As Mulheres de Mantilha/XXXVI
Em sua afflicção pela perda dos importantes documentos Clelio Irias contava com o auxilio energico, e com as providencias do ajudante official da sala por certo muito interessado em e haver papeis que podião compromette-lo gravemente.
Affrontando pois certas conveniencias o velho uzurario foi bater á porta da casa da bella cortesã, c deu o seu nome ao escravo que lh'á abrio, declarando que procurava o senhor tenente coronel Alexandre Cardoso para negocio urgentissimo, e da maior delicadeza.
D'ahi a breves instantes recebeu ordem para subir e esperar na sala; mas pouco esperou; porque Maria appareceu-lhe com todo o esplendor de sua voluptuosa formosura, trazendo soltos os longos e anelados cabellos e um simples vestido branco, apertado ao pescoço, mas amplo e sem prisões, como fraca e tenue nuvem á cobrir com um véo provocador os encantos de uma fada.
Clelio Irias apezar de velho estremeceu á apparição daquelle prodigio de belleza.
A voz de Maria de.... era suave e encantadora, como era bello o seu rosto e se adevinhava admiravel de perfeição o seu corpo.
Sorrindo meigamente, ella disse á Clelio Irias:
— Alexandre Cardoso esqueceu-se hoje de mim; eu porém não o esqueço nunca, e vélo sempre pelos seus interesses: chegará d'aqui a pouco, ou virá amanhã despertar-me para almoçar comigo...
Clelio Irias mostrou-se contrariado, e levantava-se para sahir.
— Porque se incommoda? perguntou-lhe a cortezã.
— Eu precisava fallar-lhe já.
— Já é impossivel: se lhe apraz, espere-o aqui, que elle hade vir ainda esta noute, ou amanhã pela amanhã, pois nunca me falta: se isso o constrange, incumba-me do seu recado: eu sei dos negocios de Alexandre... faltou-lhe hoje, e á mim tambem algum dinheiro... não ignoro o que se passou entre elle e o senhor Clelio Irias, á quem não é a primeira vez que recorre....
O velho uzurario olhou espantado para a encantadora cortesã.
— Não me crê? perguntou ella com um daquelles feiticeiros, sorrisos, que convencião de tudo á todos.
— Não me atrevo á duvidar, minha bella senhora..., disse Clelio Irias.
— Então... mas... eu pensava que os senhores... já... se havião entendido hoje...
— Sim... perfeitamente entendidos.,.
— E... realisado o negocio...
— Por isso é que se torna indispensavel que falle hoje mesmo... já... ao senhor Alexandre Cardoso.
— O senhor começa a aterrar-me... eu estremeço por Alexandre... que aconteceu, senhor Clelio Irias?Maria era uma atriz consummada: conhecia desde muito tempo o velho uzurario; mas ignorava completamente o assumpto de que elle e Alexandre Cardoso se tinhão occupado naquelle dia; advinhava como qualquer outro advinharia que era negocio de emprestimo de dinheiro e fingio ter conhecimento de outras circumstancias, pois que evidentemente as havia e graves, pronunciando meias palavras que podião significar tudo e nada: finalmente, ardendo na mais viva curiosidade, simulou-se possuida de grande medo, e tremula, e commovida tomou entre as suas uma das mãos de Clelio Irias, e repettio a pergunta que fizera:
— Que aconteceu? que aconteceu? diga-me... pois que está arranjado o negocio... que mais quer de Alexandre ainda hoje?...
— Onde posso eu encontra-lo?... perguntou o velho, levantando-se afflicto.
— Oh! exclamou Maria; não me deixará assim nos tormentos da duvida mais desesperadora... ah! eu adevinhava algum infortunio e preveni Alexandre...
— Como, senhora ?
— Oppuz-me á semelhante negocio...— Sabe então... tudo ?
— E' por isso que tremo...
— Pois é preciso que o senhor tenente-coronel dê promptas e immediatas providencias...
— Mas que aconteceu ?
— Perdi ou roubarão-me os documentos! disse o velho com voz lugubre.
— Oh! e o louco jurou-me que elles não tinhão a importancia que...
Clelio Irias teve um impeto de furor:
— Porque erão falsos, eu sei, e lh'o disse! o senhor Alexandre Cardoso porém esqueceu-se de que ha na denuncia dada contra mim uma nota de sua letra escripta á lápis, e que os falsificados officios do commissario do santo officio e do bispo são provas de um crime que hão de perder á elle e á mim que alem disso fico ainda com o prejuizo de dez mil crusados!...
— Exactamente como eu dizia; murmurou convulsa a cortesã: e eu que não sei, onde char Alexandre!... mas é indispensavel que elle saiba da perda dos papeis...
E anciosa e quasi chorando, chamou e despachou successivamente tres escravos em procura de Alexandre Cardoso, tendo acompanhado o primeiro até a escada como á instrui-lo sobre diversas casas á que de preferencia lhe cumpria ir.
— Também eu saio... disse o velho, tomando o chapéo.
— De modo nenhum, senhor Clelio Irias: espere aqui Alexandre, e aproveitemos o tempo, estudando á sangue frio o caso, como elle se passou para com alguma luz imaginarmos, calcularmos as medidas que convem tomar.
— Não tenho cabeça: respondeu o velho.
— Tenho-a eu e em breve lh'o provarei: reffira-me sem desprezar o mais leve incidente, a mais insignificante circumstancia este desastroso successo; faça porém de conta que ignoro tudo.
Clelio Irias olhou attentamente para Maria.
— Ah! exclamou esta, com se lhe houvesse acudido uma idéa.
E levantando-se, chamou uma escrava, e mandou-a procurar Alexandre Cardoso em casa que lhe determinou.
Sentando-se de novo, disse:
— Vamos, senhor Clelio Irias.— Quer que comece pela entrevista de hoje de manhã? perguntou o velho com os olhos fitos em Maria.
— Não; até ahi sei eu; respondeu a fingida moça; mas.... suspeita que alguem pudesse estar ouvindo ás occultas o que os senhores conversarão ?
— Fallamos em voz de segredo e com a porta fechada.
— E depois?....
Clelio Irias que demais já havia dito, contou miudamente tudo quanto se passára com elle, desde que sahira de casa em cadeirinha até a sua volta da casa de Alexandre Cardoso, o ataque dirigido contra a cadeirinha, a teimosa furia do Hercules que não o deiáara, senão no fim do banho, e concluio, dizendo:
— Juro que foi aquelle desalmado que me roubou os papeis, pensando que roubava dinheiro.
Maria que ouvira em silencio, disse-lhe sorrindo:
— Perdão! só agora reparei que tem os vestidos completamente molhados.E mandou vir licores e agoardente.
Em quanto o velho uzurario se banhava interna e externamente em agoardente, Maria meditava, brincando com os dedos á enrolar e á desenrolar os aneis de seus cabellos soltos.
Quando acabou de beber e de embeber-se em agoardente, Clelio Irias sempre agitado, dice:
— E o senhor tenente coronel que não chega! Maria desatou uma risada.
O velho encarou-a raivoso.
— Ha uma hora que representamos uma scena de comedia, meu velho: eu não sabia nem um seitil do seu negocio com Alexandre Cardoso.
Grotesca estupefacção de Clelio Irias.
— Mas eu prometti provar-lhe que tenho cabeça.
— E os escravos e escravas que sahirão? perguntou estupidamente o uzurario.
— Não sahirão; respondeu Maria, rindo-se.
— Traição! bradou o velho.
— Em nosso proveito: eu sei e posso dizer-lhe, onde estão os documentos que lhe roubarão.
— Onde estão?— Sente-se ahi e responda-me: é capaz de esperar um dia, um mez, um anno pela vingança?
Clelio Irias sentou-se e respondeu:
— Sou.
— E se não a esperar, que me importa ? não ha nada de commum entre nós; é porem de seu interesse servir á minha vontade e obdecer-me.
O velho sentia-se cada vez mais espantado,
— Senhor Clelio Irias, os seus dez mil cruzados forão-se....
— Não preciso que m'o diga.
— O desalmado que o arrancou da cadeirinha, e que o conteve em suas garras até o fim do banho era um soldado que se disfarçava em paisano....
— E para que?....
— Para roubar-lhe os documentos....
— E que diabo tinha elle com os documentos?....
— Desgraçado homem! o senhor não sabe, senão emprestar dinheiro com usura abusiva e assoladora.
— Isso não vem á questão.
— Mas é um castigo do céo, que o embruteceu tanto que o senhor nem soube ver no homem desalmado e furioso um instrumento do mais interessado em prival-o, em despojal-o daquelles documentos....
O velho tentou pronunciar um nome, e gaguejou, e á convulsar de raiva nada dice.
— Esses papeis estão em poder de Alexandre Cardoso, ou elle já os destruio, queimando-os.
Clelio Irias espumava.
— Perdeu a partida, meu velho; agora porem continue o jogo, e espere um dia, um mez, ou um anno pela vingança.
O uzurario acenou com a cabeça affirmativamente.
— Amanhã, dissimulando toda suspeita, vá prevenir a Alexandre Cardoso da perda dos documentos, e fiinja-se temeroso das consequencias possiveis por elle e por si.
O uzurario escutava sem responder.
— Opportunamente insista pelo cumprimento das promessas que lhe forão garantidas: peça-lhe administração de obras do rei,e fornecimentos de tropas, e para conseguir uma e outros, abra-lhe a bolsa, se é que tem alma capaz de vingança, O uzurario teimava em não fallar.
— Abra-lhe a bolsa; mas á força de paciencia e de sacrificios consiga da mão desse homem uma assignatura, uma ordem, um escripto que o comprometta ou que sirva de prova de sua indignidade, e de suas prevaricações.
O velho queria fallar e hesitava.
— E em qualquer caso duvidoso, no ajuste de qualquer transacção venha previamente fallar-me, e conte comigo para a sua vingança, se é que tem alma capaz de vingar-se.
Clelio Irias poude emfim uzar da palavra e perguntou com espanto:
— E a senhora quem é.... ou o que é do senhor Alexandre Cardoso?....
— Fui sua amante, e sou sua inimiga; respondeu a cortezã.