Através do Brasil/XV

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XV
O SERTÃO

 

— Prompto! aqui está a agua! — disse Juvêncio, entrando, lepido e alegre.

Trazia o rosto, as mãos e os pés lavados... Vendo Carlos e Alfredo naquella attitude desanimada e lacrimosa, condoeu-se d'elles:

— Não chorem! vamos comer alguma cousa... Depois, hei de contar-lhes a história da minha vida, e vosmecês hão-de vêr que eu também tenho muitas razões para ser triste, apesar d'este meu ar alegre... Vamos comer.

Tirou da trouxa um naco de carne-de-sol, um peixe assado, e um pouco de farinha. Assou a carne ao calor da fogueira, aqueceu o peixe, e fez a distribuição. A refeição foi completada com os biscoutos que os meninos traziam. Carlos e Alfredo, sentados no chão, e o rapaz, de cocoras, ao pé do fogo, comeram com apetite. Emquanto comiam, conversavam:

— Ninguem no mundo — disse Juvêncio — das pessoas que conhecem vosmecês, é capaz de imaginar que vosmecês estejam no sítio em que estão... Quem imaginaria que haviam de andar por este sertão, a pé, comendo no chão, bebendo agua em cabaça, dormindo assim sem commodidade, num ermo como este, dentro de um rancho tão pobre? Tudo, no mundo, é para o bem da gente... Vosmecês ficam conhecendo a sua terra... Eu, por mim, gósto muito d'estas cousas, e já não estranho os incommodos das viagens. Era capaz de ir de um polo ao outro como dizia o meu mestre!

— Ui! — gritou Alfredo.

Ouviu-se de repente um ruido rapido e surdo e viu-se um vulto atravessar o espaço, cortando o ar, e sumindo-se pela porta do rancho. Dir-se-ia, pelo tamanho, uma pomba-rôla.

— É um morcego que estava dormindo ahi! — disse Juvencio.

— Um morcego! exclamou Alfredo — Dizem que esse bicho chupa o sangue da gente...

— É muito raro. E as feridas que resultam da sua picada nunca são perigosas: sómente nas crianças recemnascidas é que podem apresentar alguma gravidade. Os morcegos atacam de preferencia os animaes.

— E os animaes não se defendem?

— Não, porque são atacados durante o somno; e, além d'isso, quasi não sentem a dentada, porque o morcego, quando morde, abana as azas e faz com que a língua sobre a pelle, uma cocega ligeira, que disfarça a dor...

— Então o morcego tem dentes, para morder?

— Tem. O morcego voa, mas não é passaro. É um animal como o rato, com o corpo coberto de pêlos; tem focinho e cauda, bocca e dentes.

— Como é que você sabe tudo isso? — insistiu Alfredo, com a sua eterna curiosidade.

— Porque já vi! vi morto, um dia, um morcego, e examinei-o bem.

A conversa continuou. Juvencio começou a falar das cousas e das gentes do sertão, dos animaes, das pessoas que nelle vivem. Contou os costumes dos sertanejos, que vivem á custa das roças que cultivam e do gado que criam:

— A terra é muito rica, e nunca nega o sustento a quem sabe tratal-a: dá o milho, o feijão, a mandioca, o algodão, o fumo, a cana; e, além de alimentar os homens, ainda alimenta os bois, os carneiros, as cabras, os cavallos que, bem tratados, são para o criador uma verdadeira fortuna. No tempo das chuvas, ha uma fartura geral: o gado engorda, as vaccas dão muito leite, com que se fabricam queijos e requeijões. Mas no verão, na época das sêcas, quando se passam commummente seis e oito mezes sem um pingo de chuva, os campos mirram, as plantações morrem, os pastos ficam torrados, os rios e as fontes secam, o gado em grande parte morre de fome e sêde, e até os homens, para não morrer, andam, ás vezes leguas e leguas, em busca de agua. Quando a sêca dura muito, ha muita gente que morre, quando não emigra em tempo para outros lugares menos assolados pelo rigor do verão. Apesar de tudo isso, a gente toda, que aqui nasce, ama loucamente o seu sertão, e supporta com paciencia e coragem esses revezes.

— É uma boa gente, não é, Juvencio?

— É uma gente muito boa, muito honrada. O sertanejo é sempre serio e fiel. Pode ser desconfiado, mas gosta de praticar o bem. Toda a gente do sertão é hospitaleira e caridosa. Eu sei o que estou dizendo, porque já tenho recebido muitos beneficios de todo este povo.

— É verdade! — exclamou Alfredo — você de onde é, Juvencio? Cumpra a sua promessa, e conte-nos a sua história!