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As Mulheres de Mantilha/XVI

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Jeronymo foi até á porta da entrada que se abria para um pequeno terraço com duas escadas lateraes.

— Póde subir e entrar.

Sahio de uma cadeirinha de aluguel uma mulher de mantilha, que subio a escada do terraço e entrou na sala. Era uma mulher alta que pelo vulto indicava ser magra e sem duvida tinha alvo rosto pois que branca e fina foi a mão que mostrou fóra da mantilha, entregando uma carta a Jeronymo.

— Queira sentar-se; tornou este, offerecendo-lhe uma cadeira.

A mulher sentou-se: Jeronymo abrio a carta e á medida que á foi lendo, seu rosto corou fortemente, as mãos tremerão-lhe e o fogo da ira brilhou em seus olhos.

Acabando de ler a carta, dobrou-a e pô-la no bolso, e em quanto a mulher de mantilha, tendo a cabeça tão cahida que a ponta do queixo tocava-lhe no peito, parecia esperar importante decisão, o nobre velho levantou-se e agitado passeou ao longo da sala durante alguns minutos: emfim, como se tomasse uma resolução, mandou chamar sua esposa.

A senhora Ignez entrou, e fez de longe um leve comprimento á mulher de mantilha que se levantou para sauda-la.

— Ignez, preciso ler-te esta caria, vem cá.

E levou a mulher para a janella mais afastada em cujo vão desapparecerão ambos defendidos pelas grossas paredes de pedra da antiga edificação das casas grandes.

Jeronymo leu em voz baixa a carta que recebera á sua esposa e logo em seguida perguntou:

— Que pensas?...

— Eu não sei: o melhor de todos os conselhos é aquelle que quizeres seguir.

— Eu porém quero ouvir-te: acho-me em luta comigo mesmo: hesito....

— Porque?

— O meu desejo era servir, e o meu dever é não servir ao que me pedem.

— Nunca desejaste o mal, e o dever nunca é offendido pelo verdadeiro bem; Deos me perdoe, se erro.

-— Explicar-me-hei melhor: eu desejo e não devo asylar em minha casa esta victima de infame perseguição.

— Se ha victima de infame perseguição, deves dar-lhe asylo e defende-la.

— E' contra as leis d'El-Rei nosso senhor.

— E' conforme as leis de Deos senhor dos reis da terra.

Jeronymo estava no caso daquelles que, almejando ser convencidos para desculpar-se ante á propria consciencia, cedem ás primeiras razões que lhe apresentão: felizmente para elle a primeira razão que a senhora Ignez lhe apresentou, vinha cheia de uncção religiosa.

— Ignez, disse elle; tu reflectes bem.

— Eu não reflicto, Jeronymo; digo o que aprendi, graças á Deos.

— Mas além deste embaraço ha outro muito mais serio.

— Qual?

— Ouviste, attendeste bem á carta que li?

— Sim.

— As relações diarias, constantes de nossas filhas com a tal mulher de mantilha assustão-me.....

— Desejas deveras prestar-lhe asylo?...

— Confesso que desejava........ tenho meus motivos.

— Deos abençoará a obra de caridade.

— Mas as meninas?....

— O gabinete contiguo ao do oratório não tem communicação com o resto da casa.

— E de dia?

— Sabes que acordo sempre mais cedo e me deito sempre mais tarde do que nossas filhas.

— Qualquer descuido facilitará liberdades que não admitto.

— Jeronymo, queres saber? creio que Deos nosso senhor quiz pôr em prova os nosos corações: em nome de Deos façamos esta obra de misericordia. Eu respondo pelas meninas.

— Tu respondes por ellas, Ignez?....

A virtuosa senhora, ouvindo a pergunta do marido feita á mãe de Irene e Ignez, sorrio-se e disse:

— Sou mãe, meu amigo; as mães veem mais e adivinhão antes dos pais tudo quanto se refere aos filhos: sou mãe que vê mais e que adivinha antes de ti o que mais tarde me escondes para poupar-me cuidados.

Jeronymo ficou um pouco confuso.

— Respondo pelas meninas, repetio a piedosa e digna senhora; e vou mandar preparar o gabinete.

A senhora Ignez retirou-se, e Jeronymo, levantando a cabeça e cravando os olhos no céo, disse em voz sumida, mas lançada no coração:

— Santissima Virgem Mãe de Deos! esta obra de misericordia que vou fazer recaia toda por vossa poderosa intercessão em proveito da minha innocente Ignez, em favor e defesa de cuja virtude e castidade peço e reclamo a protecção divina.

E tendo-se persignado, Jeronymo deixou a janella, foi a sua secretaria, escreveu brevissima carta que fechou e sellou, e dirigindo-se á mulher de mantilha:

— A senhora fica comnosco; disse-lhe: despache a cadeirinha, e dê esta carta ao escravo que a acompanhou desde o lugar, donde veio para a cidade.

A mulher de mantilha levantou-se, avançou um passo para o velho, beijou-lhe com ardor a mão, que lhe dava a carta e foi despachar a cadeirinha e o creado.

Jeronymo ficou por momentos á sós com Antonio, e olhando para elle corou, e sorrio-se.

Desde a leitura da carta trazida pela mulher de mantilha, Jeronymo tinha esquecido completamente a presença de Antonio e a singular aposta que fizera; mas ao olha-lo, de subito lembrou-se da conversação que tivera, dos principios de obediencia severa que sustentara e do immediato desmentido que dava contradictorio áquelles mesmos principios: corou por orgulho, sorrio-se por amizade.

A mulher de mantilha voltou antes que os dous velhos amigos tivessem trocado palavras; logo depois a senhora Ignez tornou a sala, e veio tomar conta da asylada á quem convidou para segui-la ao aposento que lhe destinava.

Quando ambas ião sahir, Jeronymo disse á mulher de mantilha, mostrando-lhe Antonio:

— Minha lealdade deve-lhe uma prevenção: este velho é o meu primeiro amigo: com elle não tenho reservas possiveis; o nosso segredo será tambem delle, que em minha falta lhe servirá de protector ainda melhor.

A mulher de mantilha aproximou se de Antonio, e tomando-lhe a mão, beijou-a, como tinha beijado a mão de Jeronymo.

A senhora Ignez levou comsigo a mulher de mantilha.

Jeronymo voltou-se então para Antonio, e deu-lhe a carta que havia recebido, e que este sem hesitação tomou e leu para si de principio á fim.

— Bem te dizia eu! disse Antonio, restituindo a carta.

— Sim; mas, tu o vês, era impossivel que eu resistisse! quem me escreve é um amigo, um dos meus melhores freguezes, estabellecido na villa opulenta de Santo Antonio de Sá: tudo isso é o menos; nota porém: um pobre casal tem uma bella e honestissima filha, e um filho rico de intelligencia, que ali nas aulas dos frades franciscanos, que o estimão e delle se apoderão, faz prodigios e tem o infortunio de superar, de tornar invisivel o rude e bronco filho mais novo do capitão-mór do districto, que por isso o aborrece: ainda peior; o filho mais velho do capitão-mór, tenta seduzir a bella filha do pobre casal, e repellido por ella chega a ameaçar os paes: essa menina, Antonio, chama-se Ignez, tem o mesmo nome de minha filha, quasi a mesma desdita da tua afilhada, a differença unica é que eu sou rico, e que a outra Ignez é filha de paes pobres; perseguição infame! ao menino mais talentoso do que o estupido filho do capitão-mór, ao filho unico e esperançoso de misera familia marca-se e procura-se para soldado recrutado, e á linda donzella desvalida e sem fortuna atropella-se, armão-se scilladas, e maquinão-se violencias para os gozos impuros do filho mais velho do senhor capitão-mór!..... esta donzella também se chama Ignez, Antonio! que coincidencia nos tormentos que soffro!....

— Ainda bem que veio no caso a coincidencia.

— Dize pois, que podia, que me cumpria fazer?.. das duas victimas de atroz perseguição, uma me chega recommendada por bom amigo, por homem honrado e incapaz de mentir; que deveria eu fazer? dize-o pelo amor de Deos!

— Devias fazer, o que fizeste, Antonio.

— Portanto eu errava ainda ha pouco, quando conversava comtigo: não ha principios absolutos na vida humana. A minha vaidade foi castigada: no mesmo dia, na mesma hora fiz o contrario do que assegurava e jurava fazer!....

Antonio começou á rir.

— Guloso, exclamou Jeronymo; não me comerás o peixe de quaresma em quatro domingos, sou eu, minha mulher, as meninas e esta mysteriosa senhora de mantilha que havemos de devorar a tua cêa na noite da cerração da velha.

— Confessas que perdeste a aposta?

— É claro: aprompta-nos boa cêa.

— Fica á meu cuidado: agora experimentemos, se é possivel que hoje nos deixem jogar o gamão.

Os dous velhos amigos tomarão de novo o taboleiro do gamão e ordenarão as pedras que se tinhão desarranjado.