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As minas do rei Salomão/XII

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Tudo findara gloriosamente. Chegara a hora de repousar -ou, melhor, de convalescer. O barão e o capitão (cuja perna, de todo inchada, o fazia agora sofrer muito), foram levados em braços para a arroga palacial de Tuala. E eu para lá me arrastei exausto de emoções, com a cabeça consideravelmente dolorida da paulada dessa manhã na defesa do planalto.

O primeiro cuidado foi despir as cotas de malha, tarefa difícil (pelo nosso combalido estado), em que nos ajudou a linda Fulata, que se constituíra, desde o começo da revolta, nossa vivandeira, nossa enfermeira, e nosso anjo da guarda.

Arrancadas as cotas, vimos que os nossos pobres corpos eram uma massa medonha de pisaduras negras. No tumulto da batalha tínhamos apanhado decerto muita facada, muita lançada. As pontas dos ferros eram repelidas pela malha impenetrável; mas nem por isso cada um dos golpes arremessados deixava de constituir uma terrível pontada, que nos amolgava corpo e membros. Eu estava positivamente negro de pisaduras. Mas o pior era a ferida de John na perna, e a do barão, a quem uma das machadadas de Tuala cortara profundamente a face sobre a maxila. Fulata preparou-nos uns emplastros de ervas aromáticas, que nos aliviaram as dores. E como o Capitão John tinha noções e prática de cirurgia (segundo contei), foi ele que fez o tratamento da ferida do barão e da sua própria, tão bem quanto lho permitiam os poucos fios, o resto da pomada antisséptica que encontrou na sua botica portátil, e a escassa luz da lâmpada cacuana. Depois, Fulata arranjou-nos um caldo muito forte, e estendemo-nos nas magníficas peles que juncavam o chão da aringa do rei. Mas não pudemos dormir. De toda a cidade, em torno de nós, subia a triste e ululada lamentação das mulheres, chorando, à maneira dos zulus, os valentes mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as carpideiras reais estavam carpindo a morte de Tuala, com estridente dor. A noite ia cheia de prantos -e além disso, a cada instante, sentíamos os gritos agudos das sentinelas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi só de madrugada que pude cerrar os olhos -os olhos que, apesar de cerrados, continuavam a ver os lances da batalha, com tanta realidade que, por vezes, estremecia em sobressalto e me erguia no cotovelo a procurar as minhas armas, ou a lançar uma ordem de ataque.

Quando, enfim, acordei, com o sol já alto, soube que os meus dous amigos também não tinham dormido. De fato, o Capitão John estava com uma intensa febre e começava a delirar. Além disso, sintoma assustador, toda a noite cuspira sangue. O barão, esse, mal podia ainda mexer o corpo; e a ferida da face não lhe permitia comer, escassamente falar. Eu era, ainda assim, o mais restabelecido. Tomei o delicioso caldo de Fulata, e saí um instante ao terreiro a respirar. Encontrei justamente Infandós que chegava, tão fresco e ágil como se na véspera, em lugar de uma batalha, tivesse celebrado uma festa. Ficou desolado ao saber da doença de John. Entrou um momento na cubata para o ver e o barão, que não se podia ainda levantar e apenas mover os membros sobre o seu fofo leito de peles. Em voz baixa, por causa de John, Infandós contou-nos que todos os regimentos se tinham submetido a Ignosi; que das outras cidades chegavam ferventes adesões, e que o novo reinado se firmava para longas eras de prosperidade e de paz.

Quando ele se retirava, apareceu Ignosi, seguido de uma guarda real. Não pude deixar, ao vê-lo, de pensar nas estranhas revoluções da sorte! Aquele moço, que havia meses, na minha casa em Durban, me pedia para entrar ao meu serviço -ei-lo agora rei, grande potentado da África, comandando cinqüenta mil guerreiros, senhor de povos, de rebanhos e de terras sem conta!

—Salve, rei! -exclamei eu, erguendo-me com respeito.

—Graças a ti, Macumazã, e aos teus amigos! -exclamou ele, apertando-me as mãos com carinho.

Entrou também, como Infandós, na cubata para ver o barão e o pobre John, que dormia um sono de febre, horrivelmente agitado, sob os olhos compassivos e vigilantes da boa Fulata. Depois, quando saímos de novo ao terreiro, conversando, perguntei-lhe o que contava ele fazer de Gagula.

Gagula é o gênio mau desta terra -disse ele. -Conto mandá-la matar para findar com ela, que já é velha demais!

—Mas tem segredos! Mas sabe muito! -repliquei eu.

—Sabe sobretudo o segredo dos Silenciosos -volveu o rei pousando os olhos em mim com amizade -e o da caverna onde os reis estão enterrados, e o do lugar dos diamantes. Ora eu não esqueço a promessa que te fiz, Macumazã. Tu e os teus amigos ireis aos diamantes, guiados por Gagula; e só por isso a poupo.

—Está bem, Ignosi, registo as tuas palavras. Mas não foi possível, durante essa semana, pensar nos diamantes, porque através de toda ela a vida do nosso pobre John esteve em risco e os nossos corações em ansiedade. Realmente creio que teria morrido, se não fossem os desvelos, a adorável dedicação de Fulata. Dias amargos esses para nós! O barão, já então restabelecido, e eu, nada mais fizemos durante essa crise atroz, do que entrar, sair, rondar em pontas de pés a senzala onde ele delirava.

Remédios não tínhamos para lhe dar, além de uma bebida refrescante feita por Fulata com leite e o suco extraído da raiz de uma espécie de tulipa. Só podíamos contar com a forte natureza dele e a boa mercê de Deus.

Em toda a aringa real havia um grande silêncio, porque Ignosi, para manter perfeito sossego em torno ao doente, ordenara que todos os que lá viviam passassem a outras cubatas remotas. Fulata estava permanentemente ao lado dele, sentada no chão, dando-lhe a bebida refrescante, arranjando-lhe as travesseiras feitas das folhas secas de uma planta que faz dormir, enxontando-lhe as moscas do rosto.

No nono dia da doença, à noite, antes de recolher, o barão e eu entramos, segundo o costume, na senzala. A lâmpada colocada no escabelo dava uma luz fúnebre. Não havia um rumor. E o meu pobre amigo jazia perfeitamente imóvel. Pensei que chegara o seu fim; tive um soluço que me sufocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou chuta!

E, mais de perto, descobrimos que o nosso amigo não estava morto, mas tranqüilamente adormecido, sob a carícia das mãos de Fulata, que lhe cobriam a testa, onde um suor fresco começava. Era a crise do nono dia, o sono reparador. O nosso John estava salvo! Dormiu assim dezoito horas. E (mal me atrevo a contá-lo, porque não serei acreditado) Fulata, a admirável, a santa rapariga, dezoito horas se conservou também assim, com as mãos pousadas sobre a testa dele, sem comer, sem se erguer, sem se mexer, com o receio de que o menor movimento acordasse o seu doente. Quando ele afinal despertou -tivemos de a erguer em braços, porque a heróica enfermeira estava quase desmaiada de debilidade e fadiga.

A convalescença de John foi rápida. Ao fim de outra semana, já passeava pelos arredores da cidade, entre os pomares, à beira do rio, acompanhado por Fulata, que o salvara, e a quem ele votara (segundo dizia) um "reconhecimento eterno". Mas eu não agourava bem daquele "reconhecimento", daqueles passeios bucólicos... Nos olhos de Fulata havia muita meiguice, muita languidez. E John, como marinheiro, era indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, íamos ter, mais perigosa ainda, alguma aventura de amor! Apenas John se considerou a si próprio escorreito e "pronto para outra" -Ignosi começou as festas da sua proclamação.

Todos os indunas (chefes supremos) das províncias do reino, vieram a Lu prestar vassalagem. Houve revistas de tropas, danças, formidáveis banquetes. Os homens que restavam do regimento dos Pardos, foram todos doados com terras e rebanhos, e promovidos a oficiais. Ignosi promulgou na Grande Assembléia que, de ora em diante, não haveria mais caça aos feiticeiros, nem morte sem julgamento. Depois ordenou que, enquanto nós residíssemos no seu reino, gozássemos de honras reais, e recebêssemos sempre, como ele, a saudação de Krum!

No último dia deste grande festival, eu e os amigos dirigimo-nos ao rei, em grupo, e declaramos-lhe que o momento chegara, de realizar a sua promessa, e de nos mandar conduzir ao lugar onde deviam estar as pedras brancas que reluzem.

Ignosi abraçou-nos com grande afeto.

—Não me esqueci, amigos! Já indaguei a verdade, e eis o que sei. Aquela estrada branca que trilhamos, acaba além junto das montanhas chamadas as Três Feiticeiras, onde estão as figuras de pedra, os Silenciosos. Jaz aí uma grande cova, de onde se diz que homens muito antigos, em outras idades, tiravam as pedras que reluzem. Para além dessa cova há uma funda caverna na rocha, terrível, maravilhosa, onde vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala já foi conduzido. E por trás dessa caverna fica uma câmara secreta, de que só Gagula conhece o segredo. Corre também a história de que, há muitas gerações, um branco veio aqui, e foi conduzido por uma mulher a essa câmara secreta, onde viu riquezas sem conta, mas dessas que para os cacuanas nada valem; o branco, porém, não teve tempo de arrecadar essas riquezas, porque a mulher o traiu, e o rei desses tempos o escorraçou outra vez para além das montanhas...

—A história é verdadeira -acudi eu. -Não te lembras, Ignosi, que nas montanhas, na caverna de gelo, encontramos nós, petrificado, esse homem branco?

—Muito bem me lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula, e ordenar-lhe, sob pena de morrer, que vos leve à câmara secreta, meus amigos... e as riquezas que encontrardes, oh meus amigos, são vossas!

Nesse instante dous guardas apareceram, trazendo agarrada pelos braços a hedionda Gagula, que gania e os amaldiçoava. Mal a largaram, toda ela se abateu e achatou sobre o chão -como um montão de trapos, onde dous olhos ferozes viviam e refulgiam.

—Que me queres tu, Ignosi? -uivou ela. -Não me toques, que te destruo. Treme das minhas artes!

O rei encolheu os ombros.

—As tuas artes não salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes? Aqui está o que de ti quero: que mostres aos meus amigos a câmara secreta onde estão as pedras que reluzem.

—Só eu o sei, e nunca o direi! -bradou ela. -Os brancos malditos voltarão, levando vazias as mãos malditas!

—Bem -volveu tranqüilamente o rei. -Então, Gagula, vais morrer lentamente.

—Morrer! -gritou ela, cheia de terror e de fúria. -Tu não te atreverás, Ignosi! Ninguém me pode matar. Que idade pensas tu que eu tenho? O teu pai conheceu-me; e o pai do teu pai; e o pai que gerou a esse. Ninguém ousará tocar-me, porque sobre esse cairão as desgraças sem fim.

Em silêncio, tranqüilamente, Ignosi baixou sobre ela a ponta da sua azagaia:

—Dizes?

—Não!

Ignosi baixou mais o ferro, picou de leve o montão de trapos onde reluziam os dous olhos ferozes.

Com um uivo dilacerante, a horrenda bruxa pôs-se em pé, de salto. Depois tornou a cair, e rolou no chão esperneando.

De novo a lança de Ignosi a procurava:

—Dizes?

—Digo, digo, oh rei! -ganiu ela. -Mas deixa-me viver, e sentar-me ao sol, e respirar o ar doce, e ter um osso para chupar!...

—Bem; amanhã irás com meu tio Infandós e com meus irmãos brancos a esse lugar, mostrarás a câmara secreta e o esconderijo das pedras que reluzem. Mas tem cautela! Que se em ti houver traição, morrerás devagar, e em tormentos.

—Não, Ignosi! Irei com eles, e tudo mostrarei. Mas a desgraça vem a quem penetra nesse lugar. Outrora veio um homem, encheu um saco dessas pedras brilhantes, e uma grande desgraça caiu sobre ele! E foi uma mulher que o levou, e que se chamava Gagula. Talvez fosse eu! Talvez fosse minha mãe! Ou a mãe de minha mãe! Quem sabe? Será uma alegre jornada... Eu hei de ir, e hei de rir! Vinde, homens brancos, vinde! Vereis, ao passar, os que morreram na batalha, com os olhos vazios, as costelas ocas. A morte vive lá, e está à espera. Será uma alegre jornada!