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As Joias da Coroa/XII

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Sem novidade passou-se o dia. Depois dos interrogatórios, caiu a brisa do extraordinário e a vida do palácio voltou à calmaria podre da sua insipidez eterna.

Findo o almoço, o marquês d'Etu e o chefe de polícia, deixaram a morada do senhor de Bragantina.

— Deixo tudo nas poderosas mãos de V. Exa. — disse o chefe de polícia, ao despedir-se do duque. — Confesso a minha impotência neste emaranhado negócio. Diante de certas dificuldades, não há remédio senão confessar-se a gente obtuso... Juro-lhe que aquela corda do gancho lança-me num oceano de dúvidas e hipóteses que confundem-me toda a perspicácia... Mas o que para mim é um obstáculo, pode não sê-lo para a perspicácia de Vossa Excelência... Realmente entre nós, permitindo a familiaridade, entre nós há a distância que vai de soberbo carvalho para o débil trigo... Desde que Vossa Excelência deseja honrar a polícia, revestindo-se do caráter dela, nada mais tenho a fazer do que curvar-me à imerecida honraria e fico inteiramente sossegado. Há de fazer o carvalho o que não pôde o trigo...

Estes cumprimentos eram a conclusão e a consequência de uma conversa que houvera durante o almoço do duque.

Estavam dois carros na larga avenida de frente do palácio. Um deles pertencia ao marquês d'Etu, o outro esperava pelo chefe de polícia.

Antes de se separarem o marquês e o chefe, o príncipe dos cortiços, que não estava mais tranquilizado, apesar da certeza que o duque lhe dera de que haviam de ser achadas as joias, disse ao funcionário em despedida:

— Vejam lá!... Vejam lá!... a época não está boa... eu levanto os aluguéis...

A duquesa fora informada de tudo o que tivera lugar no palácio. O roubo das joias não lhe causou maior abalo do que ao duque. Incomodou-a unicamente o fato de se achar entre as joias roubadas o anel da nora. Apesar disto ninguém ouviu-lhe uma palavra de censura contra os descuidados servidores de seu marido. A perda das joias não lhe deu que pensar, e a duquesa, comprometendo-se consigo mesma a fazer presente de algum adereço de valor à nora, voltou-se para as ligeiras atenções domésticas que a ocupavam.

Quando o sol resvalava pelas montanhas do ocidente saiu a fidalga a um dos habituais passeios da tarde.

A essa hora, já não se lembrava dos sucessos da manhã.

Outro também era, então, o alvo dos pensamentos do duque. No seu misterioso gabinete, ruminava uma ideia alegre, juvenil: visitar à noite um menina.

Havia tempos que certa formosa imagem se lhe gravara na retina e no cérebro. Era um capricho excepcional.

Passeando, uma vez, pela quinta, vira a brincarem pela relva do parque duas meninas. Andavam pelos quatorze ou quinze anos. Duas avezinhas arrulhantes, graciosas, correndo pela grama, arrancando flores aos canteiros e pétalas às flores, para cobrirem o lago de mimosas canoinhas, que o menor vento carregava logo para as criptas escuras de rochedos artificiais, onde mal se viam, como roscas de serpentes adormecidas, as raízes das árvores que sombreavam as águas.

Depois de muito brinquedo, uma delas sentou-se à beira do gramado e cruzou os pés; a outra sentou-se ao lado da companheira.

Conversaram; falaram das canoinhas de pétalas; uma das canoas, até, levara a bordo uma linda aranha microscópica de cor vermelha; esta fora a de Claudinha; a da Conceição levara uma formiga muito preta que andava à roda com medo de cair no lago, agitando dois cabelinhos compridos, que tinha na cabeça. Falaram das nuvens, que formavam bichos nos ares; riram de ver uma nuvem que parecia dois gatos brigando...

Depois de algum tempo, uma das meninas deitou a cabeça no colo da outra.

Não tinham visto o duque que se aproximava, passeando e observando-as.

Uma das donzelinhas enfiou uma palha no ouvido da amiga que estava deitada no seu colo. Esta deu uma grande risada e moveu o corpo nervosamente, rolando no chão.

— Faz cócega, Conceição? — perguntou a que estava sentada.

A que estava deitada, a mais bonita das duas, não respondeu, mas rolou de novo para junto da companheira, como pedindo mais cócega...

A companheira repetiu o brinquedo. O fio da palha lá foi ao fundo da concha do ouvido fazer rir a amiguinha. Nova risada de criança ressoou no jardim. Pela segunda vez rolou a alegre menina pela grama.

Nessa ocasião, passou por elas o duque. A que estava sentada, que ria-se da amiga, ficou muito séria. A outra, vendo que o duque olhava para ela, ergueu-se toda enrubescida em sentou-se depressa, puxando o vestido para cobrir a alvura das meias que o brinquedo descobrira...

O duque de Bragantina prosseguiu, sorrindo; e várias vezes voltou a cabeça para observar as rolinhas que continuavam a divertir-se no parque, aproveitando as últimas claridades do belo dia.

Desde essa ocasião, uma ideia fogosa se enroscara à espinha dorsal do senhor de Bragantina. Era uma coisa irresistível como um sopro de Mefistófeles; o duque não sossegava... Conversara com o seu confidente Pavia; não conseguira sossego...

Era isto o que pretendia em profundas cogitações o fidalgo de Bragantina no seu gabinete.

Foi-se a tarde. Veio a noite. A noite adiantou-se. Quando era bem tarde o duque saiu de seu gabinete. Deixou depois o palácio e foi para o parque.

Ninguém estranhou a saída do duque. Quando tinha motivos de preocupação, ele costumava expor o crânio aos resfriamentos da noite.

Julgava-se que ele estava preocupado com o negócio dos povos... Pouco de estranhar, portanto, a saída fora de horas...

Estava uma noite olímpica.

As estrelas mantinham-se no espaço como um turbilhão pasmoso de luminosa poeira, levantada por furacões desconhecidos...

Uma aragem igual e constante passava pelas árvores, produzindo um rumor comparável ao de muitos regatos ciciando em coro. Os lagos do parque afetavam um negror profundo, cortado de vez em quando pelo ziguezague sinuoso e brilhante do reflexo dos lampiões, dispersos nas alamedas como sentinelas perdidas.

Com toda a escuridão, a noite estava formosíssima e tinha apreciáveis encantos.

Sentiam-se perfumes, ninguém via as flores; ouvia-se um chocalhar que fazia sede, ninguém via a cascata; cantavam grilos, ninguém via os insetos...

Reinava a noite em toda a sua majestade. Somente resistiam-lhe os lampiões, os reflexos do lago, o turbilhão dos astros e uma chusma brincalhona de pirilampos que cabriolavam no mato como estrelas fugidas do céu...

O duque errou durante algum tempo pelo parque, embebido em pensamentos que lhe traziam sorrisos à flor do rosto. Refletia na sua força que o fazia triunfar dos homens e das mulheres. Era como um rei: rei pelo dinheiro e rei pelo sangue. Não havia conta para aqueles que o rodeavam como miríades de satélites, cada qual mais empenhado em causar-lhe alegria. Tinha visto o curioso espetáculo de todas as coisas que o comum dos homens apelida sagradas prostituírem-se-lhe aos pés. Vira a justiça despedaçar a venda dos olhos para buscar a que seria agradável a ele; vira a honra entreguar-se-lhe como uma taverneira sem vergonha; vira a dignidade feita baixeza; a honestidade feita impudor; a virtude feita hipocrisia; a hipocrisia feita descaramento; o descaramento feito arma de vitória... Vira o mundo transformado em torno dele... tudo somente pelo poder do seu nome! Era bem forte!

Contava mais vitórias do que Napoleão. E somente havia uma diferença entre o conquistador e ele. É que Napoleão triunfara da força e o duque triunfara da fraqueza. Os principais feitos do general se haviam passado no campo das batalhas e os do duque no segredo das alcovas.

Apesar de seus brilhantes precedentes, o fidalgo não estava totalmente seguro dos resultados dos cometimento que ia levar a cabo.

O Manuel fizera-lhe saber que a caça era arisca; tinha uma inocência petulante e esquiva, capaz de frustrar a mais juanesca estratégia...

Muitas vezes, é certo, havia encontrado a inocência no seu caminho, mas conseguira levá-la de vencida com palmadinhas e sorrisos, achando por fim como última resistência algumas lágrimas sem significação.

Desta vez, contudo, o caso afigurava-se-lhe um pouco mais árduo; a inocência vinha armada de brejeirice e sarcasmo; com certeza seria difícil. Há, porém, frutos pelos quais se dá de boa vontade o incômodo de trepar à árvore. Quantas vezes não se fere a gente em espinhos para tirar uma rosa?

Impelido por esta ideia, o duque de Bragantina tomou resolutamente a direção da casa do seu íntimo Manuel de Pavia.

De longe, pelo ar, vinham notas de bronze, sonolentas como bocejos... Marcavam meia-noite...