Saltar para o conteúdo

As Mulheres de Mantilha/IX

Wikisource, a biblioteca livre
IX

Alexandre Cardoso sahira da casa de Maria de...., quando a aurora vinha já rompendo; parecia pois natural que a bella mulher tivesse somno e quizesse dormir, como dissera, ao despedi-lo secca e enregeladamente.

Todavia apenas a porta da rua se fechou sobre o official da sala do vice-rei, Maria que se deixara ficar sentada, voltou os olhos para o corredor que se estendia até a casa de jantar, e para o qual abria uma porta cada um dos aposentos interiores do sobrado, e poucos momentos depois appareceu diante della, e foi sentar-se em uma cadeira fronteira da sua um bonito mancebo que certamente ainda não contava trinta annos de idade.

Era um homem de estatura regular e tão bem feito de fórmas, como desejaria sel-o uma mulher; tinha os cabellos pretos finos e crespos, e os olhos tão negros e bellos, como erão bellos, e brancos os dentes; o rosto oval ostentava encanto e graças demais para o seu sexo: longe de ser um typo de belleza varonil, dir-se-hia um erro da natureza que lhe dera formosura feminina e sexo masculino.

— Maria, disse elle seriamente; não me sujeitarei segunda vez á situação tão mesquinha e aviitante!

Maria pareceu não tel-o ouvido; porque não lhe respondeu; mas perguntou-lhe.

— Angelo, sabes jogar?.....

Tambem Angelo não respondeu á pergunta de Maria, e continuou, insistindo no seu protesto.

— Porque excluir-me da sala e da mesa dos teus convidados e impôr-me essa cruel prisão de duas ou tres horas em um quarto retirado que nem ao menos é o do teu leito?.... envergonhas-te da minha companhia ou pensas que me causão medo os teus amigos de bigodes e espadas?....

— Maria tornou-lhe:

— Angelo, sabes jogar a banca?...

O mancebo levantou-se colerico:

— E' demais!... exclamou.

— Senta-te e ouve; tornou-lhe Maria com voz imperiosa.

Angelo sentou-se.

— Deixei-te naquelle quarto porque me convinha que não te vissem hoje em minha casa: muito me serviste hoje; mas se te encontrassem aqui, não poderias servir-me amanhã; pois adivinharião em ti o amigo, que ha tempo me poz ao facto de quanto se passou no pateo do convento da Ajuda.

Angelo curvou a cabeça e disse:

— Entendo; pensaste bem em ti mesma, zelando o teu espião.

Maria encrespou os supercilios, e fallou em tom severo.

— Tens vinte e sete annos, Angelo, e aos vinte e cinco, na idade em que o homem deve assumir uma posição na sociedade, eras o filho mimoso de pais sem fortuna, um pobre moço sem officio, sem o habito do trabalho, e portanto um condemnado ás provações dos desvalidos; eu te encontrei, te distingui e te amei porque eras e és bello; fiz por ti o que teus pais não poderião fazer.

— Mas eu tambem te amei, Maria!

— E o amor é fogo que se apaga.....

— O teu.....

— Pois seja assim, o meu: arrefecido o meu amor, nem por isso te faltou minha protecção: de amante furtiva ou mal encoberta eu me tornei tua amiga manifesta; dei-te um emprego que te assegura posição mediocre, mas sufficiente para a vida do homem modesto, e não poupei nem poupo favores que te facilitão apparencias de abastança que não possues.

— Lanças-me em rosto os beneficios, Maria?

— Não; sómente lembro os fundamentos da gratidão que tenho exigido e exijo ainda.

— E poderias juigar-me ingrato?

— Tambem não: ainda precisas muito de mim para que tão cedo me voltasses as costas. Lembrei-te o casamento com a filha mais nova do negociante Jeronymo, que te tornaria esposo de uma linda moça e herdeiro de grande fortuna....

— Inspiração do ciume......

— Já o neguei? é certo, inspiração do ciume; mas inspiração que te póde aproveitar: prometti auxiliar-te neste empenho, e sabes que o tenho feito: que mais quererias que fizesse por ti a amante de dous annos, que saciada do teu amor hoje faz muito ainda, amparando-te, protegendo-te com a sua amizade?

— Tua franqueza é cruel e desalmada!....

— Qu'importa? eu sou melhor do que as que fingem e mentem: eu não te devo nada, Angelo; porque paguei-te o que me deste: e tu me deves muito, porque não te pedindo mais, e quando debalde mais me quererieis dar, ainda te dou e te prometto; eu porém preciso de ti contra Alexandre Cardoso, de quem jurei vingar-me; nada mais claro, e nada mais franco: entendamos-nos pois: queres continuar á servir-me?....

Angelo respondeu submisso:

— Estou prompto.

— Já te fiz rival de Alexandre Cardoso, aconselhando-te o amor e o casamento com Ignez Lirio: neste empenho tu me serves e eu te sirvo: agora tenho outro.

— Qual?...

— O jogo.

— O jogo?....

— Sabes jogar?

— Conheço as cartas do baralho, e mais ou menos comprehendo os jogos.

— Jogas a banca?

— Mal.

— E' preciso que a saibas jogar honesta e deshonestamente; porque eu quero que ganhes o dinheiro de Alexandre Cardoso.

— O famoso jogador?!!!

— Serei tua socia nas perdas e lucros, e tomo á minha conta o capital necessario: entrarei com cinco mil cruzados para a sociedade, e tu com a tua simples participação no jogo, que muitas vezes se dará em minha casa.

— Aceito a proposta sem modificação alguma; disse Angelo.

— Eu porém exijo mais alguma cousa; tornou Maria.

— O que?...

— Que ganhes sempre a Alexandre Cardoso.

— Isso desejo eu; mas o meio?....

— Angelo, tens as mãos finas, e a subtileza das organisações delicadas: tudo é fácil no jogo á quem sobrão essas condições: irás amanhã, quero dizer, hoje mesmo ao outeiro da Gloria, ensinarte-hão ali a casa do velho Placencio Guedes, o mais habil jogador, adivinhador, e empalmador de cartas, que a fama apregoa; é um velho que deixou de jogar sómente porque todos se esquivão de o fazer com elle; entregar-lhe-has um bilhete de recommendação que vou escrever-lhe: durante quinze dias ou um mez praticarás, aprenderás com Placencio Guedes á ganhar sempre ao jogo, e especialmente ao jogo da banca, e quando o velho Placencio te disser: «podes jogar:» — tu de sociedade comigo que fornecerei o dinheiro, jogarás sempre contra Alexandre Cardoso.

Angelo não respondia.

— Expliquei-me claramente, disse Maria; cumpre-te agora responder: queres ou não?... aceitas ou não?....

— Quero e aceito; respondeu emfim sombriamente o mancebo.

Maria levantou-se, e abrindo uma rica escrivania de jacarandá, escreveu algumas linhas em uma folha de papel que dobrou e veio entregar a Angelo.

— Amanhã te apresentarás com este bilhete ao velho Placencio. Agora deixa-me: preciso descansar.

Angelo sahio.