As Pupilas do Senhor Reitor/VIII
Clara era a filha do segundo matrimônio do pai daquela mesma Margarida ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam já dado que entender ao reitor.
O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima, que nada mais lhe havia trazido em dote, além de um afeição ilimitada e de um coração excelente.
Durante a vida da primeira mulher viveu sempre ele a custa de muito trabalho, pelo ofício de carpinteiro, não podendo até mandar aprender a ler à filha, único fruto desta primeira união, pois que de pequenina a teve de ocupar no trabalho.
A mãe de Margarida morreu, porém, deixando-a de idade de cinco anos. O pai, como já dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta, e, na opinião do mundo, fez um ótimo negócio o carpinteiro.
De fato, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro de alguns dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofício e entregar-se todo ao fabrico e administração de suas novas terras, tornando-se um dos mais conceituados lavradores dos arredores. Mas a próspera fortuna do recente lavrador converteu-se em tormento e desventura para a desamparada criança.
A madrasta, em pouco tempo mãe de uma outra rapariga, ciosa de toda afeição e carícias paternas, que Margarida pudesse disputar a sua filha, aborrecia-se e procurava sempre pretextos para a trazer por longe.
Daí, a causa daquela solidão a que fomos encontrar, quando pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou baixava a cabeça resignada. Tinha um caráter dócil e submisso, e não se atrevia a protestar nem sequer por uma daquelas espontâneas e irrefletidas revoltas, tão próprias da infância atribulada.
Com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circunstâncias. Livre da única repressão que podia coagir a completa má vontade que tinha à enteada, aquela mulher de gênio violento acabou por desprezá-la de todo. A cada passo lhe lançava em rosto a pobreza de condição em que nascera, clamando que o pão que lhe dava a comer era um roubo que fazia a sua própria filha.
Margarida ouvia; humilhavam-na estas contínuas e injustas recriminações, mas até as lágrimas procurava ocultar, com medo que dessem causa a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para que a levasse para si.
A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um único raio de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais ânimo as trevas completas do presente.
Uma só compensação experimentava a triste e desarrimada criança, em troca de tantas dores e constante suplício: - era a amizade de sua irmã.
Clara não herdara da mãe durezas de coração nem violências de gênio. Afável no meio de suas alegrias de infância, compadecia-se já pelo que via sofrer a irmã, e admirando aquela resignação de mártir, que ela bem se conhecia incapaz de mostrar em ocasião alguma da vida, principiou a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco a pouco, degenerou em prestígio e lhe cultivou no coração uma verberação sem limites.
Muitas vezes as rudezas da mãe para com Margarida faziam-na chorar também, e, às ocultas, vinha pedir perdão a esta de um tratamento, de que ela bem percebia ser a causa involuntária.
Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afeto de Clara, e em pouco tempo ficou sendo esse laço o único pelo qual ela parecia prender-se ainda ao mundo, que tão despovoado destas seduções lhe andara sempre.
Pequenos episódios, na aparência insignificantes, corroboraram em uma e outra estes sentimentos e influíram na sorte futura das duas irmãs, que, ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis.
Em uma noite de inverno, a mãe de Clara deitara-se às nove horas com a filha; e por um requinte de crueldade estúpida obrigara Margarida a conservar-se a pé serandando, até concluir certa tarefa que lhe marcara; e ao deixá-la só, dirigiu-lhe estas palavras cheias de humilhação para a pobre rapariga:
— Minha rica, quem vier a este mundo, sem meios de levar melhor a vida, não deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar outros, com que, ao depois, não possa. Fica a pé e tem-me essa obra acabada.
Margarida não tentou uma só queixa ou súplica, em seu favor. Calou e obedeceu.
Era, como disse, no inverno; fazia um frio excessivo. A lareira estava apagada já; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz bruxuleante era a única a iluminar o recinto. O vento assobiava nas inúmeras fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuosas pelo tubo da chaminé, indo inteiriçar os membros regelados da desditosa criança, que, só a custo podia já suster a roca e torcer o fio, para terminar o trabalho. O silêncio da noite era interrompido por mil ruídos sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersticiosas como sempre, mais ou menos, são as da gente de campo.
Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga que nunca, a sua orfandade e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu à Virgem que se compadecesse dela.
Lembrou-se então de quando a mandavam sozinha para o monte, e daquelas raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a companhia do pequeno Daniel.
As saudades desses dias nunca mais a deixaram. Com ela vivia sempre, com elas se achava só, quando, olhando para o passado, lhe pedia uma recordação de prazer, em paga de tanta tristeza que, no presente, lhe oferecia a vida, de tantas sombras, com que lhe vinha o futuro.
Nessa noite pensou também em Daniel; pensado nele, e naqueles breves momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão dos montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá; e esqueceu o frio e o medonho da noite - que um outro lhos fizera desvanecer a vara mágica da fantasia; - e insensivelmente parou-lhe a mão que fiava, descaíram-lhe os braços, vergou a cabeça melancólica, e o pensamento perdeu-se em longa e abstrata contemplação que, sem transição apreciável, terminou em um sono profundo. Encontraram-se e confundiram-se os últimos devaneios da vigília, com os primeiros sonhos em que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.
Clara não pudera, porém, adormecer com a idéia do sacrifício imposta à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe, ouvia o som do soluçar de Margarida, e isto era um martírio para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da irmã, que já não tinha nenhum amparo, e, rezando assim, chorava ainda mais do que ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar deu-lhe a certeza de que a mãe havia já caído no sono.
Clara não hesitou mais.
Com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou-se para a cozinha, onde Margarida já tinha adormecido. Clara não a acordou. Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado dela e tirando-lhe sutilmente a roca da cinta, pôs-se por sua vez a trabalhar.
Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia... sonhava ainda.
Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que a mãe tivesse acordado; por isso, mal teve tempo de correr a meter-se no leito, procurando não excitar a desconfiança materna, e não pôde chamar a irmã para a mandar deitar.
Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-lhe que adormecera com o trabalho mal principiado ainda, apertou-se-lhe o coração, e a pobre criança juntou as mãos de desesperada. Mas que espanto ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe haviam dado por tarefa!
A sua primeira idéia foi que tinha sido aquilo um milagre da Senhora, a quem se havia encomendado e cujo auxílio fervorosamente suplicara. Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonado um dia a ermida da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixão mundana, voltara mais tarde às portas do claustro, coberta de arrependimento e de vergonha: e, quando esperava recriminações e opróbrios, soube que ninguém tinha lhe dado pela falta, porque a Senhora se compadecera dela, e revestindo a sua imagem, viera todos os dias fazer o serviço da clausura.
Margarida acreditou em outro milagre desse gênero e com estas idéias se foi deitar, rendendo expansivas ações de graças à Virgem, por tão miraculosa intercessão.
Mas, pouco a pouco, a verdade foi lhe aparecendo mais distinta, e pela madrugada acabaram de confirmá-la alguns vestígios evidentes de Clara ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia; denunciou-a um lenço que ela deixara cair na pressa com que voltara à alcova.
Nessa manhã, pois, Margarida aproximou-se da irmã, e beijou-a com efusão.
— Obrigada, Clarinha, Deus te há de recompensar essa bondade.
— Se achas que mereço alguma recompensa, por que ma não dás tu mesma Guida?
— Eu, meu coração? Que recompensa podes esperar de uma pobre?
— Que não queiras muito mal a minha mãe por tanto que te mortifica, e que... me tenhas um pouco de amizade.
— Querer mal a tua mãe, doida! E posso eu querer mal a quem me dá o pão, de que me sustento, o teto e os vestidos que me cobrem? Que eu nada disto tenho, Clarinha.
— Não me digas isso.
— A minha amizade, pedes-me tu! E um pouco de amizade disseste! E, a não ser a ti, a quem queres que eu vá dar toda esta que Deus me pôs no coração para dar? Da tua mãe recebo eu a esmola do pão e do abrigo, agradeço-lha e rogo a Deus por ela; a ti devo-te mais; devo-te a esmola da consolação e do conforto; por isso te estremeço e quero, Clarinha. E tu duvida-lo?
— Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmola em casa de teu pai, Guida? - perguntou Clara, com uma viva expressão de nobre orgulho que lhe estava no caráter.
Margarida sorriu melancolicamente a esta exaltação da sua irmã e respondeu:
— Esta casa não é de meu pai, é de minha...
Ia dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar à palavra uma entonação menos afetuosa.
Clara saltou-lhe ao pescoço, e, por um daqueles impulsos irresistíveis da sua índole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas faces.
— Guida, Guida, esta casa ainda há de ser minha, e então veremos se me fazes a desfeita de lhe não chamares de tua também.
Doutra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. Com inacreditável exigência havia-lhe a madrasta fixado, de antemão, qual seria o preço da venda, não lhe permitindo baixá-lo, e obrigando a pequena, ao mesmo tempo, a não voltar para a casa sem a ter realizado.
Os maus tratos e ásperas repreensões esperavam infalivelmente Margarida naquele dia, visto a exorbitância dos preços estabelecidos e uma tão grande afluência de fruta na praça, que barateara o gênero. A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores sorriam ao ouvir o preço excessivo que ela pedia pela fruta.
Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele momento. Viu a irmã assim aflita, e aproximou-se dela.
— Que é isso, Guida? Tu choraste?
— E admiras-te ainda de me veres choras, Clarinha?
— Mas... dize-me, por que foi isto?
Margarida contou-lhe tudo.
Clara ficou a olhar para o chão pensativa.
— E de tanta gente rica que há por aí, ninguém terá alma de pagar mais cara alguns vinténs esta fruta, para fazer bem a uma pobre rapariga.
O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento, atravessava o lugar, fazendo provisão de fruta, e parecendo não regatear muito.
— Ai - disse Clara, ao encarar com ele - o meu padrinho, o Sr. Cônego Arouca! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta?
— Que vais fazer, Clarinha?
— Escuta.
E, imediatamente, arrebatando a canastra das mãos da irmã, Clara correu a colocar-se no caminho do velho cônego, quando este prosseguia no seu feirado.
— Muito bons-dias, meu padrinho, deite-me as suas bênçãos.
— Tu por aqui, Clarita? Deus te abençoe, rapariga. Então que fazes tu?
— Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?
— Sim, pequena? Então por quê? Não encontraste noivo ainda?
— Ora! está a brincar. Não é isso.
— Então?
— Trago à feira uma canastra cheia de frutas, e ainda não encontrei compradores.
— E o defeito é da fruta, ou de quem a vende?
— Há de ser de quem a vende que lá a fruta... essa boa é.
— Boa, sim; mas cara...
— Ora essa! meu padrinho. Nós cá não somos mais do que as outras. Vendemos pelo mesmo preço que elas vendem.
— Ora deixa cá ver a fruta. Então quanto queres tu por isso? Um dinheirão?
Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cônego tinha resolvido, de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse dura como pedra, e cara como o açafrão.
— Se for para o meu padrinho, o que quiser - respondeu Clara.
— Está bom. Não é má de todo. Passa-me ai para a canastra do criado, enquanto eu faço as contas.
E, ao passo que a filhada cumpria a ordem recebida, ele mexia, e remexia nos bolsos do colete, donde tirou não sei que moeda em ouro, que quadruplicava o preço da fruta, e passou-a para as mãos de Clara, dizendo:
— Aí tens; o que crescer é para um lenço.
— Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me suas bênçãos.
— Vai com Deus, rapariga, e faz visitas à tua gente - respondeu o cônego, dando-lhe a mão a beijar.
Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe:
— Vê, vê, não te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos para tremoços.
Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas de gratidão.
Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas de aversão que nunca deixava de sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na afetuosa caridade com que a tratava.
A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável.
Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu procedimento para com Margarida.
À hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos, disse-lhe entre soluços:
— Guida - pela primeira vez lhe deu este nome afetuoso - perdoa-me! Deus alumiou-me o espírito. Só agora conheço a minha maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me minha filha, e sê generosa até o fim,. Clara fica só, é ainda muito criança. Lembra-te que ela é tua irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela. Perdoa-lhe o ser filha de... tua madrasta.
Foram as derradeiras palavras que disse.
Margarida caiu sufocada de choro, junto do leito da morta. Não lhe restava no coração a menor sombra de ressentimento contra aquela que a fizera tão infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lágrimas dessa órfã.
Passado tempo, sentiu que um braço a levantava. Voltou-se: era o reitor, que olhava para ela comovido.
— Muito bem, Guida, muito bem! - exclamou o velho com entusiasmo - Essas lágrimas são generosas, são verdadeiras jóias da tua boa alma. Elas devem ser de grande alívio para aquela cujo maior pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer.
E daí por diante ficou o reitor tendo por súbito conceito a Margarida.