As Mulheres de Mantilha/XLIII
Na chacara da Gamboa continuara sem a mais leve perturbação a vida suave e tranquilla da familia de Jeronymo Lirio: typo das familias de costumes severos do tempo colonial, principalmente do ultimo seculo, essa observava as regras adptadas com precizão, mas sem constrangimento, porque a educação passada de pais a filhos as tornara faceis e como que naturaes.
Assim Jeronymo Lirio, o chefe, dirigia exclusivamente os negocios e nelles resolvia tudo sem consulta anterior e sem conhecimento posterior da Sra. Ignez; esta governava absolutamente na economia domestica, no que o marido só intervinha, quando a mulher precisava do seu concurso; cada uma das duas filhas por sua vez fazia semana sob-governando e dirigindo todos os serviços domesticos debaixo das vistas de sua mãi, cada uma tinha sua escrava particular que costurava e engommava seus vestidos e a servia no quarto: os costumes dessas escravas erão especialmente zelados. As duas meninas não fallavão á pessoa estranha, senão em prezença de seus pais, e nunca passeavão nem se mostravão sós.
O cuidado do futuro da familia pertencia a Jeronymo, que diria oito dias antes dos cazamentos os nomes dos noivos de suas filhas á sua mulher: mas ainda em segredo; porque bastava que as noivas os soubessem na vespera do enlace nupcial.Entre tanto Jeronymo teve de fazer uma excepção á esta ultima regra do seu absolutismo logo depois da retirada na noute de segunda-feira de entrudo. Elle se lembrára de que na tarde antecedente Ignez o confundira, dizendo-lhe: « sou mãi que ve mais e que adevinha antes de ti o que mais tarde lhe escondes para poupar-lhe cuidados ».
Sem contestação Ignez tinha-se refferido ás pretenções de Alexandre Cardoso á mão de sua filha mais moça, e pois era justo que soubesse o que sem quebra do sigilo convencionado, podia Jeronymo communicar-lhe da sua conversação particular com o conde da Cunha.
Chegando ao seu quarto, o negociante disse á Sra. Ignez que o esperava:
— Sabes á que veio o Vice-Rei?
— A'que?
— Pedir-me a Sinhá em cazamento para o seu ajudante official da sala.
— Misericordia!... antes não viesse cá o Sr. Vice-Rei!....
— Porque?...
— Será uma desgraça semelhante casamento...— Pensamos do mesmo modo.
— E então ?
— Respondi com um não redondo.
— Mas o Sr. Vice-Rei ?
— Elle governa a colonia, eu porem governo minha familia.
— E as perseguições e os perigos á que ficamos expostos com um tal inimigo?
— Socega: o conde da Cunha retirou-se ás boas comigo.
— Mas esta gente alta não finge ?
— Oh! e muito ; mas eu tenho razão para estar tranquillo, nem de outro modo te communicaria isto.
— Deos Nosso Senhor nos ampare.
— Hontem apanhei em algumas palavras tuas a declaração de que antes de mim tiveste conhecimento das atrevidas e importunas intenções e cortezias do tal Alexandre Cardoso.
— E' verdade: eu as tinha percebido.
— E a Sinhá?....
— Coitadinha! ainda não pensa em semelhantes couzas.
— Olha que ella é muito esperta...— E' um anjinho de innocencia, como a Nhãnhã.
— Bem: o que acabo de dizer-te, é um aviso para que redobres de vigilancia.
— Sem duvida; mas o Vice-Rei?
— Que tem o Vice-Rei ?
— Como acharia elle a recepção que lhe fizemos?
— Onde a teria melhor no Brazil? não ves que fomos despachados, e que vás ser a senhora dona Ignez.
— Sim, e com marido cavalleiro do habito....
— Estás vendo que a nobreza nos entra em casa....
Ambos se puzerão á rir, mas dentro de si muito ufanosos das graças promettidas.
E delles não se rião hoje os commendadores e barões admirados de ufania por tão pouco; pois o titulo de dona á uma senhora e um habito da Ordem de Chrisio á um homem custavão e distinguião então muito mais do que as commendas e os baronatos do nosso tempo.
Ainda antes de dormir os dous velhos e amigos espozos conversarão sobre Izidora; mas em voz tão baixa, que só elles mesmos se podião entender.
O dia seguinte era feriado e o compadre Antonio Peres chegou inesperadamente, e foi recebido com expansão de alegria pela familia.
O dia tornou-se de festa.
Os dous velhos amigos conversarão á sós uma hora: Jerooymo Lirio confiou á Antonio Peres tudo quanto se passara na vizita do Vice-Rei; e este referio áquelle a noticia do incendio da casa do carpinteiro Marcos Fulgencio e os rumores que corrião do novo attentado que perpetrára Alexandre Cardozo: discorrerão sobre os dous acontecimentos e depois voltarão á sala onde se achavão as senhoras.
As meninas fallavão muito no Vice-Rei, á quem fazião encantados elogios: Izidora sentada junto da senhora Ignez se conservava em silencio.
Os dous compadres jogarão o gamão e Jeronymo Lirio que estava em maré de felicidade punha em torturas a impaciencia de Antonio Peres contido e coacto pela presença das senhoras.Uma vez depois de cinco gamões consecutivos perdidos por Antonio, a fortuna pareceo mudar, e Jeronymo falhando tres vezes estava exposto á levar gamão: era quazi impossivel á este salvar a partida, ou conseguir perder apenas jogo simples.
— Toma agora lição de mestre, velho prezumido! exclamou Antonio.
— E se eu te der na pedra ?
— Era precizo que tivesses o diabo no corpo para que me desses na pedra, sahisses cora os tres, que estão quazi prezos, e que te cazeasses, em quanto eu fosse falhando por um seculo!
E foi o que aconteceo!....
Jeronymo teve dos dados o quazi impossivel, fechou-se todo, e gritou á Antonio que furioso apertava a pedra na mão:
— Tragão doce para Antonio, em quanto eu não lhe abro casa!
Antonio teve medo de esquecer-se da prezença das senhoras, e voltando-se para ellas, disse:
— Comadre, mande despedaçar este ta olleiro de gamão!
— Não jogue mais, compadre!— Ahi tem casa aberta; disse Jeronymo; entra depressa se queres livrar o gamão.....
— Com uma pedra só á entrar e recolher?
— Tem-se visto tantas vezes!
Antonio falhou tres vezes, entrou depois: mas em seguida lançou duas vezes dous e az, e levou gamão cantado.
Jeroymo quasi rebentava de rir, provocando com zombarias o velho amigo, que arrebatado deixou-lhe o taboleiro nos joelhos, e para disfarçar a sua irritação perguntou a Izidora:
— O Vice-Rei assustou-a muito? escondeo-se delle?
— Ao contrario, compadre; ella encantou o senhor conde da Cunha com os lundús que lhe cantou.
— Ah! canta lundús?
— E muito bem.
— Pois faça de conta que eu sou o Vice-Rei, e vamos aos lundús.
Izidora não se fez rogar: foi para o cravo, e então menos acanhada, cantou muito melhor do que na presença do conde da Cunha.
— Mas...isto é muito bonito! exclamou Antonio.E voltando-se para os dous lirios
— E vocês cantarão tambem?
— Nós dançamos, meo padrinho; disse Ignez.
— Pois devião ter tambem cantado: a muzica vale mil vezes mais que a dança.
— Mas.... não sabemos....
— Era facil sabe-lo agora, visto que vocês tem boa mestra em casa; disse Antonio.
E voltando-se para Jeronymo, continuou:
— Jeronymo, porque as meninas não aprenderão á cantar alguma cousa com a senhora Izidora?...
O velho negociante um dia antes se revoltaria contra a proposição; mas desde a oração da noute do domingo começára a afeiçoar-se á Izidora, e o muito que esta agradara ao Vice-Rei pelos seos lundús, acabou por decidi-lo:
— Isso é lá com Ignez que é quem se occupa das meninas; respondeo.
A senhora Ignez que observára a expressiva physionomia do marido, acudio depois de breve reflexão.— Se a menina Izidora quizer prestar-se á dar algumas lições....
Izidora respondeo, corando:
— Sei muito pouco, minha senhora; mas estou prompta á servir em tudo quanto possa á familia respeitavel e benefica á quem devo hospitalidade e protecção.
— Quanto tempo perdido!exclamou Antonio.
— Como?
— A primeira lição já devia ter principiado...
Jeronymo levantou-se e sahio da sala, dizendo:
— Temos doudices: ainda heide ver-me obrigado á fechar a porta á este velho....
Antonio era o unico homem que influia com poder quasi sempre irresistivel sobre Jeronymo; e cada uma de suas visitas era signal de festa e do alegria na chacara da Gamboa, onde elle com dissimulado aprazimento do amigo, punha as duas meninas em folguedo não coagidas pela austeridade do pai.
— Fazes bem em te ir, carrancudo ralhador; dissera Antonio á Jeronvmo.E fallando á senhora Ignez, proseguio:
— Comadre, hade ver o que sahe d'aqui: eu aposto que a Nhãnhã,que é menos alegrona, cantará bem modinhas, e que a Sinhá hade brilhar nos lundús: vamos á um ensaio? a Nhãnhã que experimente uma modinha.
A senhora Ignez sorrio-se e animou as filhas; Izidora foi sentar-se ao cravo; mas Irene vergonhosa e contundida não se atreveo a ensaiar sua voz.
— Sinhá, disse o padrinho a afilhada; dá o exemplo á tua irmã.
A menina Ignez levantou-se risonha, corada e entre o vexame natural, e o dezejo de agradar ao padrinho, foi collocar-se ao lado de Izidora.
— Que deseja cantar? perguntou esta docemente.
— Ora! não sou eu, é meo padrinho que deseja que eu cante um lundú.
— Qual é o que vae cantar?...
— O primeiro que ouvi hontem á senhora.
— Ah! o da velha que quer casar?— Esse mesmo.
— Acha bom que lh'o repita?
— Meo padrinho não poderia ouvir-me depois.
Izidora começou o acompanhamento e a intelligente e engraçada Sinhá, vencendo o medo, dezatou a voz, e cantou de cór o lundú que ouvira duas vezes, conseguindo imitar as inflexões da voz, o methodo e a graça do canto de Izidora.
A menina Ignez acabava de exceder o que por ventura della esperava o padrinho, que batia palmas.
Izidora contemplou admirada a sua imitadora.
— Que lhe pareceo? perguntou a senhora Ignez.
Izidora afastou logo os olhos que fixara na menina e respondeo:
— Estou maravilhada, minha senhora.
— Se pensa que vale a pena, principiaremos amanhã as nossas lições de musica.