Através do Brasil/VII

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VII. ESTRADA A FORA

Comeram calmamente. O farnel, fornecido pelo sub-chefe, continha uma excelente galinha assada, um pedaço de rosbife e pão. O camarada Benvindo trazia uma boa porção de carne seca que os dois rapazes também quiseram provar, com aquele valente apetite que lhes haviam dado o movimento e o ar do campo. Estavam do lado da estrada, à sombra de uma grande árvore, cuja copa de folhagens abundantes os raios do sol não conseguiam atravessar. O chão era batido, — liso e limpo como o de uma casa. Via-se bem que aquele lugar era um ponto habitualmente escolhido para repouso pelos viajantes que por ali jornadeavam. Um pouco adiante, corria o riacho, atravessando o caminho. Ouvia-se bem o leve rumor das águas deslizando entre as pedras. E só esse rumor e o de alguma folha que caía perturbavam o silêncio do sítio quieto, a essa hora de calor ainda forte.

Alfredo, quando acabou de comer, correu para o riacho, e foi mergulhando as mãos na água, para lavá-las. Mas exclamou logo, ingenuamente:

— Oh! Sujei a água!... Como havemos de beber?

— Ora, patrãozinho! Não vê que a água está correndo sempre? — disse rindo o camarada. – A água suja vai embora, e a que vem está sempre limpa!

O pequeno riu da sua própria tolice; mas, nisto, ouviu-se o toque, ainda afastado e fraco, de uma campainha. Alfredo dirigiu o olhar para todos os lados, e, não compreendendo que som era aquele, voltou-se para o camarada, que estava arreando os animais.

Benvindo era um caboclo reforçado, moço ainda, — peito largo, pescoço musculoso, olhos negros e vivos, cabelos luzentes e anelados caindo sobre a testa. Tinha as mangas da camisa e as calças arregaçadas, e viam-se-lhe, ao sol, os braços e as pernas de músculos grossos e tendões rijos e salientes. Era um belo exemplar do robusto sertanejo nortista. A presteza com que arreava os animais, e a força de que dava prova, apertando as correias, atestavam uma longa prática daquele serviço.

— Que toque é este de campainha, seu Benvindo?

— Com certeza é alguma tropa que vem da vila, patrãozinho. Não tarda a aparecer... Olhe! Aí vem ela!

Alfredo voltou-se, e viu na estrada, do outro lado do riacho, um séqüito de burros, uns atrás dos outros, em fila. O da frente trazia uma campainha no pescoço: todos os outros o seguiam docilmente, guardando a mesma distância entre si. Vinham carregados de couros; cada um trazia dois rolos enormes, um de cada lado da cangalha; era tão pesada a carga, que os animais tinham o lombo derreado, e caminhavam devagar, como apalpando o solo com as patas. Atrás, no couce da tropa, vinham dois homens a pé, e um menino a cavalo.

Os burros, assim que chegaram ao riacho, correram todos para a água, sequiosos. Como eram muitos, sujaram logo a água com as patas. E Alfredo notou, com interesse, que todos, ao mesmo tempo, voltavam a cabeça para o lado de cima, à procura do líquido que vinha limpo:

— Também eles sabem que a água, que corre, vem sempre limpa... — disse consigo mesmo o pequeno sorrindo.

Mas o Benvindo, tendo reconhecido os dois tropeiros, exclamava:

— Oh! José! Oh! Justino! Vocês de onde vêm? Como vão vocês?

— Oh! Benvindo! Por aqui?... Nós vimos de Água Branca. E você está bom? Como está a velha?

— Boa. Vocês passaram pelo arraial?

— Passamos. E você para onde vai?...

— Vou levar estes moços a Piranhas, e queria saber se o capitão Paulo está no “sítio”...

— Acho que está! — disse o mais velho dos dois tropeiros — quando passamos por lá, estava na varanda uma pessoa: pareceu-me que era ele...

Apearam-se o José e o Justino, e começaram a conversar com Benvindo. Eram amigos do camarada, conhecidos antigos, e davam mostras de estimá-lo muito. O mais velho, de face escura, quase preta, era mais forte do que o outro, caboclo como Benvindo. Ambos tinham fisionomia simpática, e trataram com carinho os irmãos que se dirigiam a Piranhas, desejando-lhes boa viagem.

— E quem é esse menino que vai com vocês? — perguntou Benvindo.

— É meu mano — respondeu o Justino: — vou levá-lo para a cidade; já está com os seus oito anos e vai estudar na escola.

A conversa não esfriava. Mas Carlos, vendo que se estava fazendo tarde, chamou a atenção de Benvindo , que se despediu dos amigos, pedindo-lhes que dessem lembranças à sua velha mãe, em Garanhuns.

Montaram, e puseram-se a caminho. Eram cinco horas da tarde. O ar ia refrescando; o sol era menos vivo, e podia-se olhar livremente para todos os lados, sem ser preciso levar a mão aos olhos para abrigá-los do ardor solar...