As relações luso-brasileiras/XII

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XII
O BRASIL E O AMERICANISMO

Perguntar-se-á se achamos que, apezar de tudo, se conservarão no povo brasileiro, indissoluveis affinidades com o povo português.

O caso dos Estados Unidos da America, em que sommam nove milhões de habitantes os cidadãos de origem alleman, inclina-nos a prevêr que assim virá a ser. Esses nove milhões fundiram-se dentro da massa yankee; e conservou-se o caracter anglo-saxonio do povo americano.

Ha differenças entre o inglês e o yankee. Decerto; mas os traços dominantes são communs; cada vez mais se estreitam os laços que prendem os dois povos e maior é a influencia de um sobre o outro.

A differenciação lenta do brasileiro do portugués é um facto, do qual, porém, não é lícito tirar illações pessimistas quanto ás futuras relações entre ambos nem agourar phenomenos de desnacionalização.

O Brasil de ha muito que está em progresso, sob todos os aspectos. Portugal não está parado: a sua evolução é regressiva; vive à procura de um Messias, com instituições cada vez mais anachronicas, resistindo á democracia triumphante em todo o planeta…

São dois povos que seguem rumos divergentes e que, portanto, não se encontrarão nunca mais, salvo se um delles se decidir a tomar o caminho do outro…

O Brasil, pela sua integração no corpo democratico americano, pelas exigencias da politica internacional e por tendencias de ordem politica, economica e moral, que demonstrava desde a sua independencia, poude transformar-se por completo.

A raça regenerou-se, livrando-se das causas da inhibição, que a combalia.

O espirito americano já não póde ser considerado simples phrase de jactanciosa literatura politica para effeittos oratorios. É uma realidade.

Toda a America latina evolve segundo normas novas. Donde surgiram essas normas? Da influencia da civilização norte-americana, não ha duvida alguma.

Os hispano-americanos estavam realmente feridos pela tempestade, como dizia Castelar. Era a tempestade resultante do conflicto da civilização ancestral com o meio. Verificava-se, mais uma vez, que a cada clima convém uma civilização especial, que não ha, no planeta, uma civilização uniforme e typica.

A adaptação lenta do que, da Civilização norte-americana, podia coadunar-se com os nucleos diversos do povoamento da America, gerou a corrente de sentimentos e de idéas que, por constituir uma série de evidentes pontos de contacto entre os povos americanos, teve a denominação de espirito americano.

Este espirito, em que pése aos snobs que achincalham o papel da democracia norte-americana, derivou da attitude dos Estados Unidos deante da ameaça de intervenção da Santa Alliança — tão santa como a Inquisição! — a favor da Hespanha e contra as colonias que se lhe tinham declarado independentes.

Bem sabemos que o governo americano hesitou deante da situação. A Santa Alliança era poderosa e os Estados Unidos eram, então, uma nação relativamente fraca.

Em 1823, o presidente Monröe, com o auxilio da Inglaterra, ou sem elle — pouco importa — resolvia-se, afinal, a assumir a posição de que havia de decorrer a chamada mais tarde «doutrina de Monroe».

Foi na mensagem de 23 de dezembro do referido anno. Dizia o presidente dos Estados Unidos, depois de exprimir o seu respeito pela partilha, então consummada, da America:

«Em relação aos governos que declararam e têm mantido a sua independencia, a qual, depois de grande reflexão e obedecendo a principios de justiça, reconhecemos, toda e qualquer interferencia por parte de alguma potencia européa com o fim de os opprimir e de qualquer forma pesar sobre os seus destinos, só poderá ser olhada por nós como demonstração pouco amigavel feita aos Estados Unidos»

Esta é, em resumo, a célebre doutrina com que, á nascença, se viram protegidas as republicas hispano-americanas. É certo que os ingleses secundaram, no proprio interesse, a defeza desses novos estados proclamada por Monröe.

Mas, se essas nações estavam, até certo ponto, garantidas contra a antiga metrópole, deviam-no á iniciativa dos Estados Unidos. A sua marcha evolutiva tinha de resentir-se desse facto e a influencia, que o progresso vertiginoso da união do Norte veiu a exercer sobre ellas, accentuou ainda mais profundamente a idéa de que interesses superiores prendiam entre si os povos americanos.

O espirito americano, sobre essa base effectiva da protecção reciproca do principio nacional, não podia deixar de se fortalecer e consolidar.

Para isso contribuía a differenciação que o meio e os cruzamentos ethnicos impunham a esses estados, apartando-os mais e mais, se bem que lentamente, dos colonizadores.

O esforço das sociedades hispano-americanas para se adaptarem ao espirito americano, desvincilhando-se de instituições e costumes do outro lado do Oceano, é a explicação que dão todos os sociólogos, que estudaram o phenomeno, das suas luctas civis e dos seus frequentes eclypses de legalidade.


Não assim com o Brasil. A evolução brasileira, até o inicio do derradeiro quartel do século passado, operou-se quasi livremente do espirito americano. Quasi, dizemos, porque a sua influencia se encontra em todo o imperio como elemento modificador das tendencias intrinsecas do povo brasileiro.

É facil comprehender a disparidade apontada.

Em primeiro logar, a antiga colonia americana de Portugal constituiu um imperio, uma realeza, sob um principe português. Pedro I do Brasil, mais tarde IV de Portugal, já não poude deixar de conceder ao Brasil o systema representativo, despojando-se dos attributos divinos da realeza absoluta. É que a America, pelo seu espirito, já não podia tolerar essa instituição politica ainda vigente em ortugal.

Não ha barreiras nem muralhas chinesas impermeaveis ás idéas; e o principe portugués, ao sentar-se no unico throno da America, comprehendeu essa verdade.

A Pedro IV deveu Portugal a dadiva de um systema vasado nos mesmos moldes que elegêra o auctor inglês a quem o filho de João VI e Carlota Joaquina encommendára a primeira…

Tanto basta para vêr, com nitidez, que a evolução brasileira não estava destinada a seguir, desde a independencia, o espirito americano.

O phenomeno politico-social occorrido no Brasil defendeu, durante largo periodo da sua elaboração nacional as affinidades entre a antiga metrópole e a ex-colonia contra as ideas e os sentimentos de que os Estados Unidos iam impregnando os mais estados do Novo Mundo.

Ao passo que os hispano-americanos, sob novas instituições politicas, entravam em violenta differenciação com a Hespanha, os luso americanos, logo após a separação, tinham convivio intimo e familial com Portugal e dos portugueses recebiam e aos portugueses transmittiam, num commercio ininterrupto, idéas e sentimentos.

É, pois, absolutamente diversa a historia dos descendentes dos dois povos da peninsula ibérica.

Não foi senão nas duas ultimas décadas do imperio que os brasileiros denotaram o influxo americano.

O casamento civil dos acatholicos e a questão da extensão do estado civil, o debate jornalístico ácêrca da liberdade de cultos e da secularização dos cemiterios e a idéa de federar as provincias[1] são provas da acção americana, que, no Brasil, continuava, assim, a obra encetada quando se adoptára o principio da eleição, se bem que restricta, dos membros da segunda camara, o senado.

Dahi por deante accentuou-se o contagio e o estatuto politico saido da revolução de 1889 consagra de maneira definitiva a adhesão du Brasil ao americanismo . A lei basica de 24 de fevereiro de 1891 é calcada na americana de 1787, na qual Gladstone viu «a creação mais admiravel que a intelligencia humana produziu de um só jacto».

Não são, todavia, bem fundadas as criticas que attribuem á adopção desse modelo institucional o caracter de uma quebra de continuidade na historia do Brasil. Se assim fôsse, tambem não teria outro significado o advento do regimen representativo, nos paizes antes sob realezas absolutas, a valer inviolaveis e sagradas.


Os povos, por mais que o queiram, não interceptam o curso da sua historia. Quando o arbitrio o tenta, logo surge a reacção invencivel do seu determinismo a repôr tudo no logar adequado e nos necessarios termos.

Mudam-se, de uma hora para outra, os systemas politicos, que são obra de interesses colligados e deendidos pela força material do poder detentor das armas, dos sellos do estado e das arcas da nação.

Não se mudam, porém, em dias, nem ás vezes em annos, os systemas sociaes, conjunctos de institutos juridicos, de tradições e de costumes, que evolvem, sem saltos, serena e continuamente.

O Brasil passou de um imperio centralizado a uma republica federativa. Mudou de regimen politico; mas conservou, melhorando-as, como preceitua Comte, as suas instituições sociaes.

Não o affirma, de modo frisante e de per si, o facto de ter ainda em vigor as ordenações do reino, modificadas, natural e logicamente, por leis exigidas, em todos os ramos do direito, pelo progresso humano e pelo progresso nacional?

Portugal codificou o seu direito civil. O Brasil ainda não o fez; mas a verdade é que a sua legislação fragmentaria revogou e alterou, de accordo com as necessidades dos tempos, as velhas leis portuguesas, aproveitando, dellas, o que podia em cada momento ser conservado.

Este feitio da vida juridica brasileira denota raro apêgo ao passado e constitue eloquente protesto contra a asseveração gratuita de que o Brasil propende voluntariamente para se afastar do espirito das leis portuguesas. Era-lhe, porém, impossivel crystalizar dentro da rigidez de normas legaes correspondentes a um estadio transitorio do seu desenvolvimento. Transformou-se, porque progrediu. E, como, ao progredir, não podia ficar a par da nossa marcha morosa e ás vezes regressiva, distancio-se de nós e acceitou as ideas que ás suas condições mais quadravam.

O meio politico e social do novo Mundo assimilou, afinal, o espirito juridico brasileiro; comtudo, o povo brasileiro permaneceu, no ponto de vista da lingua, das tradições moraes e da propria constituição da familia, muito chegado e proximo do povo português.

Por quê? Pela simples razão de não haver o Brasil assentado a sua ascensão para a radiosa doutrina americana sobre os destroços das conquistas definitivas dos seus maiores e das suas proprias.

No Brasil não se violentaram os costumes, crenças e tradições fundamentaes do povo. Eliminou-se o que o desfiar dos annos tornou caduco ou discordante da nova sociedade. Não houve rompimento com o passado e, portanto, no dizer conceituoso de Burke, «não se desorganizou o futuro» porque se aproveitou «a experiencia accumulada de gerações successivas».

Esta sequencia do espirito juridico, que caracteriza e distingue a raça anglo-saxonia, revela se, mais do que em todas as nações ibero-americanas, no Brasil.

Assim é que o Brasil, mais do que todas essas nações , mantem radicaes affinidades com o seu povo de origem, com Portugal. É no sul o que no norte do continente é a federação americana: ambas representam typicamente os colonizadores, muito embora as condições politicas, as exigencias do ambiente novo e a fusão de raças estranhas tenham estabelecido, entre os dois ramos de cada uma dessas familias, signaes distinctivos e peculiares.

0 que se deu em ambos os paizes está compendiado na phrase de Story[2]: «O direito da Inglaterra não deve ser considerado a todos os respeitos como o da America. Os nossos maiores trouxeram os seus principios geraes e defenderam-no como o seu direito patrimonial. Mas trouxeram-no comsiho e adaptaram sómente a parte applicavel á sua condição.»

Com effeito, como vimos, o Brasil tambem adoptou sómente a «parte applicavel á sua condição». Assim foi que repudiou a camara dos senhores e instituiu a dos senadores, em que a democracia americana enxertára o principio da eleição popular.

Isto já no imperio! Na Republica, em consequencia do regimen adoptado e de precendentes influencias intra-continentaes, a doutrina do aproveitamento da parte do direito tradicional applicavel á condição do novo povo tinha de ser posta em pratica mais largamente.

Era inevitavel. Ia-se proceder a uma selecção á qual tinham de succumbir muitos dos archaicos e obsoletos principios do direito português, já adaptado ao ser introduzido no Brasil.

Apparecia, na reconstrucção republicana do Brasil, o agente differenciador americano, que já lhe não era estranho. Encontrava, porém, no proprio regimen politico, facilidades que antes lhe tinham faltado.

A Constituição Brasileira, de 24 de fevereiro de 1891, foi o promotor principal desta reforma, que, a perdurar o alheiamento de Portugal ao progresso contemporaneo, parece destinada a precipitar o divorcio entre as duas civilizações.


  1. É sabido que o partido liberal, antes da Republica, estava inclinado a essa reforma. Confessou-o, numa entrevista, o visconde de Ouro Preto, chefe desse antigo partido.
  2. Commentarios á constituição dos Estados Unidos da America § 157, nota 1 (a), edição de 1891.