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As Minas de Prata/II/XVI

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Seriam dez horas da noite. A cidade, muito havia que repousava; não se ouvia nas ruas desertas senão o passo vagaroso e duro dos quadrilheiros que voltavam da ronda noturna depois do toque de recolher, e o piso lesto de algum jogador ou namorado que ao abrigo das trevas buscava a espelunca da tavolagem ou a rótula da amante.

À porta de uma casa da Rua da Palma, que já nos é conhecida, parou um vulto embuçado, que bateu sutilmente, mas com um modo simbólico; o postigo da porta logo abriu, e tornou a fechar mal desapareceu o noturno visitante. Daí a instante outro vulto e outro até contarem-se dez com o primeiro, foram entrando a intervalos e pela mesma forma. Então ouviu-se o baque dos ferrolhos corridos e da tranca apertada contra a porta, sinal de que nenhum mais era esperado.

A casa do mercador Samuel era construída de encontro à encosta oriental da montanha, que serve de assento à cidade; na frente era sobrado e nos fundos casa térrea, ao que parecia ao menos. Havia porém por baixo uma sala subterrânea onde tinha o judeu escondido o seu cofre, e para a qual se entrava por um alçapão. Foi nesse aposento que os dez vultos, sabedores dos escaninhos da casa, se reuniram a um e um.

Na ponta de uma banca longa e rasa, onde se viam o livro sagrado do Antigo Testamento e outros símbolos da religião judaica, estava sentado o velho Samuel pensativo e cabisbaixo; em face dele uma lâmpada mortiça lhe esclarecia o rosto adunco e hirsuto. Os outros, à medida que entravam, diziam pausadamente a saudação habitual:

— O Deus de Abraão e Jacó vos dê força, venerável rabino.

Depois sentavam-se ao longo da mesa de uma e outra banda mais ou menos afastados conforme o grau de cada um. Quando o número ficou completo, Samuel erguendo a fronte deu o sinal da prece.

As cenas que seguem pelo seu encadeamento com a história não poderiam ser bem compreendidas sem a recordação de certos acontecimentos do tempo.

Continuava entre a Espanha e a Holanda a guerra que havia começado em 1579; porém nesse último país dividia-se a opinião a respeito da conveniência de sua continuação.

O partido da paz ganhava cada dia novas forças, apesar dos grandes esforços de Usselincx. Esse chefe ilustre do partido da guerra, diz Netscher, fixou a atenção sobre o Brasil, donde já exportava a Holanda anualmente o valor de 4.800.000 florins em açúcar, afora madeira de tinturaria, algodão e outras mercadorias. Não obstante a magnífica perspectiva dessa conquista, que se antolhava de fácil execução pelo desamparo em que deixava a Espanha suas colônias de origem portuguesa, preponderou o voto da paz nos Estados-Gerais, e concluiu-se um armistício de doze anos, que não foi respeitado pelos contrabandistas nas colônias.

Ao tempo em que vai correndo esta crônica, nos princípios do ano de 1609, não era ainda chegada ao Brasil a notícia da trégua; e portanto não haviam cessado as hostilidades, como não cessaram mesmo depois, ainda que de um modo mais encoberto. Ora os judeus da cidade do Salvador, como os de todo o Brasil, ameaçados da revogação da lei de 30 de junho de 1601, que lhes permitiu a passagem à colônia, apesar de a haverem comprado por 200.000 cruzados, faziam votos pela continuação da guerra e alimentavam a secreta esperança de ver o Estado do Brasil passar ao domínio da Holanda, a quem na falta da língua e da origem, os ligava o santo e poderoso vínculo da religião.

A esse fim tinham mandado a Haia mestre Brás com a carta dirigida a Usselincx; e era com esse elemento que o ilustre chefe da guerra acenava àquela nação de mercadores e marinheiros para as riquezas fabulosas da terra de Santa Cruz. A mensagem dos judeus tivera o efeito de ativar mais o corso nas costas do Brasil e estender o contrabando; porém a esperada conquista da cidade do Salvador era ainda um projeto, que só mais tarde, em 1624 veio a realizar-se.

Entretanto não perdiam os judeus da Bahia a esperança de sua redenção, e consolavam-se mercando por contrabando com os navios holandeses, que visitavam nossos mares, as novidades da terra, como açúcar, pau-brasil e algodão, em troca dos produtos europeus, adquirindo nesse tráfego avultados capitais, que traziam bem aferrolhados. Servia-lhes de agente nessa empresa arriscada o ardiloso mestre Brás, que além da boa espórtula, também lucrava encartar a sua bisca na carga do navio.

O pescador, que na véspera de Reis entrara na taberna, não era senão o capataz da companhia que ele tinha de espreita ao longe da praia para anunciar-lhe a chegada do barco contrabandista: por meio de um jogo de lanternas de cor azulada, anunciavam os holandeses para a terra a sua chegada. O espia a comunicava ao Brás, que avisava Samuel, e partia a entender-se com o comandante.

Terminada a prece, Samuel tirou do seio da oparlanda um papel dobrado em forma de carta, e dirigiu-se aos outros rabinos.

— Reuni-vos, veneráveis irmãos, para comunicar-vos que é chegado o navio que esperamos. Nosso irmão Brás me deu aviso ontem tarde da noite, e logo partiu a entender-se com o comandante e saber o que nos trazia da Europa. Eis por que só hoje nos achamos aqui juntos para tratar dos nossos interesses. O navio tem pouca demora, e portanto apressai vossas mercadorias.

O rabino calou-se um instante, enquanto os outros pestanejando de alegria, calculavam já os lucros prováveis das futuras operações.

— Outro negócio porém de máxima importância deve hoje prender vossa atenção, veneráveis irmãos. Usselincx nos escreveu; na data de sua carta falava-se muito na paz, e havia receios de que o partido dela venha afinal a triunfar; contudo, fiel às promessas que nos fez, combatia com todas as suas forças tal voto, proclamando a grande vantagem da conquista destas terras; mas temem-se lá das dificuldades da empresa e do receio de ser mal sucedida; pelo que se pudéssemos enviar novo emissário, importante pelo seu estado e autoridade de sua palavra, me parece que isso lhe dera muita força e decidia talvez do resultado.

— Também eu assim penso, murmurou um rabino velho.

— Aqui tendes a carta para que dela tomeis pleno conhecimento. Vereis que no final insta ele pela liberdade dos três oficiais prisioneiros.

Os judeus foram lendo e passando de mão em mão a carta que lhes mandara Usselincx escrever por seu secretário; terminada a leitura esperaram que o velho Samuel saísse de sua meditação.

— Bem avaliais, sem que necessite de vos demonstrar, de quanto mal seria para nós a paz na presente conjuntura. A lei que tão caro resgatamos do primeiro dos Filipes já nos ameaçaram de tirá-la e breve no-la roubarão, para ver se lhe pomos maior preço ainda; pois quando as coisas de governo se mercam, ficam em almoeda a quem mais dá. Portanto devemos abandonar a ideia de novas avenças, que não serão mais do que ocasiões para maiores fintas, com que afinal nos tirarão até a última gota de sangue. E não se conta o desprezo e ódio em que nos tem a raça cristã, cobrindo-nos de baldões e injúrias e tratando-nos de seus cativos.

Um grunhido de dor percorreu a fileira dos rabinos.

— A conquista da terra pelos nossos irmãos flamengos é a nossa única esperança de redenção!

— Falais como o profeta, venerável Samuel; mas se, como nos diz a carta, concluiu-se a paz, ainda não terá fim o nosso cativeiro.

— Tenho pensado; creio que se pudéssemos enviar agora a Haia esses três oficiais flamengos, prisioneiros nesta cidade, pelos quais tanto têm de lá instado conosco; e ainda mais se esses oficiais, gratos ao benefício, levassem com uma nova mensagem as informações precisas para a fácil tomada desta primeira praça aos portugueses, o voto dos Estados havia de ser pela guerra e conquista destas ricas possessões que os cristãos não sabem aproveitar.

— Como podemos nós chegar ao cabo de tamanha empresa, se todos os esforços hão sido baldados? Propuseram o resgate que secretamente nos oferecemos a pagar por eles e foi recusado; tentamos a evasão, que a princípio parecia bem estreada, e esbarrou pela dificuldade que sabeis, da senha.

— É verdade quanto dizeis, respeitável Simeão; porém maiores dificuldades venceram nossos primeiros pais quando deixaram a terra do Egito em busca do país de Canaã. O Deus que guiou Moisés no deserto, iluminou meu espírito. Se aprovais a empresa e julgais que seja coroada de bom resultado, confiai de mim o sacrifício da execução.

— Obrai, venerável Samuel; pomos em vós a nossa salvação.

— Não é justo porém que o sacrifício pese unicamente sobre um; manda o Senhor que o reparta por todos na proporção de suas forças. Vou arriscar por vós minha existência; e portanto haveis de indenizar dela a minha Raquel na soma de vinte mil cruzados, com que contribuireis repartidamente.

— Por tal preço não poderemos!...

— Sem dúvida; antes perca-se tudo.

— Realizai então isso a que me proponho, e vos contarei eu os vinte mil cruzados!

Todos calaram-se curvando a cabeça. Dissolveu-se a sinagoga silenciosa e tranquilamente como se reunira.

No dia seguinte, quando Raquel foi como costumava saudar seu velho pai, o mercador depois que a abraçou, mandou que se sentasse ao seu lado; e dando-lhe o Velho Testamento, disse-lhe com doçura e carinho:

— Filha, abri a Santa Escritura e lede-me o Livro de Ester.

Raquel obedeceu; e sua voz maviosa começou a recitar como um canto os versetes da Bíblia.

— Basta, filha. Lede agora o Livro de Judite.

A moça correndo as folhas, buscou a passagem pedida:


“3 — E ela lavou seu corpo e se perfumou de mirra e ornou o seu cabelo e pôs uma auréola na cabeça, e se adereçou com as vestes de sua alegria e calçou os pés nas sandálias e tomou armilas, lírios, arrecadas, anéis, e cobriu-se de ornatos.”

“4 — O Senhor fez brilhar sua beleza, porque todo esse enfeite não era inspirado por mau desejo, mas por sua virtude; pelo que o Senhor aumentou sua beleza para que ela aparecesse a todas as vistas de um brilho incomparável.”


O velho estendeu a mão sobre o livro e tomou-o: depois ficou em êxtase contemplando a filha que lhe sorria:

— Como és formosa, Raquel! tu podias te chamar Noemi, a bela! És mais formosa que a rosa de Jericó ou o lírio de Geslaad.

O velho estacou triste e sombrio:

— Por que vosso semblante se anuvia, pai, como o cimo do Oreb?

— Raquel, a raça de teu pai vai ser expulsa desta terra onde nasceste, talvez para outra de mais duro cativeiro.

— Que proferis, pai?...

— A salvação nossa, a redenção de teus irmãos, o Senhor pôs em tuas mãos, filha!

— É possível!... Dizei o que devo eu fazer!

— Três oficiais flamengos estão presos há cerca de cinco anos no Forte de Santo Alberto. É preciso que eles vão o mais breve possível à sua pátria buscar as coortes que irão libertar-nos, como as falanges de Ciro libertaram nossos pais do cativeiro em Babilônia. Um homem pode tirá-los dos cárceres onde jazem; e esse homem, tu sabes.

Raquel palpitou:

— Quem é ele, pai?

— D. José de Aguilar, o maior amigo do Tenente Bezerra, ajudante do condestável do castelo. Basta que o alferes saiba dele o santo de guarda. Isso é a primeira coisa; outra resta e igualmente fácil: é a cópia de um relatório que fez D. Diogo de Campos, sargento-mor do Estado, ao governador, sobre a fortificação e milícia desta cidade.

O velho pôs então na filha olhos vivos e penetrantes que lhe entraram até o coração.

— Se tu quiseres, Raquel, D. José fará isso sem hesitação.

O rubor vivace que acendeu as faces da donzela apagou-se logo, desbotado por um irônico sorriso.

— Que significam tuas palavras, pai? perguntou a moça.

— Na quarta-feira à noite quando o fidalgo aqui esteve, escreveu-te este bilhete que me caiu nas mãos. Respondei-lhe que venha hoje à meia-noite, e tu lhe falarás aqui nesta sala, enquanto eu estiver embaixo encerrado.

— Mas, pai, sabeis o que exigis de mim? Só com ele, à noite...

— Ester foi só à presença de Assuerus por conselho de seu tio, e Judite à tenda de Holofernes por inspiração divina! Ambas sacrificaram-se pelo seu povo. Terás tu degenerado desse sangue, Raquel?

— Nem Ester, nem Judite, pai, amavam o homem a quem se foram entregar friamente!... respondeu a moça com uma voz estrangulada.

Os olhos do judeu cintilaram:

— Teu sacrifício, filha, será então mais doce do que foi o delas, respondeu o judeu com um sorriso melífluo através do qual sentia-se a ponta de um estilete.

Raquel ergueu-se com um sublime assomo:

— Seja feita a vossa vontade, pai! Mas vos previno que é uma tentativa inútil!... Ele não aceitará!...

— Não te conheces, Raquel!

— Se me conheço!... Digo-vos eu, e juro que o homem digno do meu amor recusará com asco semelhante infâmia!

— Escreve sempre, Raquel.

A moça sentou-se ao bufete e escreveu simplesmente as seguintes palavras:


Esta meia-noite há na Rua da Palma uma pessoa que ansiosamente vos espera.


Sobrescritou a D. José de Aguilar, e entregando ao velho Samuel a carta, retirou-se precipitadamente à sua recâmera. O amor casto e delicado que enchia o seu coração como um lago sereno, acabava de ser toldado por um lodo infeto e negro.

O alferes recebeu o recado escrito de Raquel nessa mesma manhã, poucas horas depois da cena passada em casa do judeu. Imagine-se qual não foi sua alegria, e a vaidade de que encheu-se, por tão famosa conquista. Nesse dia recolheu cedo a casa para ataviar-se com primor; e mal foi tangido o sino de recolher, já ele media de uma à outra ponta a calçada da Palma, como uma sentinela de posto de guarda.

À meia-noite em ponto ouviu afinal abrir-se a rótula do sobrado, e a voz maviosa chamar por ele e perguntar se aí estava. A outro mais observador do que o alferes não passara desapercebido o tom resoluto e o modo desembaraçado com que a menina, tão tímida há dois dias, lhe falava agora, e o convidava a subir por uma escada de cordões de seda presa ao peitoril da janela. Não se fez rogar o namorado cavalheiro, e com a impavidez que lhe era própria, assaltou a escada e em dois arrancos achou-se na sala.

Raquel o esperava, e sem resistência deixou que ajoelhasse a seus pés e lhe beijasse as mãos. Convidando-o a sentar-se perto do coxim de damasco, dirigiu-lhe a palavra fria e melancólica:

— É verdade que me tendes amor, cavalheiro?...

— Duvidais ainda, formosa Raquel?

— Tanto não duvido, que aqui estais agora para mo provar.

— Se for precisa a minha vida para isso, ainda a acho pouca, senhora.

— Será preciso menos ou mais do que ela, conforme vosso pensar. Também eu vos amo, cavalheiro, e vos amei com fogo santo até este instante pelo menos!

— E por que não me amareis sempre, senhora?

— Depende de vós e da maneira por que ides responder à esperança que em vós depositei.

— Falai pois, senhora, e apressai.

Raquel reproduziu então o que lhe havia dito seu pai tanto a respeito do santo para evasão dos prisioneiros, como sobre a memória da fortificação e milícia da cidade do Salvador. O fidalgo ouviu-a todo o tempo em sobressalto, e por várias vezes quis interrompê-la; porém não o deixou a linda judia, que terminou afinal com um sorriso estranho.

— Mas, é uma traição que exigis de mim, senhora! É mais do que a vida, dissestes bem; é a honra.

Os olhos de Raquel cintilaram com um esplêndido fulgor, que lhe ornou a fronte como de uma auréola.

— Sim, disse ela com voz profunda; é a vossa honra, cavalheiro.

Depois, como se uma nuvem cobrisse de repente a luz de seu semblante, continuou com a voz surda e repassada em onda de sarcasmo:

— Mas Samuel pedindo isto a sua filha, lhe disse: “Ao homem que te fizer este sacrifício, nada recusarás, Raquel, como nada te recusarei eu se dele obtiveres o que te peço”.

— Nada?... exclamou o alferes, pondo nesta breve palavra um abismo de sensualidade e depravação.

O lábio da judia encrespou com a chama ofegante que lhe exalava do seio, envolta na respiração. Sua pupila grande, negra e aveludada, desviando do semblante do moço, escondeu-se sob as pálpebras a meio cerradas, porque lhe repugnava chafurdar no lodo daquela alma. Mas vencendo esse ímpeto de nojo, a moça procurou no cinto orlado de perlas que lhe ajustava o corpilho, uma pequena chave de ouro, que mais parecia de algum cofre de sândalo ou marfim; era a da sua recâmera virginal, cofre de beleza, inocência e castidade.

— Eis o preço do serviço! Aquele que em dois dias me trouxer a palavra e o papel pedido, será senhor desta chave e de quem ela guarda. Compreendeis agora?

O sangue do alferes ferveu-lhe nas veias.

— E Samuel consente nisso?... disse ele pasmo.

— Samuel tem a alma de Abraão, e sacrifica o amor de sua filha à religião de seus pais!...

— E também à ganância que espera!... Mas outro que o ajude a pilhá-la, não eu!... disse o fidalgo voltando as costas e encaminhando-se à porta.

A bela figura da judia resplandeceu inundada no júbilo imenso que lhe vertia d'alma. Seu peito, de repente acometido por aquela forte emoção, estalou num grito que era de prazer, mas ainda imerso na dor.

— Recusais?...

O alferes tinha feito uma falsa retirada, tática sempre bem sucedida nos seus assaltos amorosos. No meio da surpresa que lhe causara a estranha proposição da moça, viera-lhe uma suspeita sobre a sinceridade de Raquel, e a parte que o judeu tinha em tudo isso. Ouvindo a exclamação da judia, que ele tomou por um grito de aflição, se voltou sorrindo.

— Ora, formosa Raquel, quem me diz que o espertalhão do vosso pai não faltará ao prometido, no que é useiro e vezeiro!...

— Não me acreditais! disse a moça com soberano desprezo.

Com a mão afilada e mimosa bateu numa espécie de tímpano que havia encravado na parede. O velho Samuel que assistira a toda a cena precedente por detrás de uma porta oculta na tapeçaria, meteu debaixo da oparlanda o longo punhal, e dando volta foi aparecer na porta da sala.

— Pai, disse Raquel vendo-o entrar, repeti-lhe o que prometeste.

O velho erguendo ao céu os olhos extáticos e dando à sua fisionomia veneranda um ar inspirado, proferiu lentamente:

— Pela palavra do profeta juro que se fizerdes o que vos peço, vos entregarei Raquel, como entregou Labão sua filha a Jacó.

— No mesmo instante?...

— No instante mesmo em que me trouxerdes a palavra do santo e a cópia do papel.

O cavalheiro soltou uma gargalhada.

— Aceito, e concluído! Apertai!...

Os dois trocaram um aperto de mão, sinal de ratificação do pacto.

— Então, cavalheiro, disse Raquel, até domingo a esta mesma hora e neste mesmo lugar!

— Aqui estarei a vossos pés, tirana desta alma.

Beijando com galanteria a mão da judia, o alferes acompanhou o judeu até a loja no pavimento térreo. O digno Samuel desejava entrar em maiores explicações a respeito da empresa que iam tentar, pois não contando com a esperteza do alferes, só o empregava como simples instrumento, indispensável para a execução do seu plano:

— De que traça usareis, Senhor D. José, para obter o santo do Tenente Bezerra, sem que ele suspeite de vós?... Isso é essencial.

A pergunta embaraçou o fidalgo; foi como uma rocha que desabasse sobre os castelos de sua imaginação. D. José, soldado e cavalheiro, prezava em alto grau uma coisa que ele chamava sua honra: palavra de tão vário sentido entre os homens e os povos de todos os tempos. O que lhe pedia Raquel era no seu modo de pensar uma infame traição à pátria e à religião. Se fosse um homem quem ousasse, não já propor, mas somente falar disso como de uma coisa possível, ele o atravessaria incontinenti com sua espada. Mas era uma dama; e a galanteria tolerava esse brinco.

Entretanto ouvindo de Raquel qual seria a recompensa do serviço por ela reclamado, o alferes, refinado namorador, teve uma feliz lembrança. Ele podia inventar uma palavra de santo; arranjar uma falsa cópia da memória do sargento-mor; e assim sem traição, por uma simples esperteza, lograr a tão cobiçada ventura. Parece que a honra como a entendia o alferes, se acomodava com essa vilania, pois apontando-lhe no espírito um leve escrúpulo, ele o dissipou com essa judiciosa reflexão.

— No código de amor não passa de um estratagema de guerra!... E deve ganhar indulgência plenária quem enganar um judeu, tão refinado velhaco!

Deste ortodoxo pensamento foi eco e aplauso a gargalhada de há pouco.

Quando pois lhe fez o judeu a pergunta, ele que não tinha outro plano senão o da sua grosseira invenção, ficou atarantado sem saber que resposta dar; afinal saiu do seu embaraço com esta coarctada:

— Lá isso te toca, digno Samuel, refinado velhaco. Estou pronto a servir-vos; mas não tenho tempo, nem jeito para martelar a cabeça.

— Se permitis, submeterei à vossa aprovação, um meio que me ocorreu, e que parece o melhor pela sua simplicidade.

— Vamos a isso sem detença!...

— A cópia do papel, essa nada custa; podeis fazê-la amanhã durante o dia. Quanto ao santo, se fôsseis por volta da tarde ao Castelo de Santo Alberto convidar vosso amigo para uma ceia divertida em casa do Brás...

— Quem pagará o pato, Samuel?

— Não vos dê isso cuidado; fica por minha conta. Mas se fôsseis, como dizia, por tarde, ao sair, fazendo ele confiança em vós, não duvidaria dar o santo em vossa presença, ou se o não desse, por qualquer outro modo viríeis ao seu conhecimento. Não vos parece?...

— É bem combinado, sem dúvida. Que mais?

— Então chegando à casa do Brás, faríeis modo de meter-lhe dentro algumas canadas de vinho, o que deve estar feito até meia-noite.

— É tempo de sobra. O resto?...

— O resto?... disse o judeu com um suspiro. Já sabeis: enquanto ele lá ficar esborrachado embaixo da mesa, correreis aonde vos esperam.

— Tudo está muito direito, Samuel; mas de uma coisa já vos previno. Não tereis a senha e o papel senão na hora justa... Entendeis?... Mão para lá, mão para cá.

— Sem dúvida; nessa ideia estava eu!...

— Pois mandai preparar a ceia, sem mesquinharia, ouvistes?...

— Oh! uma ceia de príncipe, digna de Vossa Mercê.

D. José ergueu-se para sair; mas parou lembrando-se de alguma coisa.

O judeu que parecia esperar essa volta sorriu:

— Meu senhor, não carece de alguma moeda?

— Já que estou aqui, venerável usurário, aproveito a ocasião. Dai cá um cartucho de vinte moedas, que vou passar-vos o bilhete.

Samuel dobrou uma folha de papel, escreveu bem no alto da dobra um vale, não de vinte, mas de cinquenta moedas, que apresentou ao fidalgo. Este riu e assinou.

O judeu contou o ouro, o alferes o meteu na bolsa, muito ancho de si e convencido de ser um fidalgo incapaz de ação feia, que saía dessa casa levando a honra salva; entretanto emprestava dinheiro do usurário a quem no dia seguinte pretendia enganar vilmente.

— Até amanhã, honrado filho de Judá!...

— Uma palavra ainda, Senhor D. José de Aguilar. Pode bem ser que vos tenha vindo à ideia, a vós, nobre senhor, de zombar de uma pobre moça que vos ama, e de um mísero velho, que nada já espera deste mundo.

O alferes fitou os olhos admirados no judeu, espavorido de ver como ele lia-lhe no coração.

— Como vos veio semelhante ideia, Samuel?

— Ambos aceitamos de nossa livre vontade o pacto. A parte de cada um é igual; honra por honra; ventura por ventura; a vossa na terra, a minha no céu. Eu vos jurei na palavra do profeta; jurai vós pelo nome de vosso Deus.

O alferes apanhado de surpresa empalideceu; e sentindo o peso do olhar cintilante do judeu, balbuciou um tíbio juramento.

— A maldição do Senhor caia sobre a cabeça do desleal e perjuro!...

Atordoado pela solenidade dessa imprecação o moço fidalgo ganhou a porta e desapareceu. Daí a meia hora esquecia ele as suas aventuras amorosas na tavolagem de mestre Brás, onde o esperava uma grande surpresa. A primeira pessoa que viu ao entrar foi D. Fernando, que jogava um jogo de Belzebu, fazendo dançar diante dele as mancheias de moedas de ouro, que vinham umas após outras amontoar-se em pilhas junto à sua bolsa.

— Com a breca, até quando vos quer durar essa veia infernal! exclamava Manuel de Melo.

— Não tem que ver!... Jogador novato é sempre assim.

— O azar protege a inocência!

— Embora! acudiu João d'Afonseca. Vou mais pelo ditado, que ventura em amores traz desventura no jogo!

— Pois aqui vedes o avesso!...

— E isso mesmo é o que me admira!...

D. Fernando teve um sorriso amargo:

— Pois sou eu o modelo de todas as venturas juntas.

Nesse instante sentava-se D. José, que só retirou-se pela madrugada deixando aí o cartucho das cinquenta moedas. Não obstante, o cavalheiro dormiu um sono tranquilo até o outro dia, sol alto; ao erguer recordou-se do que passara na véspera. O juramento que lhe arrancara Samuel estava lhe incomodando um cantinho da consciência, como uma dobra no calcanhar da meia. Nisso ouviu a voz de Fr. Carlos da Luz que fazia a sua visita habitual; serenou-lhe súbito o arrepio da consciência; lembrara-se que o frade o absolveria do pecado.