As Mulheres de Mantilha/XXXVII

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XXXVI

A' mesma hora em que o velho uzurario sahia da casa de Maria, Marcos Fulgencio depois de longo padecer devorado por ardente febre, e tormentoso delirio, adormeceu emfim no leito da caridade que lhe dera a Santa Casa de Misericordia.

Fernanda que nem um só instante se afastára de seu marido, e que depois do fatal incendio não Se alimentara, nem dormira preoccupada com o perigo que corria a vida do seu Marcos, respirou esperançosa ao ve-lo socegadamente adormecido, e enxugando as lagrimas, chamou o enfermeiro e pediu-lhe que examinasse o doente.

O enfermeiro, feito o exame pedido, sorriu-se e dice á Fernanda:

— Boa mulher, a febre cedeu; agora, sim, creio que o homem se salvará: é tempo de tratar de si: vá comer alguma couza, e dormir sem receio.

— Obrigada, respondeu Fernanda: eu voltarei ao romper do dia: se elle acordar e procurar-me, diga-lhe, que vendo-o socegado, corri á cuidar tambem de Emiliana.... Emiiiana é nossa filha, meu bom senhor.

E, atando um lenço à cabeça, Fernanda sahio apressadamente.

A nobre esposa do carpinteiro tinha recebido na manhã desse dia um recado que a enchera de tristes receios pela sorte de Emiliana; mas em vez de ir procura-la na casa da velha comadre, com quem a deixara, foi bater á porta de uma pequena casa terrea do becco (hoje rua) do Cotovelo.

Uma mulher velha fez entrar Fernanda.

— Como vae o homem ?

— Melhor, minha tia; e Emiliana?

— Levou á chorar todo o dia e toda a noute; mas, bendito seja Deus, pegou no somno ind'agorinha.

— Porque não foi ella ver o pai ?

— Tres e mais vezes, coitadinha, correu até a porta; mas voltava sempre gritando: « não! não! jamais uunoa!»

— Minha tia disse-lhe o estado em que se achava Marcos ?

— Eu não; e pelo contrario fui sempre assegurando que elle passava cada vez melhor; Deos me perdoe estas mentiras.

— Então porque tanto chora Emiliana ?

— Eu sei lá! perguntei e ralhei, e ella nada quiz dizer-me.

Fernanda tremia.

— A' que horas chegou Emiliana?

— Acordou-me, batendo á porta pouco antes de romper o dia e veio só a pobresinha por essas ruas....

— Onde está ella?

- No sotão.

— Minha tia. desde hontem á noute que não como, nem durmo; acorde a negra, e mande preparar-me alguma cousa para cear, em quanto vou ver Emiliana.

— Ah, menina! porque não disseste logo?

Fernanda não tinha fome, mas queria subir só ao sotão, pobre sotão que constava de uma unica sala, baixa, e de telha vã.

Emiliana estava estendida em um antigo catre, e dormia somno as vezes agitado por contracções nervosas: defronte do catre eslava aceza uma candeia sobre uma caixa de páo.

Fernanda sentou-se aos pés de sua filha e contemplou-a com enternecimento, e dôr ao notar-lhe os olhos inflamados, os cabellos em desordem, o rosto contrahido, e os braços com manchas de contusões.

De subito Emiliana estendeu os braços, pareceu querer com as mãos tremulas repellir alguem, e assombrada sentou-se no catre; vendo porem a mãi, tornou á deitar-se, desatando á chorar.

Fernanda suffocou um gemido de angustia: deixou que a filha chorasse livremente por algum tempo e depois disse-lhe com voz grave:

— Fugiste da casa, onde te deixei; vieste só e á horas mortas da noute acolher-te á esta; não correste para meu lado junto ao leito de teu pai quasi moribundo; tens vinte annos, e recebeste educação de virtudes: uma de duas: ou explicarás o teu procedimento, ou és uma filha maldita.

E elevando a voz, acrescentou:

— Basta de lagrimas!....

Emiliana deixou de chorar; mas á luz da candeia o seu rosto se mostrava de fogo e carmim.

— Falla !

A joven saltou fóra do catre, cahio de joelhos, e com a cabeça inclinada para o chão, balbuciou tremendo.

— Juro por Deus nosso senhor.... não tive culpa....

Fernanda torceu as mãos com desespero: levantou-se e em pé diante da filha ajoelhada, dice com voz repassada de colera ou de dor:

— Miserável!.... deshonraste-nos ?

Emiliana ergueo a cabeça e ao mesmo tempo resentida e confusa, orgulhosa e envergonhada, respondeu sem soluçar, mas cahindo-lhe em bagas as lagrimas:

— Levarão-me á casa da traição e ahi me abandonarão!.... ao annuncio do desmaio e do perigo de meu pai, minha mãi esqueceu a filha que ficava só, pelo marido que longe era levado, e nem reparou que me deixava sem sentidos.... não me queixo disso.... o abandono em que me achei foi exigido por outro dever....

E elevando tambem a voz, bradou por sua vez:

— Mas porque agora me condemnão?

Fernanda abria o coração ás queixas e increpações que fazia á filha; ainda porem em tom severo, perguntou:

— E depois?....

Emiliana respondeu, fallando com os dentes cerrados:

— Abandonarão-me inanimada nas garras da traição e tornei á mim nos braços do crime, e no abysmo da vergonha!!!

— Desgraçada!....

— De quem é a culpa?.... perguntou desesperada ainfeliz moça.

Fernanda estendeu o braço sobre a cabeça de Emiliana, e com a mão abençoou a filha.

— Debalde gritei.... abafarão-me os gritos, cerrando-me com força a bocca; fui maltratada, e esmagada em luta desproporcionai.... e outra vez desmaiando, nem sei que fiserão da filha abandonada!.... quando recobrei os sentidos, achei-me só, levantei-me, e abri a janella, saltei por ella, e vim bater á porta da casa de minha tia....

E ainda mais profundamente resentida, perguntou lugubremente:

— Quem tem a culpa de minha deshonra?

— Tu és pura diante de Deus, minha filha: e, alem de pura, és martyr!

— E o mundo?.... e eu agora no mundo ?....

Fernanda não sabendo que dizer perguntou:

— Conheceste o infame?....

— Desde muitos dias eu tinha reclamado a vigilancia e a protecção de meus pais contra elle....

— Alexandre Cardoso!!! exclamou Fernanda.

— Eu tinha dito á meus pais que a velha perversa estava vendida á esse homem!

— Emiliana!....

A pobre moça em angustias despedaçava o coração materno:

— Eu dice tudo.... avisei debalde! debalde, porque meus pais me entregarão sem defesa, me abandonarão fraca, e desmaiada á traição e ao crime!....

Fernanda cahio de joelhos em face de sua filha ajoelhada, e disse, chorando:

— Perdão, Emiliana!....

Mãi e filha abraçarão-se, misturando as lagrimas.

A velha tia fallando da escada, annunciou que a cea estava á meza.

Fernanda e Emiliana levantarão-se.

— Vamos cear, dsse a mãi.

— Não posso....

— E' preciso poder faze-lo: tua desgraça deve ser um segredo para todos, e principalmente para teu pai: ao algoz aproveita o silencio; a velha perversa terá medo do conhecimento do crime, pois que o senhor Vice-Rei mandou garantir-nos a sua protecção, e reconstruir á sua custa a nossa casa incendiada; eu sou mãi e tu foste a victima: ninguem fallava: é necessario esconder ao mundo, á todos a tua, a nossa vergonha. Vamos cear.

— Vamos; murmurou Emiliana.

E fez um movimento rápido para caminhar adiante.

Fernanda segurou-a pelo vestido.

— Emiliana! disse-lhe; minha pobre filha, tu levas no coração o amargor que hade durar muito, e um resentimento. que me confrage, e que me mata!....

— O que, minha mãi ?....

— Meu marido, teu pae estava em perigo de morte....

Emiliana hesitou....

— Oh, minha filha! perdoa pelo amor de Deus o abandono em que tua mãi te deixou!!!

Emiliana lançou-se chorando nos braços de Fernanda.