As Pupilas do Senhor Reitor/XXXI
Uma tarde, estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar, à janela do lado da rua.
A luz do sol apenas dourava já os cimos dos montes mais elevados e longínquos. Aproximavam-se as horas, às quais Daniel costumava passar ali.
Já por mais duma vez dirigira Clara a vista pelo caminho que ele ordinariamente seguia: era uma vereda íngreme e tortuosa que vinha do alto da colina à planura, onde estava situada a casa, e daí descia ao vale - centro principal do povoado.
Porém, sempre que os olhares de Clara tomavam aquela direção, encontravam-se com os da irmã, e instintivamente se abaixavam logo.
Margarida não estava também tranqüila naquela tarde. Em toda a fisionomia dela, em todos os gestos e palavras, denunciava-se, por sinais evidentes, um violento desassossego interior.
De quando em quando, voltava-se para Clara, como se resolvida a falar-lhe, a comunicar-lhe alguma coisa que a preocupava; mas, num momento, parecia abandoná-la a resolução e permanecia silenciosa.
O estado de espírito de uma e de outra mal lhes permitia sustentar a conversa, a qual procedera frouxa e interrompida, a todo instante, por freqüentes pausas.
De uma vez, porém, a impaciência de Clara, ao observar o caminho, por onde era de esperar Daniel, desenhou-se-lhe tão expressiva na fisionomia, que isto deu ânimo a Margarida para vencer a hesitação com a qual lutara até ali. Fixando a vista na costura em que trabalhava, principiou dizendo, em tom de gracejo:
— É na verdade uma pena, Clara, que tu, que tens tão bonitos olhos, teimes em os trazer assim fechados,
— Fechados? Que queres tu dizer, Guida?
— Que os fecha para muitas coisas, que é sempre perigoso não ver, filha.
—Não te entendo - disse Clara, sorrindo.
Margarida prosseguiu:
— Mas isso é gênio teu. Tu andas no mundo, como de noite pelos caminhos da aldeia. Não te lembras, quando, no outro dia, saímos mais tarde de casa do nosso pobre mestre? Fazia muito escuro. Eu, a cada passo, estava a parar; parecia-me por toda a parte ver fojos e barrancos, tu rias-te de mim e seguia sempre para diante, com uma confiança naquela escuridão, como se realmente fosse estrada direita.
— E olha que não cai! - acudiu intencionalmente Clara, que julgou principiar a compreender o sentido das palavras da irmã.
— Não; é certo que não. Parece que há uma estrela que protege quem assim é animoso; como se todo esse ânimo não fosse outra coisa senão a mão do Anjo da Guarda a guiá-lo, sem se mostrar. Mas olha: lembras-te quando uma vez, voltando assim de noite a casa, e sem escolher caminho, vieste dar aos lameiros dos Casais? Viste-te obrigada a tornar para trás, e, como se adiantava a noite, tiveste de ir ficar a casa da tua madrinha, nos Cabeços. Que susto que eu tive, Santo Deus! se eram já altas horas, e tu sem chegares?
— É verdade. E por sinal que me mandaste procurar.
Mandei. Imagina lá como eu fiquei, como ficamos nós todos quando sendo já madrugada, nos voltaram a casa com uma das argolas das orelhas, que tinham encontrada meio enterrada nos lameiros.
— Tinha-me caido lá, tinha.
— Julgamos-te perdida, morta. Ainda não havia muito que lá morrera afogado aquele pobre cabreiro. Hás de estar certa? Que noite passei, Nossa Senhora! E tu...
— E eu a dormir muito descansada em casa de minha madrinha. Pudera não. Imagina tu que eu tinha andado... léguas, talvez.
— Mas aí está como, sabendo-te salva como dessa vez te sabias, os outros, por alguns sinais mentirosos, como aquele, te podem julgar... perdida.
E Margarida calou-se, depois de fazer esta observação.
Clara olhou algum tempo para a irmã, sem dizer palavra: em seguida replicou, parando de trabalhar:
— Fala-me claro, Guida. Dize o que me tens a dizer. Que precisão tinhas de vir com isso, para me dares um conselho? Alguma coisa fiz eu, que te desagradou. Vamos, dize o que é. Acaso já deixei de escutar-te alguma vez como tu mereces?
— Tens razão, Clarinha. Eu devia ter mais ânimo para te falar... para te dizer certas coisas, vendo como tu me atendes sempre... Mas, que queres? Ao mesmo tempo, tenho tanta confiança em ti, que pergunto a mim mesma, se valerá a pena estar a mortificar-te assim...
— Mas então que mal tenho eu feito?
— Ora! que te responda a tua consciência, Clarinha; pergunta-lho.
— Não sei... - disse Clara, um pouco perturbada.
— Não é de nenhum pecado mortal que ela te acusará, de nenhum crime muito negro; sossega. Mas de uma culpazita... de uma fraqueza dessa cabeça, um pouco mais leve, do que para uma noiva se queria.
— Bom. É o sermão de costume. Já vejo - disse sorrindo, Clara. - Sabes ao que acho graça? É a não ser o Pedro que o prega. Esse tinha mais desculpa. Mas então que fiz eu de assim de maior?
— Ora vamos. Para que precisas que eu to diga? Ia afirmar que, agora mesmo, o estás a dizer baixinho a ti própria.
Houve um pequeno silêncio entre as duas.
No fim dele, Clara ergueu a cabeça, dizendo:
— Sim, parece-me que sei o que é. O Sr. Reitor já no outro dia me deu a entender o mesmo. É por eu falar com o Sr. Daniel quando ele passa por aqui? Santo nome de Maria! Como há de ser isto, então? Não me dirás, Guida? - continuava Clara jovialmente. - Como hei de eu, depois de casada, deixar de conversar com o irmão do meu marido? Que idéia fazem de mim, tu, o Sr. Reitor e todos os que nisso repararam?
— Bem vês, Clarinha, que não é de ti que eu receio. Conheço-te. mas tu bem sabes, o Sr. Daniel é... dizem dele... passa por...
E Margarida hesitava, ao procurar exprimir a opinião pública a respeito de Daniel, porque todas as frases lhe pareciam demasiadamente duras e severas para com o caráter dele.
— Nem sei o que me parece ouvir-te dizer isso. Ainda que ele fosse o que por aí dizem, conserve-se uma pessoa no seu lugar, que nada pode temer. Querias talvez que eu fizesse como aquela gente , no outro dia, na esfolhada, que toda se encolhia quando ele chegou?
— Na esfolhada? - disse Margarida, ainda sem olhar para a irmã. - Ora tu que ainda me não contaste nada do que se passou naquela noite!
Esta alusão embaraçou manifestamente Clara, que se apressou a dizer, como se a não tivesse ouvido.
— E demais, não tens tu escutado todas ou quase todas as conversas do Sr. Daniel comigo? Aí tens estado, por dentro da janela, e sem que ele o saiba. De que o ouves falar? Diz-me alguma coisa que eu não deva ouvir? Conta-me o que viu na cidade, o que leu, histórias, versos... - e como conta bem! - e queres que eu me não entretenha a ouvi-lo, quando tu mesma, às vezes, sim, que eu bem tenho reparado, deixas de trabalhar, e ficas quieta a escutá-lo também! Então que há nisto de mal?
— Mas então? Já se fala... Que se lhe há de fazer? O mundo tem maldades, e nós vivemos no mundo... Há gente de tão más tenções, que, só pelo gosto de fazer mal, pode ir às vezes inquietar o espírito de Pedro, com histórias mentirosas, e daí sabe Deus...
O ruído de uma cavalo a trote, que vinha do lado dos montes, interrompeu o diálogo. Clara dirigiu para lá os olhos, e viu um cavaleiro que se aproximava, saudando-a de longe.
Era Daniel.
— Olha; falai no ruim... - disse ela para Margarida, que instintivamente retirou a cadeira da janela.
— Vais ver - prosseguiu Clara - como eu sou amiga de fazer vontades. Vou acabar com isto, já que assim o querem... isto é, já que assim o queres; pois dos outros bem me importava a mim.
— O melhor é... - ia dizer Margarida, quando a voz de Daniel, falando da rua para a janela, a obrigou a calar.
— Muito boas-tardes Clarinha - dizia ele. - Receava não a ver já hoje; por isso obriguei este pobre animal a um trote por estes caminhos de cabras abaixo, que muito pouco lhe agradou.
— Então tinha o que me dizer?
— Nada. Era para não perder o meu dia. Quando vi fechadas as folhas da mimosa da Quinta da Feira, temi vir encontrar já fechada também a sua janela, Clarinha.
— Era pena! - disse Clara, sorrindo; e depois, debruçando-se ao peitoril, acrescentou, lançando com disfarce, um olhar para a irmã: - Tenho a pedir-lhe um favor, Sr. Daniel.
— Que felicidade para mim! Diga.
— Quando de hoje em diante, voltar para casa, não há de vir por este sítio.
— Clara! - disse Margarida em voz baixa, puxando pelo vestido da irmã.
Clara não a atendeu.
— Por que me faz este pedido? - perguntou Daniel, admirado.
— Porque, segundo me dizem, deram-lhe para reparar por aí nestes seus passeios, e então, para não inquietar o mundo...
— Clarinha, que estás a dizer! - murmurava Margarida, escondendo-se por detrás da irmã.
Clara fingia não ouvi-la.
— Tenho-a ofendido por acaso alguma vez? - perguntou Daniel.
— Em coisa nenhuma. Bem vê que eu digo que é pelo mundo...
— Então deixe falar o mundo.
— Não é tanto assim. Talvez o fizesse se não fosse noiva. Parece-me até que o fazia, mas assim...
— Esta vida de aldeia! ... exclamou Daniel, num tom de supremo enfado. - esta vida de mexericos e de maledicências velhacas! Praga maldita das terras pequenas, onde faltam coisas sérias em que pensar! Ora vejam no que esta gente se ocupa? Em saber o que eu faço, como vivo, para onde vou, com quem converso; e isto entretêm-na! Então repararam já em eu passar por aqui? Como se não fosse coisa muito natural conversar consigo, Clarinha. Pois não somos nós parentes quase?
— Isso dizia eu à...
Um sinal de Margarida obrigou-a a interromper-se. Limitou-se a dizer, mutilando a frase e mudando a inflexão:
— Isso dizia eu.
— Afinal, não há como viver na cidade - continuou Daniel - Lá pode um homem conversar com uma senhora, apertar-lhe a mão até, que ninguém repara nisso. Aqui andam a espiar tudo o que se faz e a tomar tudo a mal. Que costumes estes!
E Daniel prosseguiu numa longa imprecação contra a vida campestre, exaltando a urbana, o que demorou, ainda por muito tempo a conversa.
No fim dela, renovou Clara o pedido, e conseguiu que Daniel, depois de alguma resistência, lhe dissesse a sorrir:
— Pois bem; esteja certa que eu farei com que não falem de mim. Não me hão de ver mais aqui.
E partiu.
— Estás satisfeita? - perguntou Clara, voltando-se para a irmã, logo que o perdeu de vista.
— Não - respondeu esta.
— Por que não?
— Queria que fosses tu a que deixasses de aparecer, e não lhe falasses assim.
— Por outra - tornou Clara - levemente despeitada - querias que eu fosse grosseira.
— Não - respondeu Margarida, abraçando-a - queria que fosses prudente.