As Joias da Coroa/XI
O chefe de polícia deu ao duque informações de tudo quanto sabia, inclusive a descoberta de um formão e um macete forrado de pano, pertencentes a uns operários, que trabalhavam pelas proximidades da quinta. Os operários, não achando as ferramentas, e ouvindo falar de um arrombamento no palácio, vieram ter com o mordomo do duque. Antes mesmo que tivessem contado o furto de que haviam sido vítimas, apareceu um criado e apresentou o formão e o macete, declarando que os havia apanhado no parque, exatamente abaixo das janelas amanhecidas abertas.
Soube assim o senhor de Bragantina a desagradável surpresa de Inácio, encontrando três janelas abertas no salão do armário e o armário arrombado; as providências do mordomo, o susto do particular e a sua prostração subsequente, a chamada do marquês d'Etu, a fúria do príncipe dos cortiços, a chamada do dr. Louro Trigueiro, as indagações a que procedera na qualidade de chefe de polícia...
Soube mais: que dessas indagações o chefe de polícia concluíra a existência de quatro culpados, aos quais não interrogara, por não querer adiantar-se muito na diligência, sem primeiro entender-se com o duque.
— Andou muito bem — aflautinou o fidalgo —, seria uma imprudência de sua parte adiantar-se muito em um negócio que só a mim diz respeito...
— Perdão — ousou contestar o chefe de polícia —, a V. Exa. e à lei...
— Ora!... a lei, a lei... Está-me agora o senhor com a lei, como certo sujeitinho que eu conheço, com a honra... Quer saber o que é a lei? Dux prudens imperat, disse não sei que escritor latino, creio que Anabasis; o capitão prudente manda; também já vi um político traduzir: "O poder é o poder"... Pois isto é que é a lei... Quem pode, alisa-lhe a barriga... Cá para nós; a lei nunca me preocupou... Não me fale muito, nessa senhora...
O chefe de polícia, abafando uns pequenos protestos das suas recordações da artinha, deu uma risadinha amável de quem sabe viver, e concordou tacitamente.
Deste modo terminou a conversa particular do duque com o dr. Louro Trigueiro.
O marquês d'Etu estava frenético, porque o duque, apresentando-se na sala, não fora imediatamente consolá-lo da desventura de haver perdido um anel de brilhantes.
Consolou-se um pouco, vendo o duque em seguida à conversação que mantivera em voz baixa com o chefe de polícia, mandar chamar os quatro indivíduos a quem se atribuía a responsabilidade do roubo.
O primeiro que apareceu foi o criado fiel a quem tinham sido confiadas as joias, em casa do marquês de ***.
O criado veio tranquilo, como se o houvessem chamado para dar uma ordem. A sua fisionomia calma arredava toda a suspeita de que aquele homem fosse cúmplice de um ladrão.
— Sr. duque, sr. dr. chefe de polícia — disse ele gravemente, com uns gestos de homem de sociedade —, quando me foram entregues as joias, dirigi-me incontinenti para aqui. O meu cavalo veio depressa. Reparei bem que ninguém deu atenção à minha carga. Mesmo as ruas estavam quase ermas... Aqui chegando, procurei o sr. particular para dar-lhe o cofre. Não o encontrei. À vista disso tranquei por minha conta as joias no armário e voltei imediatamente à casa do sr. marquês.
— E o que fez da chave do armário? — perguntou o dr. Trigueiro.
— Levei-a comigo e hoje, quando aqui cheguei, acompanhando o sr. duque, entreguei-a ao sr. mordomo.
O mordomo que estava presente afirmou a veracidade do fato.
— O que diz o sr. dr. chefe de polícia deste depoimento? — perguntou o duque, examinando o semblante do funcionário.
— O que diz V. Exa.?
— Digo que é a garantia da inocência deste homem em todo o negócio...
— Também o digo...
— E acrescento: que patenteia a culpabilidade do particular...
— Realmente... conquanto me pareça que o lacaio podia ter ido à casa do particular, parece-me também que este não devia faltar à hora do serviço...
— Sim, senhor! Houve incúria excessiva... Há motivo de grave suspeita... Ele há de ser preso.
— Será!... — reforçou o dr. Trigueiro fazendo salamaleques... — E será!...
— Agora, ouçamos aquele marmanjo — disse o duque, olhando para a porta da sala que dava para o interior.
Acabava de aparecer um criado de grande estatura; reforçado, figura de tambor de porta-machados. Era Inácio.
Parou diante do duque, com um estremecimento nervoso agitando-lhe os dedos. Estava impressionado.
O chefe de polícia, graças ao faro do ofício, começou a desconfiar daquele sujeito.
O duque tomou a palavra:
— Quem foi que ontem fez o fechamento do lance esquerdo do palácio?
O criado titubeou dois segundos e respondeu com uma voz trêmula:
— Eu...
— E por que deixou abertas as três janelas?
— As janelas estavam cerradas... supus que os trincos estivessem corridos.
— Supôs?... Devia ter verificado...
— Devia! — disse o chefe de polícia.
— Devia!... — gritou o marquês d'Etu, que acompanhava com grande interesse o interrogatório...
— Suspeito muito desse descuido... — falou o senhor de Bragantina.
— Eu também... — ajudou o chefe de polícia, como quem diz ora pro nobis.
— Também eu! — tornou a gritar o príncipe dos cortiços.
— Sr. dr. Louro — disse o duque —, este criado deve ser detido como suspeito...
— Assim me parece...
— Assim deve ser... — afirmou o marquês d'Etu. — Já disse ao sr. Trigueiro que desconfio de todos; desconfio muito particularmente deste senhor e do tal particular, que nem ânimo tem de apresentar-se.
Em seguida, o chefe de polícia ordenou a prisão de Inácio, confiando-o à guarda do delegado presente e disse que estava livre o primeiro criado interrogado.
Pouco depois de Inácio apresentara-se o criado Joaquim, encarregado como ele pelo fechamento do palácio. Como, porém, o serviço do lance esquerdo não correra por sua conta na véspera, foi inútil interrogá-lo.
Chegou a vez do particular.
O velho sexagenário entrou na sala. Tinha os olhos injetados ainda de choro. O seu andar era trôpego como se houvesse sofrido um acréscimo de dez anos de idade.
Todos os que se achavam no lugar sentiram no peito um pancada de compaixão.
Ser-se severo com aquele homem era uma crueldade!
O particular encaminhou-se trêmulo, cambaleante, para o duque.
Ia pedir perdão. Ia declarar-se culpado, mil vezes culpado, arremessar aos pés do amo toda a sua grande existência de atenções contínuas para com ele; fazer dos seus cabelos brancos tapete para todas as iras do fidalgo, rastejar no chão, chato como a humildade, não para que o não punissem, punissem-no duramente; mas, para que o duque de Bragantina perdoasse a ofensa que lhe fizera a sua incúria.
O particular tinha pelo amo uma veneração que tocava as raias do amor.
Este sentimento começara pela gratidão de um coração profundamente, infantilmente terno. Fora recrudescendo com o tempo, e era então uma espécie de apaixonamento doentio. A vida que levava, fácil e passiva, concorrera muito para este estado de espírito. Desagradar ao duque era coisa que o horrorizava. Imagine-se as torturas que esmagavam-lhe o coração, desde a notícia que recebera pela manhã. Pouco se lhe dava que o demitissem, que a falta de pão reduzisse-lhe a família à esmola; pouco lhe importava, mesmo, que o metessem num cárcere... Queria apenas que o amo não o ficasse odiando pela incúria que dera lugar ao crime...
Era preciso que o duque o perdoasse... Este pensamento lia-se-lhe nos traços dolorosos do rosto...
— Aí vem o mais culpado — disse o duque ao chefe de polícia, vendo aproximar-se o particular. — Não há mais perguntas a fazer, prenda-o e leve-o daqui.
O tom das palavras do senhor de Bragantina não admitia réplicas.
O dr. Louro Trigueiro desdobrou uma das costumadas zumbaias e marchou ao encontro do particular.
— Preso — disse-lhe. — O senhor está preso!
O velho quis falar, mas um violento soluço atravancou-lhe a voz. Pôde apenas dizer doloridamente:
— Preso!
E cobriu os olhos com as mãos.
Nesse momento o duque perguntava ao mordomo:
— Então quando se almoça hoje?
— Esperava apenas — respondeu o mordomo — que o interrogatório terminasse para anunciar a V. Exa. que o almoço está servido.
O chefe de polícia, apesar da rijeza de coração, peculiar aos instrumentos da justiça pública, sentiu-se comovido à vista do sofrimento do particular.
— Venha almoçar, dr. Louro... — disse-lhe o duque retirando-se para o interior do palácio.
O sofrimento daquele pobre ancião, incapaz de causar o menor dano, aquela voz ardente desfazendo-se no pranto que saía-lhe por entre os dedos ressequidos da mão com que cobria o rosto, as lágrimas pungentes daquela boa criança de sessenta anos, tudo era digno de uma delicadeza filial, mesmo da parte de um representante da Justiça. Mas o duque acabava de chamar-lhe para o almoço...
O dr. Louro Trigueiro teve pois de entregar ao seu delegado o novo preso como entregara Inácio.
O delegado retirou-se com os presos e foi encontrar o colega, que por essa ocasião voltava com Manuel de Pavia das despedidas que esse fora fazer.
Minutos depois, dois carros saíam pelo portão principal da quinta de Santo Cristo.
Um dele transportava Manuel de Pavia e Inácio, guardados por um dos delegados e um policial disfarçado; o outro levava o velho particular, vigiado, ou melhor, sustentado para não cair no tapete do veículo, pelo segundo delegado.
Iam para a casa de detenção.
Em caminho, Manuel de Pavia e Inácio trocaram olhares expressivos, enquanto os homens da polícia se distraíam vendo os basbaques que paravam nos passeios para espiar o interior do carro. Inácio, que sentira um violento susto ao ver que o ladrão das joias fora preso, percebeu que aqueles olhares significavam que tudo ia bem. Tranquilizou-se...
O carro do particular parecia mais rodar para um hospital com um doente do que para uma repartição de polícia com um criminoso.