As Vítimas-Algozes/III/I

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Era o dia feliz que marcava o décimo primeiro aniversário natalício de Cândida. A espaçosa e bela casa de campo de Florêncio da Silva estava vestida de gala, e resplendendo alegria. A cada momento chegavam carros, conduzindo famílias, graciosas amazonas e elegantes cavaleiros, que vinham aplaudir a festa da ditosa menina.

Tanto ardor festival indicava claramente a importância e o merecimento do pai de Cândida.

Florêncio da Silva era um honrado, inteligente e rico negociante da pe­quena cidade de...., da província do Rio de Janeiro, e também um pouco agricultor por distração e gosto, possuindo a meia légua da cidade, onde comerciava, uma chácara esmeradamente tratada; comprara nas vizinhan­ças dela extensa situação, e aí, desde o princípio da guerra civil dos Esta­dos Unidos da América do Norte, explorava com o maior proveito a cultu­ra do algodão.

Bom, afável e generoso, repartindo as sobras da riqueza que acumulava com os pobres que não eram vadios, e entretendo numerosas relações no seu e nos vizinhos municípios, Florêncio da Silva era ainda por isso mesmo poderosa e legítima influência eleitoral e política na sua comarca; e intimamente ligado como se achava por laços de estreita amizade e de partido com Plácido Rodrigues, o mais opulento fazendeiro e capitalista do lugar, não haveria triunfo possível contra eles em lides eleitorais, se no Brasil não houvesse o poder mágico e despótico da polícia que faz da voz do povo eco obrigado e mísero da ordem ditada pelo governo aos falsos, ou falsificados comícios da nação.

Florêncio da Silva não sabia como agradecer a Deus a sua felicidade: es­timado geralmente, gozando de consideração igual ao seu crédito, justo tributo pago as suas virtudes, tinha no lar doméstico, em Leonídia, o tesou­ro de uma esposa modelo; e dois filhos, a quem idolatrava, Liberato, o mais velho, que fazia na Corte os seus estudos de preparatórios, e Cândi­da, que completava então onze anos de idade, sem falar em Frederico, fi­lho de Plácido Rodrigucs, que fora criado aos peitos de Leonídia, e que também pertencia ao seu coração.

Ele tinha a família habitando ordinariamente na chácara, o seu paraíso, enriquecida de jardins, de prodigiosa variedade de árvores frutíferas e de ornamento, de lagos e fontes, de arroio natural correndo sobre leito de pedras, de verdura e relva, e melhor que tudo isso, do amor abençoado e suavíssimo da esposa e dos filhos.

Era nessa chácara que ele estava festejando os anos da sua querida Cândida.

A menina, enlevo e estremecido cuidado de seus pais, mostrava-se naquela idade em que a infância ainda ri, e a puberdade em longes promessas se anuncia aos olhos maternais que observam, nesse estádio da vida, período de insensível mas progressiva metamorfose, em que duas idades se misturam e se combatem, uma para morrer entre flores, risos e sonhos de anjo, outra para nascer entre um espanto, cem enleios, mil dúvidas, e no labirinto da inocência que se confunde, e do coração que anseia uma e outro em santa perplexidade, a menina se mostrava, dizemos, mimosa e linda criatura, que se fazia amar com a pureza dos amores do céu.

Cândida era loura: seus finos cabelos caíam em anéis; tinha os olhos azuis e belos e o olhar de suavidade cativadora; o rosto oval da cor da magnólia com duas rosas a insinuarem-se nas faces, – um céu alvo com duas auroras a romper; – a boca, ninho de mil graças, era pequena, os lábios quase imperceptivelmente arqueados, lindíssimos, os dentes iguais, de justa proporção e de esmalte puríssimo, o pescoço e o corpo com a gentileza própria da sua idade, as mãos e os pés de perfeição e delicadeza maravilhosas.

Fazia pena e medo pensar que a próxima metamorfose podia alterar, como acontece muitas vezes, aquela harmonia feliz de encantos e de beleza.

Florêncio da Silva educava e instruía sua filha ao lado e sob a vigilância de Leonídia, que velava por ela com olhos e coração de mãe extremosa: aos onze anos Cândida falava o francês, conhecia o inglês, a geografia, a história, tocava piano e cantava com sua voz que era já naturalmente canto mavioso, voz da infância, música do lar; desenhava, bordava de diversos modos e, ainda mal sabida em tantos dotes, conservava todos os seus mestres, e com eles apurava o estudo do que apenas aprendera os rudimentos.

Porém o que mais enfeitiçadamente radiava em Cândida era o brilho, a expansão, a segurança, o abandono, o celeste perfume da inocência, dessa virginal, puríssima, sublime insciência do mal, insciência que faz da menina um anjo da terra, que arremeda e quase iguala os anjos do céu.

A casa de campo de Florêncio da Silva já estava cheia de senhoras e cavalheiros convidados para o banquete da festa de Cândida, que se abismava com ruidosa alegria infantil em um oceano de flores, de ramalhetes, de bonecas, de álbuns, de livros ricamente ilustrados.

E todavia, ainda assim Cândida não estava plenamente satisfeita: ao contrário, almejante, ávida, desassossegada, de instante a instante corria à janela, e estendia os olhos pela rua principal da chácara.

Florêncio e Leonídia riam-se, observando a impaciência da menina. Por fim ela viu o que esperava, e batendo palmas exclamou:

– Aí vem meu padrinho! É meu padrinho!... É o seu carro!..

Era Plácido Rodrigues que com efeito chegava.

Daí a breves momentos a afilhada correu a atirar-se aos braços do pa­drinho que muito amava.

Plácido recebeu enternecido os abraços apertados da afilhada, beijou-a na fronte, deu-lhe a mão a beijar, e com solenidade deitou-lhe a benção.

Cândida tinha os olhos úmidos de lágrimas de alegria.

– E o teu presente de anos? – perguntou-lhe Plácido.

– Foi o abraço de meu padrinho – respondeu a menina.

– Esse fui eu que recebi, Cândida; agora recebe tu, o que te trago.

– Que é, meu padrinho?

Plácido Rodrigues dirigiu-se imediatamente à porta, fez um sinal com a mão, e logo depois apresentou a Cândida uma crioula de idade de doze anos, vestida com apropriado esmero, e calçada de botinas pretas.

– Trago-te uma escrava quase da tua idade, a quem mandei ensinar de propósito para ser tua mucama.

E voltando-se para a crioula, disse-lhe:

– Lucinda, eis aí tua senhora.

E logo, falando à afilhada, acrescentou:

– Toma conta dela, Cândida, e se te desagradar a figura, e não gostares ­do serviço dessa crioula, hás de mo dizer, para que eu a troque por outra.

– Plácido deixou a afilhada, que ficara em silêncio olhando para a sua mucama.

Em breve Lucinda não pôde resistir à infantil observação da menina, e abaixou os olhos, sorrindo-se com agrado.

Cândida gostou do rir da crioula e perguntou-lhe com tom senhoril.

– Que sabes tu fazer, Lucinda?

– Engomo, coso, penteio, e sei fazer bonecas.

O rosto da menina radiou de júbilo.

Ela tomou pelo braço a crioula, e levando-a até junto de sua mãe, disse:

– Meu padrinho me deu esta mucama que sabe pentear e também fazer bonecas!...

Leonídia sorriu-se, e olhou para o compadre, agradecendo-lhe com os olhos o presente que tanto alegrara a filha.

Cândida foi imediatamente mandar que acomodassem Lucinda, como tratasse de recolher um tesouro.

Que tesouro! Uma escrava mucama de menina que em breve ia ser moça!