As Vítimas-Algozes (1869)/III/LII
A mucama escrava consumara finalmente a sua obra.
Vendo Cândida sair apreensiva e temerosa da sala, a perversa Lucinda correu a ela em tremente agitação e anunciou-lhe aterradoras novas, declarando que o pajem de seu senhor, posto em confissão por Liberato, denunciara medroso todos os segredos do amor de sua senhora-moça e de Dermany, não o deixando ignorar nem mesmo a alucinação e o erro da noite sinistra; que Liberato furioso jurara medonha vingança, de que ela, pobre escrava, ia ser a primeira vítima; que Dermany fora reconhecido na última noite por Frederico, e que em desvario inaudito ousara voltar ainda, e estava no quarto do pajem e absolutamente decidido a subir e a apresentar-se na sala, arrostando tudo para reclamar sua noiva, se esta não lhe fosse falar imediatamente.
Lucinda chorava, tremia, e despedia-se de sua senhora, dizendo que ia fugir...
Cândida apavorada, e no maior desatino, toda entregue aos impulsos do terror, perdida, doida, e nesse estado de abandono da própria razão, nesse delírio compelida pela escrava, lançou-se precipitada para o saguão e entrou no quarto onde estava Dermany.
O jovem francês radiou com alegria satânica.
– Este momento é toda nossa vida – disse ele com voz comovida, mostrando duas folhas de papel a Cândida. – Aqui estão as licenças que consegui hoje obter para que em qualquer igreja o primeiro padre que encontrarmos abençoe o nosso casamento. Lê e fujamos! Vem ser minha esposa!
– Cândida toda trêmula nem olhou para os falsificados documentos que Dermany lhe apresentava, e estendendo-lhe a mão, balbuciou apenas:
– Vamos.
E aceitando sem repugnância o braço de um homem que trazia libré de lacaio, acompanhou-o, fugindo da casa de seus pais.
A escrava mucama os seguiu levando uma trouxa de vestidos seus: evidentemente ela se tinha preparado.
Dermany caminhava apressado, e Cândida deixava-se quase arrastar, e arfava de fadiga, quando teve de entrar naquele pequeno povoado de casinholas que se escondem humildes, e a que o povo deu o nome de cortiço.
– Quem traz você aí? – perguntou um velho que estava sentado no portão.
– Minha irmã e uma escrava: é só por uma hora – respondeu Dermany.
Cândida confusa, vergonhosa pelas observações rudes e desrespeitosas que ia ouvindo a homens e mulheres que encontrava e a olhavam rindo-se, subiu a uma espécie de galeria baixa, estreita, agreste, para a qual se abriam muitas portas todas igualmente pequenas, e onde não havia uma só janela.
Indivíduos de ambos os sexos, todos vestidos pobremente, alguns maltrapilhos, entravam por aquelas portas, ou saíam para a galeria, galhofando grosseiramente.
Cândida agarrava-se ao braço de Dermany, que enfim parou diante da última porta, e abrindo-a, disse à infeliz moça:
– Entra.
Cândida entrou seguida de Lucinda, e achou-se em uma saleta, cuja mobília limitava-se a uma cama, uma agreste mesa, e um banco de pau.
Lucinda começava a espantar-se.
Dermany chamou o morador do quarto vizinho, que pronto acudiu à sua voz; era um mancebo asselvajado e que indicava ocupar-se de grosseiro mister.
– Manuel, vai correndo buscar-me por todo preço um carro com possantes bestas; dirás na cachoeira que é para ir já a Andaraí levar uma família.
– Estou morto de cansaço: cavei terra o dia todo...
– E quanto ganhaste?
– Mil e quinhentos a seco.
– Dou-te três mil-réis, se me trouxeres o carro antes de uma hora.
– Olhe lá!
– Toma mil-réis por conta.
Manuel recebeu o bilhete de mil-réis e partiu acelerado.
Dermany entrou no quarto e abraçando Cândida beijou-lhe cem vezes as faces e os lábios, dando-lhe os mais doces nomes.
Lucinda afastou-se para a galeria.
O jovem francês requintou seus afagos; mas Cândida trêmula, ansiosa, e obstinadamente insensível às carícias, disse por vezes:
– Fujamos primeiro...
Dermany saiu do quarto, dizendo de mau modo:
– Espera-me pois aí.
Lucinda voltou logo para junto de sua senhora.
Cândida principiava a medir as proporções escandalosas e horríveis de sua situação.
O cortiço causava-lhe medo e asco...
Dermany não a encantava mais, despertava-lhe a vergonha na consciência...
A fuga da casa de seus pais lembrava-lhe o opróbrio...
– Oh, minha mãe!... – exclamou a desgraçada.
– Não se atormente, minha senhora – disse Lucinda.
– Ah! Que me resta agora?...
– O amor do Sr. Dermany, e em todo o caso e sempre a fidelidade da sua pobre escrava.
Cândida, coitada, abraçou Lucinda.
E pouco depois disse:
– Tenho sede... água! Água!...
A mucama não achou água no quarto de Dermany.
– Espere, minha senhora; vou procurar e pedir um copo d’água.
Cândida ficou só, e como que se sentiu agonizante naquela solidão de criminosa.
Ouvia gargalhadas, e convulsava pensando que era da sua ignomínia que gargalhavam.
Ouvia abrir e fechar portas e tremia por mil perigos, mil vexames, e mil afrontas no meio de tanta gente a viver como em comum.
E Dermany não voltava... nem Lucinda lhe trazia água...
E ela tinha medo e febre... terror e sede abrasadora...
Cândida ouviu leve ruído próximo... o seu medo exagerou-se... quis e não ousou gritar por socorro... levantou-se do banco de pau e saiu para a galeria.
Viu um pátio e gente nele...
Estremeceu, escutando atrás de si brando gemido...
Voltou-se e viu aberta a porta do aposento vizinho... e outra vez ruído abafado que vinha desse quarto...
Olhou... deu um passo a tremer... chegou à porta do quarto e... titubeou, desprendeu grito doloroso e horrível, e deitou a correr frenética e impetuosamente pela galeria, pela escada, pelo pátio, a chorar, e a ulular como louca...
O que ela tinha visto no quarto era esquálido, infame, e espantosamente perverso e criminoso...
Cândida sacrificara tudo, riqueza, posição, crédito, honra, o nome de seu pai, talvez a vida de sua mãe, a glória de ser esposa de Frederico para seguir Dermany...
Deixara-se levar, dominar, arrastar pela sua mucama, a escrava...
Dermany lhe garantira amor, oh! Mais do que amor então, a benção nupcial pelo primeiro padre na primeira igreja...
Lucinda, a escrava que a levara à perdição, poucos minutos antes lhe assegurara a sua fidelidade em todo o caso e sempre.
E Cândida acabava de ver com os seus olhos naquela noite, naquele lugar ao pé do seu sacrifício, na suprema dedicação oprobriosa, em paga da mão rejeitada de Frederico, em paga da mancha lançada no nome de seu pai, em paga da vida ameaçada de sua mãe, em paga da sua reputação e da sua honra, oh! Ela acabava de ver Dermany nos braços de Lucinda!!!