Bagatela/II
— Morto! — murmurou Auberseint com uma voz sombria. — Morto sem me ter apertado a mão!
— Morto! repetiu por sua vez a moça — meus pressentimentos não me enganaram... Meu Deus! Meu Deus!...
Pronunciando estas palavras, vacilaram-lhe os joelhos; a trepidação compulsiva de seu corpo tornou-se mesmo tão violenta que se Henrique não a tivesse retido nos braços ela rolaria pelo chão.
— Gabriela! Gabriela! — gritou Henrique com um desespero cheio de solicitude.
— Ah! Max! querido Max! — soluçou Bagatela — Max por que nos deixas assim?
— Como ela o ama! — murmurou Henrique — Feliz morto!
— Ah! Henrique — tornou Bagatela — não sabeis o que perco eu na morte dele! aquele nobre espírito, com o nobre coração... Eu lhe devia tanto, que nem todos os amores, e adorações bastariam para pagar-lhe!... Não o sabíeis, Henrique, pois que a sua delicadeza com semelhante confissão teria sofrido. — Ele levantou-me da calçada em que eu estava na rua, uma noite de inverno, eu tiritava de frio, tinha fome, e minha mãe acabava de morrer... Nossa história, a minha e de minha mãe — não vo-la contarei... é banal como a miséria, simples como a dor!... Eu estava pois na rua — exposta ao vento e à neve, desfalecida, semimorta e quase louca!... Máximo passou. Quando ele viu as lágrimas que corriam pelas minhas faces azuladas pelo frio, quando ele viu a minha miséria e o meu desespero, levou-me para a sua casa de artista, deu-me a chave dela, e pelo espaço de três meses, foi para comigo respeitoso, benfeitor e dedicado. Procurou-me trabalho... Enfim, uma manhã bateu à minha porta — “Minha menina — me disse ele com tristeza — é preciso que nos separemos... Tenho uma má reputação, ao que parece, e é mister que a vossa não sofra. Não deveis desmerecer aos olhos das pessoas de bem... Aluguei para vós, em vosso nome, na rua do Oeste, uma pequena habitação — donde se descortinam os jardins de Luxemburgo e onde eu vos pedirei como um favor — a permissão de ir algumas vezes, como amigo...”
— “Oh! sempre, senhor Máximo! sempre quando quiser... Eu não sou senão o que me fizeste: uma costureira modesta e feliz por viver do produto de seu trabalho... Esta ventura.., eu vo-la devo... Deus vos abençoe por isso!”
— Eis aqui o que eu respondi a Max com as lágrimas nos olhos, ajuntou Bagatela.
— Bem sabeis, Henrique, como foi nobre e desinteressada a conduta do nosso amigo... Eu o amava — nunca lho disse... mas dir-lho-ia um dia se ele esperasse um pouco... Acreditou talvez na minha frieza, na minha indiferença, e contudo Deus sabe com que gratidão eu aceitaria a oferta de seu coração e de seu nome!
Bagatela calou-se. Era grande a sua emoção na evocação destas recordações.
Com efeito, ela amara tão ingenuamente Max! como Gretchen ela fizera tanto por ele — que ele já nada lhe tinha a fazer... Porém Max tinha cousas singulares no cérebro... amava profundamente Bagatela... cercara-a sempre de cuidados delicados de atenções ternas, mas sempre de mistura com uma espécie de respeito. Ela era para ele mais que uma irmã e menos que uma amante. Quando trabalhava, entre ela e Henrique, ele lhe lançava de vez em quando um olhar paternal e amoroso ao mesmo tempo, e murmurava depois: “Há de ser minha mulher!”
— Oh! Max! Max! murmurou de novo Bagatela.
— Ah! feliz morto! — murmurou de novo Henrique.
Na tarde desse dia, o jornal — O Mensageiro — publicou estas linhas: — “Acabamos de saber da desaparição de Mr. Máximo — vulgo o Velho — Mr. Máximo tinha há algum tempo acessos de febre ardente e tudo faz crer que em um desses momentos pôs fim aos seus dias... É uma perda imensa para a arte de que Mr. Máximo era um digno representante... Cumpre registrar a sua morte no martirológio dos grandes pintores — que o desespero, uma paixão continuada ou qualquer outra cousa levaram ao suicídio... Depois de David, morto longe da Pátria, depois de Gros — agonizando no Sena, depois de Leopoldo Roberto, que se degolou em Veneza — depois de Gericault Sigalon, citamos o fim doloroso de Mr. Máximo!
É assim que se escreve a História!”
Alguns meses se passaram e — é mister confessá-lo para vergonha eterna deste pedaço de caoutchouc (borracha) que se chama coração humano — e cada dia levava consigo uma porção do amor e da amizade que Henrique e Bagatela votavam a esse pobre Max, morte sem dúvida, para os fazer felizes.
Toda a dor desaparece com o tempo por mais profunda que seja... cedo os pesares deixam de manchar o estofo cambiante da existência... Nem custa a desembaraçar a alma das recordações, que ligam ainda os vivos aos mortos... Assim, vai o mundo! Ontem, dor que parecia ser eterna, — sim, eterna como a aurora; hoje, esquecimento total das criaturas extintas, e cuja presença, além disso, seria importuna! E, realmente, os mortos são bem maçantes personagens em exigir uma memória sua sobre a terra. Para quê?
Todavia, não nos devemos apressar em deitar a primeira pedra da exprobração a essas duas pobres crianças. Max não estava totalmente morto na memória e no coração de Bagatela e de Henrique. Este último, sobretudo, quase às portas da miséria, apesar da herança que lhe deixara seu amigo, parecia acabrunhado por um remorso secreto de resto, bem fraco pela idéia de que Bagatela não partilhava seu criminoso amor. Primeiro que tudo, por uma dessas delicadezas do coração, que os amantes hão de compreender — tinha perdido o hábito de pronunciar esse nome de Bagatela sob o qual Max amara a mulher que ele amava também, posto que sem esperança. Em segundo lugar perdera ele também o hábito de se dirigir para o lado da casa de Bagatela.
Esta, por seu turno, não ousara queixar-se deste apartamento, mas lastimava-o porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma missão sobre a terra de mansidão, de comiseração, de afetuosidade, nunca faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e orgulhoso, e atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre moça com seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e amigavelmente sobre as causas dessa dor que o minava surdamente... Henrique não podia confessar-lhe que era o seu amor por ela a causa única de seus tormentos e de seus combates de cada dia. Não ousava confessar-lho receando chamar sobre si sua cólera e desprezo... Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique se assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os bastidores, e que imaginam como Hans Svederlick, que não há honra nem favor que não possam colher, querendo para eles, “toda a galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta! pobre artista!
Compreendendo, enfim, que aquele amor o mataria, Henrique resolveu um dia matar-se e acabar com um golpe suas irresoluções e sofrimentos. Mas, ele não queria morrer na rua para ser transportado e exposto figura hedionda — sobre as hediondas tábuas da Morgue! Não!... a morte na sua pequena mansarda, ao pé de seus quadros, de suas obras: — na sua mansarda ainda perfumada com a presença de Bagatela: na sua mansarda, onde ele vivia com a imagem adorada, onde ela chorara; e onde lhe apertara a mão ao despedir-se! Essa morte, sim, valia a pena!
Além disso, ele morria descansado sobre a sorte dessa mulher por quem ia morrer; porquanto no primeiro dia de cada mês, à noitinha, um velho, cujo semblante austero e melancólico causava respeito, apresentava-se em casa de Bagatela, dava-lhe um rolo de 150 francos, rendimento mensal que lhe deixara Max; depois retirava-se cumprimentando, mas sem proferir uma palavra.
Uma noite, pois, Henrique entrou em casa resolvido a pôr termo à existência que o acabrunhava. Acendeu a lâmpada, correu os ferrolhos da porta, que não se fechava de todo, e depois de algumas disposições testamentárias, tomou uma pistola que pusera ao entrar em uma mesa e carregou-a...
— Amo-a muito, murmurou ele penivelmente, para não persistir em minha resolução... Sede fiel à minha memória! — disse Max.., serei fiel à sua memória... vamos... Daqui a poucos minutos estarei de jornada para a eternidade!... Ele gracejava nos seus últimos momentos... Max! Tinha essa coragem... Ah! É que era amado! Por que matou-se? Eu nunca ousara conceber esta esperança que faz minha alegria e suplício... Adeus, pois, vós todos objetos queridos que vou abandonar, adeus!
Henrique inclinou orgulhosamente a cabeça. No momento em que colocava na fronte o cano da pistola, bateram na porta. Abaixou a arma e esperou. Bateram de novo, mas com uma violência inaudita. E a porta rodou sobre os gonzos...
— Henrique! que íeis fazer? — exclamou Bagatela, precipitando-se ao mancebo e arrancando-lhe a pistola.
— Bem o vedes! — respondeu ele com uma voz surda — ia morrer!
— Morrer! tu, Henrique! oh! não deves morrer... eu to proíbo!
Dois olhos e dois lábios que dizem eloqüentemente: — vivei! têm o direito de serem ouvidos. Henrique sentiu desvanecerem-se as suas veleidades de suicídio... sobretudo quando Bagatela ajuntou:
— Há muito tempo que eu adivinhei o teu amor — porque eu também te amava; sofrias, dizes tu? E eu? Eu! acreditas então que eu não houvesse mister de coragem, ou antes de crueldade, para deixar-te assim esperar-me, sofrer e chorar? Combatias contra o vão fantasma de um passado que lá vai... lutavas com um remorso que não deve mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te absolvo! Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a responsabilidade e a vergonha... Podemos ser felizes de hora avante, Henrique, pois que eu sou rica... um parente de minha mãe deixou-me uma herança... É uma bênção do céu! não teremos mais necessidade dos benefícios póstumos de Máximo.
Mr. Heine tem razão: “Todos sabem o que são cacetadas; mas o que é amor, todos ainda ignoram!”
— Gabriela! — respondeu Henrique com um desespero misturado de tristeza. — Fugi, deixai-me só... Há entre nós uma barreira que não podemos transpor... a lembrança de Máximo?
— Mas tu não me amas, Henrique?
— Não te amo! Mas não é por ti que eu quero morrer? Deixa-me... não quero ser perjuro!... vai-te!
— Ficarei aqui! — disse Bagatela com uma voz resoluta. — Há oito dias que te espero... oito séculos! pois que eu os contei... Tu não me procuraste... procurei-te eu... Venho dizer-te: separados, éramos infelizes; reunidos...
— Oh! não acabes, Gabriela.
— Então morramos ambos morramos...
— Ainda não, meus filhos — disse uma voz.
Bagatela e Henrique voltaram-se e viram, a primeira com medo, o segundo com espanto, aproximar-se um velho, cujo casacão pardo e cabelos brancos tinham um ar respeitável.
— O desconhecido! — murmurou a moça.
— Senhora, eu vos saúdo — disse o velho com uma voz trêmula e um pouco desfalecida. — Bom dia, Senhor! estão ambos espantados... que tínheis! Queríeis morrer, meu jovem amigo? Ah! fora com isso! é bom para os maníacos, e vós tendes juízo.
— Ah! esta voz! esta voz!... — exclamaram Bagatela e Henrique.
— É a de um homem que vos ama e quer a vossa felicidade, meus filhos... — retrucou o velho; — eu soube apreciar-vos ambos, há bastante tempo, posto que pouco me conheceis. Mr. Máximo, de quem fui amigo outrora, deixou-me o cuidado de velar sobre vós... Obedeci-lhe religiosamente... Vós que sois tão dignos um do outro, — (aqui a voz do velho fez-se um pouco irônica, o que não notaram os nossos amantes; tão ocupados estavam em recordar-se onde tinham ouvido essa voz tão fresca e suave ainda, apesar de seu abalo tremor de ancião)! Vós que sois tão dignos um do outro... ide tocar a meta da ventura! eis aqui o vosso dote... não é considerável... porém Max ficará satisfeito — lá em cima, se o aceitardes.... É a última recordação que ele vos dá... Minha missão está terminada... O que vos peço ainda, em nome de Max, é de vos lembrardes algumas vezes, de vez em quando, quando não tiverdes outra coisa a fazer... nas vossas horas de tédio, ou de prazer, que um homem existiu, que vos criou, e levou consigo a consolação de ter ao menos as vossas saudades... é bem pouco uma recordação... e bem pouco uma lágrima... Fazei algumas vezes essa melancólica esmola dos vivos a um morto, que só tem aqui na terra uma preocupação: — a vossa ventura. Adeus, só me vereis ainda uma vez, no dia do vosso casamento; até mais ver, meus filhos e... até mais ver!....
E sem esperar uma resposta de Bagatela ou de Henrique, o velho desapareceu.
— Henrique, murmurou Bagatela com uma doce melancolia. Henrique... bem o vedes... Nada mais se opõe à vossa ventura... Mas não vos quis legar um remorso...
Coisa estranha! — justamente em razão daquela absolvição que Max dera, de além-túmulo aos seus criminosos pensamentos, Bagatela e Henrique sentiam a consciência agitar-se, e apenas o artista morto levantava os seus escrúpulos eles renasciam mais vivos em suas almas...
— Oh! Max valia mais do que eu! — respondeu Henrique, voltando a cabeça, para ocultar à Bagatela a vista de uma lágrima que lhe resvalara furtivamente na face.