As minas do rei Salomão/XVI
Dez dias depois estávamos de novo em Lu -nas nossas confortáveis cubatas de Lu, à sombra dos machabeles. E poucos vestígios nos restavam daquela atroz aventura, além dos muitos cabelos brancos que eu trazia, e da melancolia em que caíra o nosso pobre John, com o coração ainda cheio de Fulata.
É inútil acrescentar que não tornamos a penetrar no tesouro de Salomão -apesar de sagazes e metódicas tentativas. Naquele dia em que Infandós nos acolheu como a ressuscitados, nada fizemos senão comer, dormir, descansar, gozar o sol. Logo no dia seguinte, porém, descemos com uma escolta à grande cova, na esperança de encontrar o buraco por onde tínhamos furado para a luz e para a vida. Foi debalde. Em primeiro lugar, chovera copiosamente de noite, e todas as nossas pegadas tinham desaparecido; mas, além disso, os declives em funil da enorme cova estavam por todos os lados cheios de buracos, uns naturais, outros feitos por bichos. Qual deles nos salvara, entre tantos milhares? Impossível descobrir!
Depois disso voltamos à caverna de estalactites, afrontamos outra vez os horrores da câmara dos reis mortos; e durante muito tempo rondamos diante da muralha de pedra, para além da qual jaziam, inacessíveis para sempre, os maiores tesouros da terra, para sempre guardados funebremente pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar de examinarmos a muralha durante horas, de a apalpar, de martelar, sobre ela, não nos foi possível achar o segredo da porta,, -sob a qual jaziam pulverizados os fragmentos da hedionda bruxa, que, com a sua traição, só ganhara a sua perda. Em quanto a forçar aqueles cinco pés de rocha viva, quem podia pensar em tal feito? Nem todo o exército dos cacuanas, trabalhando anos, lograria passar através. Só com dinamite, -ou trazendo pelo deserto poderosas máquinas. E assim, lá estão ainda, nesse remoto canto de África, os tesouros, que desde os tempos bíblicos tanto têm fascinado a imaginação dos homens. Um dia talvez, quando a África toda estiver civilizada, cortada de estradas, coberta de cidades, alguém mais feliz que nós, e com os incalculáveis recursos da ciência de então, penetrará no vedado tesouro, e será rico além de toda a fantasia! Esse, se jamais existir, encontrará lá, como vestígio da nossa passagem, as arcas abertas e os ossos da pobre Fulata, e uma lâmpada apagada. A esse tempo já estará perdida a memória deste livro, contando a estranha aventura. E esse explorador futuro mal suspeitará então, ao dar com o pé nesses ossos, ao remexer essas riquezas, que três homens do século XIX passaram ali um dos mais trágicos lances que jamais foi dado a homem passar...
Devo, todavia, acrescentar que, materialmente, a nossa estada na caverna não foi de todo inútil. Como contei, ao abandonarmos o tesouro, eu tive a esplêndida precaução de atulhar as algibeiras de diamantes. Muitos destes, e sobretudo os maiores, caíram, ficaram perdidos, quando eu rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou nos bolsos uma enorme quantidade. Não lhe posso calcular o valor. Deve ser imenso! Suponho que trouxemos ainda diamantes bastantes para sermos todos três milionários, e possuirmos os três mais ricos adereços de jóias que existam no mundo. Em resumo, no ponto de vista econômico, a aventura não gorou.
Em Lu, fomos acolhidos pelo Rei Ignosi com grande amizade e regozijo. Apesar de fundamente absorvido nos cuidados de um reinado que começa (e sobretudo na reorganização do exército), estivera em grande inquietação durante a nossa longa demora nas minas. E foi com ardente curiosidade que escutou a nossa maravilhosa história.
A notícia da morte de Gagula foi para ele um alivio imenso. -Quem sabe -murmurou ele -se depois de vos deixar morrer o sítio escuro, não acharia ainda artes de me matar a mim também!
Para comemorar a nossa volta, Ignosi deu um banquete e uma dança. E foi nessa noite, ao fim da festa, no terreiro real, onde brilhava o luar, que nós anunciamos ao rei o nosso desejo de deixar enfim o seu reino, e regressar à nossa pátria. Ignosi, primeiramente, pareceu espantado. Depois cobriu a face com as mãos:
—O que vós anunciais -exclamou ele por fim -retalha o meu coração! Sempre pensei que de todo ficaríeis comigo. Para que foi então, oh valentes, que me ajudastes a ser rei? O que quereis? O que vos falta? Mulheres? Campos? Gados? Toda a terra que é minha é vossa. Escolhei! É uma casa como as que os brancos habitam no Natal que vos falta? Os meus homens, ensinados por vós, edificarão uma entre jardins...
Dizei! E cada um dos vossos desejos tem já a minha promessa de rei.
—Não, Ignosi, não! -acudi eu. -O que nós simplesmente desejamos é voltar para as nossas terras.
Ele, então, sorriu com amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos corações nunca houvera amor por ele, mas só cobiça das pedras que brilham. Agora tínhamos as pedras para vender, para recolher dinheiro... Estava satisfeito o vil desejo do branco. Que importava pois o amigo que ficava chorando? Malditas fossem as pedras, e idos fôssemos nós bem cedo! Eu pousei-lhe a mão no braço:
—Escuta, Ignosi! As tuas palavras não vêm do teu coração. Escuta. Quando tu andavas exilado na Zululândia, e depois entre os homens brancos do Natal, não sentias tu o desejo da terra de onde vieras, e de que tua mãe te falava? Não se te voltavam os olhos para o Norte, para onde estavam os campos e as senzalas onde tu nasceras, onde brincaras com as ovelhas, onde os velhos que passavam no caminho tinham conhecida teu pai?...
—Assim era, Macumazã, assim era! -exclamou o rei comovido.
—Pois do mesmo modo o nosso coração deseja a terra em que nascemos.
Ignosi baixou a cabeça.
—As tuas palavras, como sempre, Macumazã, vêm cheias de verdade e razão. Sim, tendes de partir. E eu ficarei triste, porque não mais me chegarão notícias vossas, e vós sereis para mim como mortos!
Esteve um momento pensando, com o dedo pousado na testa. Depois chamou os chefes mais idosos, anunciou a nossa partida, ordenou que fôssemos acompanhados pelo regimento dos Pardos até às montanhas, e daí com uma escolta e com guias, levados pelo caminho do Oásis (de que ele só recentemente tivera notícia), e que nos pouparia todos os trabalhos da passagem das serras. Em seguida, erguendo a mão, jurou ante os chefes que não permitiria jamais que nenhum branco entrasse no seu reino a procurar as pedras que brilham; mas que nós poderíamos voltar sempre, porque éramos os irmãos do seu coração! E, por fim, decretou que os nossos nomes fossem considerados sagrados como os nomes dos reis mortos -e que assim se proclamasse por todo o reino, de montanha em montanha.
—E agora ide! Ide antes que os meus olhos vertam lágrimas como os de uma mulher. Quando estiverdes longe, nas vossas casas, junto das vossas lareiras, pensai por vezes em mim...
Adeus! Adeus para sempre, Incubu, Macumazã, Boguã, grandes homens e meus amigos!
Ergueu-se; esteve um momento olhando fixamente para nós um por um; depois escondeu a cabeça no seu manto de pele de leopardo, e fugiu para dentro da senzala real. Nós afastamo-nos em silêncio, e com o coração pesado. Na madrugada seguinte partimos de Lu, acompanhados por Infandós e pelo regimento dos Pardos. Apesar de tão cedo, as ruas estavam apinhadas de gente que nos lançava a saudação Krum, e nos desejava boa jornada! As mulheres atiravam-nos flores ao passar. Todos os tantãs ressoavam. Era como uma grande cerimônia real.
Pelo caminho Infandós foi-nos explicando que havia, com efeito, uma passagem nas montanhas mais fácil do que aquela por onde viéramos -ou antes, que era possível descer por aquela alta escarpa, que separa os dous "Seios de Sabá" como um muro separa duas torres. Havia um ano, um bando de caçadores cacuanas, indo ao deserto, à procura do avestruz, tinham achado e seguido este caminho. Ao fim dele encontraram o deserto; e ao fundo, no horizonte, avistaram maciços de árvores. Levados pela sede caminharam para lá, e acharam um largo e fértil oásis, cheio de fruta, de caça e de água. E daí, diziam os caçadores, podiam-se distinguir no horizonte outros lugares férteis, formando como uma continuação de oásis. Deste modo era talvez possível diminuir os horrores de uma nova travessia no deserto.
Ao fim de quatro dias de marcha chegamos, com efeito, ao alto da escarpa -de onde avistávamos, por léguas e léguas, outra vez, o medonho deserto amarelo em que tanto sofrêramos. Foi de madrugada que começamos a descida -e foi então que nos separamos do nosso amigo Infandós.
O excelente homem quase chorou de mágoa.
—Nunca os meus olhos -exclamava ele -verão homens como vós. Aquele golpe de machado, Incubu! Que beleza! Sois os fortes dos fortes! E o meu coração fica cheio da vossa lembrança. Adeus!
Tivemos realmente saudade do velho Infandós; e John, como lembrança, deu-lhe -adivinhem o quê? -um monóculo! Tinha um de sobressalente, e presenteou com ele o heróico e leal selvagem! Infandós, entusiasmado, procurou logo entalá-lo no olho, certo de que essa pupila resplandecente aumentaria o seu prestígio entre as tropas. E foi esta derradeira impressão que me ficou dos nossos amigos da Cacuânia -um velho guerreiro, nu, com uma pele de leopardo ao ombro, grandes plumas negras na cabeça, franzindo a face, de monóculo no olho!
Daí a pouco, tendo apertado afetuosamente a mão a esse honrado Infandós, começávamos a nossa descida pela escarpa que liga os "Seios de Sabá", entre as trovejantes aclamações do regimento dos Pardos.
Fizemos essa descida em doze horas. À noite estávamos acampados à orla do deserto, conversando em torno das fogueiras acerca desses dous estranhos meses que passáramos entre os cacuanas!...
—Há sítios piores para se viver -dizia o barão.
—Quase desejava ter lá ficado -acrescentava John, com saudade.
Eu não dizia nada. Tínhamos lá passado temerosos momentos. Mas, por vezes, a vida fora doce. E no alforje trazíamos um saco de diamantes!
Na madrugada seguinte encetamos a marcha para esse oásis que os nossos guias conheciam. Trilhamos três dias o deserto - mas sem desconsolo, graças ao bando de carregadores que nos dera Ignosi, e que nos permitia levar provisões fartas e água fria. Pelo começo da tarde do terceiro dia avistamos um bosque - e o nosso jantar já foi regaladamente servido debaixo de copadas árvores, e junto de frescas águas correntes.