As minas do rei Salomão/XIII
Três dias depois, ao escurecer, estávamos acampados num casebre desmantelado, em frente das Três Feiticeiras, as três montanhas que tantas vezes de longe avistáramos, desde a nossa chegada a Lu, e onde deviam jazer, segundo a tradição dos cacuanas e o roteiro do velho D. José da Silveira, as minas das pedras que reluzem -as Minas de Salomão! Tínhamos partido de Lu doze dias antes, acompanhados por Infandós, por Fulata (que não deixara mais o "seu doente", o bom John), por Gagula, que vinha numa liteira, e por uma forte escolta de serviçais e soldados. E foi só no dia seguinte, ao amanhecer, que examinamos aquele estranho sítio, tão cheio de terror para os cacuanas e para nós de maravilhosas promessas.
Nunca eu esquecerei o momento em que, saindo à porta das cubatas, na primeira e fresca luz da manhã, vimos os três montes isolados, em triângulo, um à nossa direita, outro à nossa esquerda, o terceiro ao fundo, em face de nós, erguendo magnificamente ao céu os seus cimos resplandecentes de neve. Um tojo em flor, de um escarlate ardente, cobria as poderosas fraldas dos três montes -e seguia ainda, como um tapete igual e contínuo, pelos grandes descampados que os cercavam. A fita branca da estrada de Salomão cortava a direito até à Feiticeira central, a que formava a ponta do triângulo, onde findava brusca e misteriosamente. Aí, junto desse monte, estavam as fabulosas minas, que tinham sido o fim de tantos míseros destinos -o do velho fidalgo português, o do seu descendente, e decerto o daquele que nós vínhamos procurando desde o sul e por quem corrêramos tanto perigo e tanta aventura. Todo o que buscar essas minas fabulosas (dizia Gagula), encontrará desilusão e desastre. Seria essa a nossa sorte? Nós chegávamos sob a proteção do rei, cercados de serviçais e de guardas... E apesar disso sentíamos pesar-nos sobre o coração, tristemente, a profecia da horrenda mulher. No entanto, quando nos pusemos a caminho, era tão viva a ansiedade de chegar e de ver, que os carregadores da liteira de Gagula mal podiam acompanhar a nossa carreira. A cada instante a velha bruxa gritava, estendendo para nós, por entre os panos da liteira, os braços descarnados, as mãos em garra:
—Não vos apresseis, homens brancos! A morte está à vossa espera e não foge! Para que vos esfalfar, correndo para ela? Certa e segura a tendes!
Dava então uma risadinha que nos arrepiava. Insensivelmente abrandávamos o passo... Depois bem cedo o estugávamos de novo, sob o impulso irresistível da curiosidade e da esperança!
Gastáramos assim hora e meia, trilhando a estrada de Salomão, e tendo já deixado à nossa direita e à nossa esquerda as duas Feiticeiras que formam a base do triângulo -quando chegamos junto de uma imensa cova circular, em funil, oferecendo talvez trezentos pés de profundidade e meia milha de circunferência. Entre a erva e tojo, que interiormente a forravam, surgiam grandes pedaços de greda azulada; quase ao fundo corria um canal para água, talhado na rocha viva; e abaixo do nível dessa obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra, polidas e gastas pelo tempo. A cova, as mesas, a disposição do canal, a natureza da greda azulada, tudo era' semelhante ao que eu muitas vezes vira no sul, nas minas de diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos: -e para mim ficou certo que ali houvera, em tempos, fossem nos de Salomão, fossem noutros mais recentes, uma mina de diamantes.
A estrada, ao abeirar-se da cova, dividia-se em dous ramos que a circundavam; e a espaços, esta via circular era feita de enormes lajes de pedra, com o fim certamente de solidificar as bordas da mina, e impedir que se esboroassem. Mas o que mais nos surpreendia era, do outro lado da vasta cova, um grupo de três objetos, que se destacavam como três pequenas torres ou três marcos colossais. A curiosidade quase nos fez correr, deixando atrás Gagula e Infandós; e bem depressa percebemos que o grupo era formado por três imensas estátuas. Conjeturamos logo que deviam ser os Silenciosos, esses ídolos, tão temidos pelos cacuanas, e a quem ofereciam os sacrifícios sangrentos. Mas só ao chegar junto deles pudemos apreciar a estranha e terrível majestade dessas vetustas figuras.
Separadas por uma distância de vinte passos, erguidas sobre imensos pedestais de pedra negra, onde corriam caracteres desconhecidos, e olhando a direito puxa a estrada de Salomão, que através de sessenta milhas de planície seguia até Lu -enchiam um grande espaço as três gigantescas formas, duas de homem, uma de mulher, todas três sentadas, medindo talvez cada uma a altura de vinte pés.
A figura de mulher, toda nua, com dous cornos, como os de um crescente de luz, sobre a testa, era de uma maravilhosa beleza -infelizmente estragada pelas injúrias do tempo durante longos séculos. As duas figuras de homem, talvez por estarem vestidas em longas roupagens, pareciam mais bem conservadas. Um deles tinha uma face medonha, feita para inspirar terror, como a de um demônio maléfico; mas a do outro parecia talvez mais assustadora ainda, na sua fria expressão de dura indiferença, de uma indiferença de rocha, que nenhuma prece pode abrandar, ou nenhum sofrimento apiedar. Todos três juntos formavam na realidade uma Trindade pavorosa, assim sentados, imóveis, com os olhos vaga e perpetuamente estendidos para a planície sem fim. Que imagens seriam estas? Deuses? Demônios? Reis de povos cujo nome esqueceu? Eu por mim, das minhas reminiscências da Bíblia, coligia que deviam ser talvez os falsos deuses que adorou Salomão -"Astarote, deusa dos sidônios, Chemosh, deus dos moabitas, e Milcom, deus dos filhos de Amom". Assim diz o Livro Santo.
—Que lhe parece, barão?
—Talvez -concordou o nosso amigo que recebera grau em literaturas clássicas. -A Astarote, de que falam os hebreus, é a Astarte dos fenícios, os grandes comerciantes do tempo de Salomão. De Astarte fizeram os gregos a sua Afrodite, que se representava com o crescente da meia lua na cabeça... Se Salomão tinha aqui as suas minas, era natural que fossem dirigidas por engenheiros fenícios. De sorte que provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina, a estátua da sua deusa. Quem pode saber?
Quando estávamos assim contemplando estas extraordinárias relíquias de uma remota antigüidade, Infandós, que caminhara sem se apressar, chegou junto de nós, e saudou reverentemente com a lança os Silenciosos. Vinha saber se queríamos penetrar imediatamente na caverna, ou tomar primeiro a refeição da manhã. Como não eram ainda onze horas, e a nossa curiosidade flamejava, decidimos desvendar logo os mistérios, levando conosco provisões, para se lá dentro a fome, excitada pelas emoções, nos assaltasse. Infandós fez então sinal aos carregadores para que se acercassem com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um cesto, para levarmos, uma porção de caça fria e duas cabaças de água. Nós, entretanto, déramos uma volta em torno às três figuras de pedras. Por trás delas, a uns cinqüenta passos, erguia-se aquela das Feiticeiras que formava o bico do triângulo; na sua base, como incrustada nela, corria uma muralha de pedra; e aí, ao centro, podíamos distinguir um arco escuro, como a entrada de uma galeria subterrânea. Esperamos que os carregadores tirassem Gagula da liteira. Apenas no chão, a horrenda criatura agarrou o cajado, e dobrada em duas, com passos trêmulos e vivos, largou em silêncio para o arco escuro. Nós seguimos, calados, também. À entrada, o monstro parou, voltado para nós, com um riso lívido na caveira.
—Homens das estrelas, estais decididos? Quereis realmente penetrar na cova onde as pedras reluzem?
—Estamos prontos, Gagula -disse eu, alegremente.
—Bem, bem! Entrai! E pedi força aos corações para afrontar as cousas que ides ver! E tu, Infandós, que traíste teu amo, vens tu também?
O velho guerreiro franziu terrivelmente o sobrolho:
—Não me compete a mim entrar nos sítios sagrados. Mas tu, Gagula, tem cautela, e treme! Os homens que vão contigo são os amigos do rei! Por eles me respondes tu. E se tanto como a perda de um só cabelo lhes suceder em mal, nem todos os teus feitiços te livrarão de morrer em tormentos. Compreendeste?
—Compreendi, compreendi, Infandós! -ganiu ela, com um risinho gelado e lento. -Não receies! Eu vivo só para fazer a vontade do rei. Tenho feito a vontade de muitos reis, em muitas gerações! E os reis findaram sempre por cumprir a minha vontade! Todos passaram, todos morreram... E eu aqui estou, para os ir visitar agora no palácio da morte, e para lhes falar dos tempos que foram! Vinde, vinde! A lâmpada está acesa! Tinha tirado, debaixo do manto de peles que a cobria, uma cabaça cheia de óleo com uma grossa torcida de vime e a luz que ela aproximou do arco negro pareceu desmaiar e tremer.
—Vens tu também, Fulata? -exclamou John, volvendo os olhos em redor, inquieto.
—Tenho medo, meu senhor -murmurou a rapariga.
—Bem. Então dá cá o cesto!
—Não, meu senhor, para onde fordes, vou eu também!
—Bem! - pensei eu comigo - aí levamos também o trambolho da rapariga para dentro da mina!
No entanto Gagula mergulhara na galeria, que dava apenas lugar para dous caminharem de frente. As trevas eram absolutas. Asas de morcegos batiam-nos nas faces. E seguíamos menos a luz bruxuleante da lâmpada, que a voz de Gagula, que repetia num tom lúgubre:
—Avançai, avançai! A morte está perto!
De repente, distinguimos uma vaga claridade. E, momentos depois, parávamos no mais maravilhoso sítio que olhos humanos têm contemplado.
A nada o posso comparar melhor do que ao interior de uma imensa catedral, uma catedral de sonho ou de lenda, sem janelas, alumiada por uma luz difusa e misteriosa, que parecia cair das alturas da abóbada. Ao comprido desta vasta nave, como na nave de um verdadeiro templo, corriam renques de gigantescas colunas, de uma cor álgida de gelo e de magnífica beleza. Alguns destes nobres pilares estavam, por assim dizer, interrompidos no meio -um pedaço erguendo-se
do solo, como a coluna quebrada de uma ruína grega; outro pedaço pendente da remota abóbada. Ao lado da nave abriam-se, com dimensões diversas, cavernas à semelhança de capelas, tendo também as suas filas de colunas, algumas tão pequeninas e finas como feitas para um brinquedo e criança. Aqui e além havia construções estranhas, da mesma substância álgida que parecia gelo -uma da forma de uma vasta taça, outra oferecendo a vaga aparência de um púlpito com lavores pendentes. Um ar de indescritível frescura circulava dentro da vasta nave; e por toda a parte sentíamos, na penumbra, o ruído lento de gotas de água caindo.
Não tardamos em perceber que estávamos simplesmente numa caverna de estalactites, de inigualável beleza. Cada uma daquelas gotas de água, que caía, com um som úmido e triste, era mais uma coluna que se estava formando. Há quantos séculos andava a natureza trabalhando naquela obra maravilhosa? Sobre uma das colunas incompletas, notei eu uma rude inscrição entalhada, decerto, por algum obreiro fenício das minas, que ali escrevera o seu nome, ou talvez alguma facécia fenícia. Pois, desde esse dia, em três mil anos pelo menos, a coluna apenas crescera para cima da inscrição uns três pés e meio. E ainda estava em via de formação, porque eu distintamente senti, enquanto a examinava, cair sobre ela, das profundidades da abóbada, uma lenta gota de água! Quantos centos de milhares de anos levaram pois a crescer, a formar-se, assim largas, maciças, altas como torres, as colunas inumeráveis que se enfileiravam na nave? Nunca, como ali, eu compreendi a espantosa velhice da Terra. Gagula, porém, não nos deixou muito tempo nesta curiosa contemplação. Inquieta, batendo o chão com o cajado, a lâmpada erguida sobre a cabeça, a cada instante nos apressava, com ganidos sinistros.
—Vamos, vamos, que a Morte está à nossa espera!
O Capitão John ainda tentava gracejar com a atroz criatura. Mas quando ela nos conduzia ao fundo da nave, diante de uma pequena porta semelhante às dos templos egípcios, e nos perguntou se estávamos bem preparados a entrar a morada da Morte -todos estacamos, inquietos, mudos, sem ousar o primeiro passo.
—Isto está-se tornando sinistro -murmurou o barão. -Os mais velhos adiante. Passe lá, Quartelmar!
Entrei a porta egípcia e achei-me num corredor inclinado, todo de abóbada, horrivelmente negro. A lâmpada de Gagula esmorecia. O bater do seu cajado dava um eco lúgubre. E a meu pesar parei, dominado por um pressentimento de desastre e de morte.
—Para diante! Para diante! -murmurou John, que trazia Fulata agarrada pela mão.
Com um esforço desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quase colados uns aos outros, desembocamos numa sala subterrânea, evidentemente escavada outrora por poderosos obreiros no interior da montanha.
Esta sala não tinha uma luz tão clara como a catedral de estalactites; e tudo o que eu pude descobrir, a princípio, foi uma enorme e maciça mesa de pedra, tendo no topo uma colossal figura, que parecia presidir outras figuras abancadas em torno. Depois, sobre a mesa, no centro, distingui uma forma encruzada. E quando enfim, acostumado à penumbra, percebi o que eram aquelas formas, voltei costas, e largaria a fugir como uma lebre -se o barão não me agarrasse pelo braço fortemente. Cedi, tremendo todo. Mas a esse tempo o barão também se habituara à luz difusa, compreendera também; e largando-me o braço, com uma exclamação, ficou a meu lado, quedo, arrepiado, limpando o suor que lhe cobrira a testa. A pobre Fulata, essa, dava gritos, agarrada ao pescoço de John. E Gagula triunfava, com sinistra zombaria.
O que tínhamos, com efeito, ante os olhos apavorados, era terrível. Ali, no topo da longa mesa de pedra, estava a Morte -a própria Morte, um medonho e gigantesco esqueleto, de pé, todo debruçado para diante, com um dos braços apoiado ao rebordo da pedra como se acabasse de se erguer do seu assento, e com o outro levantando no ar uma enorme lança, que parecia arremessar sobre nós; o crânio da caveira alvejava lugubremente; das covas das órbitas saía um fulgor negro; e as maxilas estavam entreabertas, como se fosse falar, e desvendar o seu segredo.
—Santo Deus! -murmurei eu, transido. -Que pode isto ser?
—E estas figuras, em redor? -balbuciava John.
—E além, aquela cousa, no meio? -exclamou o barão, apontando para a inexplicável figura encruzada sobre a mesa. Então Gagula pousou a lâmpada e agarrando o braço do barão, com o dedo estendido para a forma encruzada:
—Avança, Incubu, homem forte na guerra! Avança, e contempla aquele que tu mataste e que está agora junto aos seus avós! O barão deu um passo, e recuou abafando um grito. Sobre a mesa, inteiramente nu, com as pernas encruzadas, e a cabeça que o barão cortara pousada em cima dos joelhos, estava Tuala, último rei dos cacuanas!... Sim, Tuala, sustentando solenemente sobre os joelhos a sua hedionda cabeça decepada, e com as vértebras a saírem-lhe para fora do pescoço encolhido e como ressequido! Sobre todo o corpo negro tinha já uma espécie de película gelatinosa e vidrada, que o tornava mais pavoroso, e cuja natureza eu não podia compreender -até que senti tique, tique, tique, um fio de gotas de água, que, caindo da abóbada, lhe escorria pelo pescoço, e dali pelo corpo, para se escoar depois por um buraco cavado na mesa. Então percebi tudo -o corpo de Tuala estava sendo convertido numa estalactite!
E as outras figuras sentadas em torno da mesa eram igualmente reis dos cacuanas, já transformados em estalactites! Havia trinta e sete -sendo o último o pai de Ignosi. É esta, desde tempos imemoráveis, a maneira por que os cacuanas conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos, expondo-os, durante um longo período de anos, a uma queda de água silenciosa que, lentamente e gota a gota, os transforma em estátuas geladas. Estávamos assim diante do mais maravilhoso e exótico panteão real, que existe decerto na terra. E nada pode igualar à terrífica impressão que causava aquela série de reis, pertencendo a muitas dinastias, amortalhados numa camada de gelo que mal lhes deixava já distinguir as feições, ali sentados, à volta da imensa mesa, em espectral e pavoroso concílio, presididos pela Morte!
E a Morte, o maravilhoso esqueleto, quem o esculpira? Não decerto os cacuanas. A sua composição, o seu trabalho revelavam uma arte perfeita. Era obra dos artistas fenícios? Fora colocada ali em tempo de Salomão, para guardar, pelo terror da sua lança, a entrada dos tesouros? Não sei. Nem sei mesmo contar, com verdade, as estranhas sensações por que passei naquela câmara sinistra.