Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 21
XXI
HANS MUDA DE TABA
DEPOIS desses acontecimentos Ipirú-guassú resolveu entregar Hans ao morubixaba Abatí-poçanga (bebida de milho), da taba de Itaquaquecetuba [1]. O nosso artilheiro foi conduzido para lá, onde o entregaram a Abati, com recomendação de não lhe fazerem mal, porque o deus de Hans se mostrava terrivel quando o maltratavam.
Hans confirmou tais palavras e disse que brevemente chegariam seu irmão e mais parentes, com um navio cheio de coisas destinadas ao morubixaba.
Abati-poçanga chamou-lhe "seu filho", tratou-o muito bem e nunca mais saiu á caça sem que o levasse consigo.
Sua situação mudara por completo. Embora prisioneiro, gozava de todas as regalias e já contava como certo o seu regresso á patria.
Quatorze dias depois da sua chegada a Itaquaquecetuba uns indios dirigiram-se a ele, dizendo ter ouvido tiros de peça dos lados de Iteron.
Era de fato um navio francês que entrara. Como o caso de Hans já andava muito espalhado, logo souberam dele a bordo, e o comandante mandou dois homens á sua procura.
Esses emissarios eram boas almas, em tudo diferentes do Karuatá-uára e do Jacó. Ao se encontrarem com o prisioneiro sentiram-se tomados de piedade, e com ele repartiram suas roupas. Depois explicaram que tinham vindo com ordem de conduzi-lo de qualquer maneira.
O coração de Hans palpitou violentamente, de jubilo e esperança. Qualquer coisa lhe dizia que era chegado o termo dos seus sofrimentos.
Conferenciou com os franceses e combinou o melhor meio de enganar os indios. Em seguida puseram em pratica o truque.
Um deles, de nome Perot, apresentou-se a Abati-poçanga como o tão esperado irmão de Hans, dono do navio de Iteron, e convidou-o a ir até lá com os seus indios, para receber os presentes trazidos. Pediu-lhe que levasse consigo o prisioneiro, afim de ser abraçado por outros parentes que ficaram bordo. Quando o navio partisse, Hans regressaria á taba, entregando-se ao cultivo da pimenta, mercadoria que esse barco tinha de vir buscar no ano seguinte.
Os indigenas concordaram com a proposta e Abatí-poçanga partiu para Iteron, levando Hans em sua companhia.
Lá chegando, subiram todos ao barco, sendo recebidos com toda a cordialidade pelos franceses.
Hans contou-lhes a sua historia e todos se enterneceram profundamente com tão longa tragedia.
Cinco dias durou a permanencia de Abatí a bordo. Ao termo desse prazo perguntou ele pelos presentes. O comandante disse a Hans que o fosse entretendo até o momento de largar ferro, mas de modo que Abatí não se zangasse, nem desconfiasse.
Hans engambelou o indio; apesar disso Abatí desconfiou e insistiu em levá-lo para terra.
Hans fez-lhe ver que quando parentes e bons amigos se encontram, depois de longa ausencia, não podem separar-se assim depressa; pediu-lhe um pouco mais de paciencia; o navio muito breve iria partir e então regressariam todos á taba.
Abatí achou razoavel aquilo e cedeu.
Finalmente, completada a carga, embarcaram-se os franceses e o navio aparelhou para zarpar.
O comandante reuniu os indios na coberta e, por meio de um interprete, disse-lhes que estava muitissimo contente com eles por terem poupado Hans, apesar de o haverem apanhado entre inimigos; disse que mandara chamá-los a bordo para os presentear em agradecimento ao bom trato que dispensaram ao prisioneiro; disse mais que sua intenção era deixá-lo na taba de Abatí, entregue ao cultivo da pimenta, já que Hans se dava tão bem por lá e era tão amado.
Nesse momento o comandante foi interrompido por um grupo de dez franceses que se declararam irmãos de Hans e lhe pediram que conseguisse dos indios a restituição do prisioneiro, cujo velho pai ansiava por abraçá-lo de novo.
O comandante, depois de ouvida a suplica dos dez irmãos, dirigiu de novo a fala aos indios. Disse-lhes que sua intenção sempre fôra deixar o prisioneiro com Abatí; mas os dez irmãos queriam o contrario, e como ele era um só e os outros dez, não tinha meios de resistir ao numero, sendo forçado a ceder diante da força.
Mal o comandante cessou de falar, adiantou-se Hans para dizer que muito desejava ficar na taba de Abatí onde fora tão bem tratado, mas que se via impedido disso pela atitude dos seus dez irmãos.
Abatí-poçanga declarou então que consentia na sua partida com a condição de voltar no ano seguinte. Era seu amigo, considerava-o seu filho e estava zangado com os de Ubatuba por terem querido devorá-lo.
A comedia acabou bem. O comandante fez vir facas, espelhos, machados e pentes e entregou tudo a Abatí.
Terminadas as despedidas, os indios desceram ás canoas.
Ao vê-los, enfim, deixarem o navio, o nosso Staden soltou o maior uff ! que a historia do Brasil registra.
Estava salvo!
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ Bambuzal.