplo, para guardar as joias que os duques mandassem da casa do marquês, a fim de não levá-las para Anatópolis; se, por uma circunstância superveniente, ele se tornasse necessário, um criado iria chamá-lo...
Um criado apareceu-lhe na porta, conforme fora previsto.
Infelizmente, o motivo do chamado era mui diverso de quantas hipóteses pudera imaginar o particular.
— Entraram ladrões no palácio!... — foi o grito que o pobre velho ouviu, ao acordar.
— Um criado está aí dizendo que houve um roubo no palácio! — disse a pessoa que foi ao quarto desapertá-lo.
O particular saltou da cama, vestiu-se às pressas, desesperou-se com a franqueza da sua idade, que não lhe permitia maior agilidade; passou um pouco d'água no rosto e foi ter com o criado.
O criado contou a surpresa da manhã.
— Estou perdido! — exclamou o velho. — Estou perdido! Que confiança poderá mais depositar em mim o sr. duque?
E sem despedir-se dos filhos, que o cercavam fitando-o com os olhos espantados, saiu para a rua.
O criado que dera a notícia afagou carinhosamente os cabelos em desalinho das crianças, cumprimentou a assustada esposa do particular, dirigindo-lhe algumas palavras tranquilizadoras, e saiu em seguimento do velho.
O pobre homem, por um incrível esforço, vencia o peso dos anos e corria como um desassisado para a quinta do duque...
Estava encantador o dia... Uma transparente manhã difundia-se no ar. A perspectiva das ruas afunilava-se distintamente através da limpidez da atmosfera. As casas ainda tinham fechadas as janelas, como se temessem a inundação da luz. Sobre os telhados os gatos arqueavam a espinha nuns demorados espreguiçamentos matutinos. No fundo dos quintais os galos solfejavam a música risonha dos cacarejos. Nas árvores dos jardins, pingava o orvalho das folhas. As chaminés começavam a sacudir para o céu uns lenços diáfanos de fumaça azulada. O estômago dessas casas acordava primeiro que o rosto. Pelos passeios corriam criados e criadas levando nos braços cestos de compras, enfeitados de molhos verdes de couves e franjas de cebolas; pelo céu, corriam pedaços de nuvens com as bordas douradas pelo fogo da aurora.
Uma brisa sem rumo passeava à toa ao longo das paredes...
O particular do duque atravessava pelo meio de todo aquele admirável amanhecer como atravessaria uma tempestade: possuído da sua ideia, chegar ao palácio.
Andava sem ver, senão o chão que tinha de pisar.
As pessoas que estavam na quinta o viram passar apressado como se fosse acudir a alguém que pedisse socorro. Eram moradores da aldeia e trabalhadores do parque. Reconheceram o particular do duque e o acompanharam.
O particular subiu de um pulo as escadas do palácio e entrou na sala do armário, na ocasião mesmo em que o mordomo perguntava por ele.
Entretanto, o boato do roubo se espalhava, e toda a gente da quinta agrupava-se sob as janelas encontradas abertas, ou procurava entrar no palácio para ver com os próprios olhos o arrombamento do móvel.
— O que aconteceu, sr. mordomo? — perguntou o particular, logo que respirou...
— Veja este armário arrombado!
O particular sentiu que ia cair e agarrou-se ao armário de que se aproximara, trêmulo, mais morto que vivo.
O silêncio dos circunstantes deixou que se lhe ouvisse um grito surdo:
— Roubaram as joias!
O mordomo amparou o pobre homem:
— O que diz? — perguntou com susto.
— Roubaram as joias!... Aqui é que elas se guardam, antes de ir para a burra... Eu sabia que o duque ia mandar as joias, como sempre faz, quando vai com a duquesa a alguma reunião donde tem de seguir para Anatópolis... A culpa é minha, que retirei-me do palácio antes de receber o criado que devia chegar com as joias...
Estas palavras, pronunciadas a meio pelo particular, deixaram todos aterrados.
— É uma desgraça! — repetia o mordomo. — É uma desgraça!
— Estou perdido! — clamava o particular. — Levaram o colar da sra. duquesa... Vou verificar que joias faltam na burra da coroa...
A burra chamava-se da coroa, não sabemos se por ter na porta uma placa em forma de brasões, se por guardar uma maravilhosa coroa do duque cravejada de brilhantes, emblema da família Bragantina. Nessa burra guardava-se o que os duques possuíam em ouro e pedrarias. Por um dengue de vaidade fidalga estas riquezas não se diziam pertencentes ao duque ou à duquesa, mas simplesmente à coroa.
O particular, acompanhado pelo mordomo, foi ao gabinete onde estava colocada a burra e examinou as joias da coroa.
O resultado do exame foi desanimador. Faltavam os melhores adereços da duquesa, faltavam diversas condecorações do duque, e entre as joias da marquesa d'Etu, que estavam guardadas na burra da coroa talvez porque o marquês a considerava mais segura do que a sua, faltava um rico anel de brilhantes...
O particular ficou atordoado. Aquilo era uma catástrofe. Quando ele e o mordomo reapareceram na sala do armário, os criados viram-lhe os olhos rasos de lágrimas.
Entristecia ver-se o pobre homem.
Estava desvairado; não sabia para onde voltar-se. Sofria como se visse no remorso do seu descuido uns vigamentos de forca.
Ficou prostrado em poucos minutos, como se houvesse passado por uma crise de febre.
O mordomo, que resistia melhor ao peso da responsabilidade que lhe cabia, teve energia para tomar algumas providências.
Mandou imediatamente um recado ao palácio dos Bananeiras, narrando a descoberta do roubo e pedindo ao marquês d'Etu que mandasse dizer que procedimento devia ter em tais emergências; mandou outro portador ao palacete do marquês de *** a fim de, no caso de não haver ainda o duque partido para Anatópolis, dar-lhe notícia do ocorrido.
O primeiro portador chegou ao palácio com o marquês d'Etu, que quisera acompanhá-lo.
O segundo voltou dizendo que o sr. duque resolvera, por se achar um pouco incomodado, adiar a partida para Anatópolis, e estaria em Santo Cristo antes do meio-dia. À vista disso, julgara inútil incomodar o amo com a notícia.
O mordomo aprovou a iniciativa do criado, principalmente porque se achava em Santo Cristo o marquês d'Etu e substituiria perfeitamente o duque, para resolver conforme o caso exigia.
O portador que fora ter com o sr. d'Etu não pudera informá-lo, por não saber das joias que faltavam. Um terrível pressentimento, porém, avisou ao príncipe dos cortiços de que ele também fora vítima dos ladrões.
Mandou aprontar, com a maior brevidade, o carro, meteu-se nele, mal disfarçando a meia toilette de manhã, e foi chegar à quinta de Santo Cristo ao mesmo tempo que o portador que o visitara.
A entrada do marquês no palácio do pai foi como a de uma bala na torre de um couraçado.
Sem encontrar degraus nem dificuldades, o marquês chegou à sala do armário como que de um salto. Os que aí estavam assustaram-se com a sua entrada. Passou-lhes repentinamente pelo cérebro a ideia de um assalto no palácio.
Não era, felizmente, coisa tão medonha.
Quando, depois de um estrondo, o reposteiro da entrada ergueu-se bruscamente, não foi uma horda vandálica que invadiu o salão, foi simplesmente o filho do duque de Bragantina.
— Roubaram-me alguma joia? — exclamou ele, caindo sobre o mordomo como uma onça.
— Sim, sr. marquês — respondeu o mordomo, com a voz tímida e recuando instintivamente.
— Que foi?... — rugiu o marquês. — O que me roubaram?
— Um anel de brilhantes!
— Um anel de brilhantes! — explodiu o fidalgo.
— Sr. marquês!... — ponderou o mordomo. — É cedo talvez para V. Exa. incomodar-se.
— Por quê?... Por quê?... — interrogou furioso o sr. d'Etu.
— Porque eu falo unicamente por suposições.
— Então como tem a ousadia?!...
— Perdão... mas, suposições bem fundadas...
— Explique-se! Não me enfureça!
— Perdoe-me, vossa excelência, se o desgosto...
— Diga-me por que são fundadas...
— São fundadas... porque os srs. duques, quando vão a alguma festa, tencionando depois seguir para Anatópolis, sem retornar aqui ao palácio, mandam, para guardarmos, as melhores joias.
— E o meu anel?
— O anel de vossa excelência é das melhores joias...
— E o que tem isso?...
— A sra. duquesa, tendo o levado, necessariamente mandou-o entre as joias que vieram ontem.
— Entre as joias roubadas!... — bradou o marquês, dolorosamente.
Os criados continuavam enchendo a sala, como que esperando ordens.
O marquês, como se notasse repentinamente a presença deles, voltou-se ex-abrupto e gritou:
— O que querem vocês aqui?
Os criados, movidos por uma só mola, baixaram um cumprimento e, com a sua seriedade obediente e servil, afastaram-se de costas alguns passos, saindo depois todos por um dos lados da sala.
O particular do duque, que estivera inertemente encostado a uma janela, fugiu para o seu aposento.
O marquês ficou só com o mordomo, que já completara o vestuário, deixando o robe de chambre.
O fidalgo teve, então, um acesso de furor. Começou a trocar largas passadas pelo soalho como um andarilho mecânico a que se tivesse dado corda.
— Roubado! — repetia. — Roubado!
Quando passou-lhe o acesso de raiva ambulante, o marquês assumiu um ar de desconsolação:
— Uma joia de tal preço!... É possível?!
Depois de ter respeitado por algum tempo o desespero do marquês, o mordomo perguntou receosamente:
— Que acha V. Exa., que eu devo fazer?
O marquês não deu resposta imediatamente. Esteve abstrato alguns segundos e depois perguntou:
— O que está dizendo?
— V. Exa. ordena que se chame a polícia?
— Ah! Pois ainda não chamou?
— Queria antes aconselhar-me...
— Ora, aconselhar-se!...
— Vou mandar chamar o chefe de polícia...
— Mande!... Mande!... Mande!...
O mordomo retirou-se. O marquês foi até uma das janelas da sala.
O sol acabava de levantar-se e trespassava o arvoredo do parque com largas lâminas de luz vermelha. Na espaçosa sombra que projetava o palácio, estava muita gente olhando para cima, na direção da corda pendurada ao gancho da janela.
O marquês olhou na mesma direção e descobriu a corda.
— Ah! — disse consigo. — Por ali subiram os miseráveis!
Depois voltou a vista para curiosos do parque e pôs-se a procurar involuntariamente o ladrão naquela multidão. Cada cara embasbacada afigurava-se-lhe a de um malfeitor disfarçado.
— Ah! Se o apanho! — murmurou.
E, tendo ouvido passos na sala, saiu da janela.
Era o mordomo.
— O chefe de polícia vem? — perguntou-lhe o marquês.
— Vai chegar em um momento.
— Bem. Veremos se esta polícia serve para alguma coisa.
— Creio que a polícia descobrirá tudo...
Passado algum tempo, um criado apareceu na sala e anunciou o sr. doutor Louro Trigueiro, chefe de polícia.
— Diga-lhe que entre — mandou o marquês.
O criado retirou-se.
Impaciente, o sr. d'Etu deixou o mordomo e correu ao encontro do chefe de polícia. Meteu uma cabeçada no reposteiro para não perder tempo em afastá-lo...
— Vi! — exclamou involuntariamente.
Acabava de dar um encontrão em alguém. Do lado oposto do reposteiro ouviram-se algumas pragas mal contidas.
As mãos de duas pessoas levantaram a mesma ponta de pano, e o marquês esbarrou no chefe de polícia.
Não move tempo para explicações a propósito da cabeçada.
— A sua presença é necessária aqui, sr. doutor.
— Sr. marquês — respondeu graciosamente o chefe —, para tudo...
— Houve um roubo no palácio!... Roubaram-me um anel, um anel, sr. doutor!
— E muitas joias do sr. duque — concluiu o mordomo, notando que o marquês só se incomodava consigo.
— É grave — disse o chefe de polícia, abandonando o sorriso cortês de que se revestira ao entrar, e tomando uma seriedade de Javert.
— Gravíssimo! — superlativou o marquês. — Pois um anel!...
— E tantos adereços!... — emendou ainda o mordomo.
— Onde está o armário que disseram-me que se arrombara?...
O marquês e o mordomo mostraram ao Dr. Louro o arrombamento, as janelas que haviam aparecido abertas, a corda...
— Um caso de roubo... — murmurou o chefe de polícia, diagnosticando com uns ares de quem entende...
— De quem se desconfia? — interrogou ele, voltando-se para o mordomo.
— Sr. doutor, não quero aventurar...
— Eu desconfio de todos! — exclamou precipitadamente o marquês.
— Como não há criminoso apontado por sérias aparências, vejamos os primeiros responsáveis... mas... antes disso... o sr. duque de Bragantina partiu para Anatópolis?...
— Não, senhor — respondeu o mordomo.
— Não partiu? — perguntou admirado o marquês.
— Não, senhor... O sr. duque resolveu adiar a viagem...
— Então já lhe comunicaram?... — perguntou o chefe de polícia.
— O sr. duque está em casa do sr. marquês de ***, e como deve chegar daqui a uma ou duas horas pareceu-me bom não incomodá-lo com...
— Seria, na verdade, inútil... — concordou o chefe.
— Mas, antes da chegada do sr. duque, devemos... — começou o mordomo.
— Sim, devemos quais são os primeiros culpados de se haver dado o roubo — concluiu pausadamente o chefe de polícia.
O mordomo ofereceu cadeiras ao marquês e ao sr. Louro Trigueiro e conservou-se respeitosamente de pé.
O marquês sentou-se e cravou os cotovelos nos joelhos, apertando a cabeça entre as mãos. Nesta posição conservou-se imóvel.
O chefe de polícia, depois de refletir alguns momentos, olhou para o mordomo, e, com uma toada de inquisidor, perguntou:
— Quem é o encarregado de guardar as joias do sr. duque?
— É o seu particular...
— Onde são guardadas as joias?
— As joias da coroa guardam-se numa burra. Quando, porém, o particular não vai guardá-las à burra, são depositadas provisoriamente naquele armário, que é lugar seguro; porque, a não ser em caso extraordinário, só pessoas de confiança têm entrada nesta sala...
— Que pessoas de confiança?...
— O particular, o criado Inácio ou o Joaquim que varrem e espanam o palácio...
— São estes criados os encarregados do fechamento das janelas... não é assim?
— Sim, senhor.
— Bem... Agora, diga-me: quem foi que guardou no armário, ontem à noite, as joias do sr. duque?...
— Foi um criado de muita confiança a quem, por estar com o amo em casa do sr. marquês de ***, o sr. duque entregou as joias e mandou...
— Este criado entregou as joias ao particular?
— Não, senhor. O particular tinha saído do palácio, o criado entrou e depositou, segundo o costume, as joias no armário...
O mordomo não sabia se era exato aquilo que estava dizendo, mas, como não queria manifestar descuido de suas obrigações, improvisava conforme o mais provável. Involuntariamente dizia a verdade.
— Pelas suas supostas — disse o chefe de polícia, respirando largamente —, eu descubro quatro pessoas responsáveis pelo crime...
O mordomo arregalou os olhos e ficou pálido. Imaginou-se no número de responsáveis.
— Em primeiro lugar — enumerou o Dr. Louro —, o criado que guardou as joias no armário, sem prevenir ao particular; depois, o particular que devia estar no palácio para receber as joias; em terceiro lugar, os dois criado que deviam ser mais zelosos para que não ficassem janelas abertas.
O mordomo, muito satisfeito por não ter sido incluído no rol dos responsáveis, perguntou apressadamente ao chefe de polícia:
— V. Exa. quer que eu chame essa gente?...
— Homem... eu hei de interrogá-los, mas desejo primeiro conversar com o sr. duque; contudo parece-me que não seria mau trocar algumas palavras com o criado que trouxe as joias...
— Agora não é possível... O criado voltou à casa do marquês de ***...
— Deve, portanto, chegar daqui a pouco com o sr. duque...
— Infalivelmente.
— ...Eu esperarei pelo sr. duque — terminou o chefe de polícia.
— Ah! o meu anel! — suspirou o marquês na sua cadeira.
— Havemos de encontrá-lo, sr. marquês — disse o mordomo.
Nessa ocasião levantou-se o reposteiro de uma das portas da sala, em um criado de libré apresentou-se anunciando:
— Está servido o café.