Bagatela/III
Um mês se tinha passado e em uma capela da Igreja de S. Sulpício, um padre abençoava dois jovens que tomavam diante de Deus o cargo de se amarem até a morte.
A um canto da capela estava um velho imóvel, com o pescoço estendido, que seguia com o olhar febril e quebrado cada movimento dos novos esposos que eram Bagatela e Henrique... apenas a moça pronunciou corando de ventura o sim fatal, o velho estremeceu e a sua fisionomia exprimiu uma angústia dolorosa...
Terminada a cerimônia dispersou-se a multidão. Bagatela estava radiante com o vestido azul do céu que parecia abençoar esta união e sorrir a esta festa. Henrique tinha por momentos, um ar pensativo e triste e quando subiu para o carro, procurou e fez procurar por toda parte o velho; mas ele tinha desaparecido.
Enquanto os noivos se iam de seu lado contentes e brilhantes, ele apressava o passo com um ar sombrio, para chegar mais depressa.
Subiu uma escada de uma casa da rua dos Mártires, abriu uma porta e achou-se em uma oficina povoada de quadros, de estátuas, e objetos de arte. Parou então, pôs a mão sobre o coração e contou as pancadas. — Tudo está acabado! murmurou ele com uma voz quebrada. — Ela e ele são felizes... Está bem...
E ficou entregue a uma meditação profunda que tinha por fim incessante uma determinação terrível.
— Nada de saudades estéreis! Nada de desejos quiméricos! — disse ele contemplando com olhar quebrado e resignado as nuvens que purpureavam o horizonte — lá vai o tempo das saudades e desejos... agora é a agonia... é a morte... a morte! Oh! ela já está em mim... em mim todo!
E pôs a mão sobre a fronte!
— A inteligência, esse archote soberbo que irradia isoladamente ao lado do próprio sol?... Está apagada em mim...
Pôs a mão no coração:
— O coração, esse diamante precioso que nada altera... Meu coração! quebrou-se em mil pedaços, como vidro...
Sorriu amargamente e continuou:
— Ah! os cantos de meu coração, e as marcas da minha vida são como cipós da Via Apiena: não há mais que cinzas e aqui jaz! Sobre os destroços dos meus amores e de minhas esperanças, só tinha de dormitar agora... Ah! a vida é feita de abrolhos e espinhos... Pobres ovelhas que o invisível pastor leva ao matadouro da morte, deixam lã a cada espinheiro, sangue a cada fonte de pedra... Pus o dedo sobre a ventura e a ventura fugiu-me para não voltar mais...
As divinas promessas do amor esvaneceram-se ao sopro gelado da indiferença... como eu era insensato! crer na coragem de Henrique e na virtude de Bagatela! Oh! queridos ídolos derrocados! Mas para que inventar Galatéas impossíveis? por que quis eu apoiar a ventura de toda a minha vida na areia movediça das paixões? — Quis, fatal pensamento! — submeter o amor de um e a amizade de outro à pedra de toque da ausência, e essa experiência provou-me o egoísmo dessas duas afeições sem as quais eu não podia viver... No fundo da ânfora onde as lancei ambas, resta um pouco de ouro puro e muita terra...
Não me amam mais, não me podem mais amar... E é tal o desencanto horrível de minha alma que nesta hora solene chega a duvidar que eles me amassem!... Mas que importa? Eu os amava, eu os amo ainda, ingratas crianças que me esqueceram tão depressa!... E a sua virtude me é cara, apesar de haver quebrado a minha... Ah! a ventura! a ventura! — repetiu ele com violento furor — a ventura! ... por ventura nós a conhecemos — nós os eleitos, os predestinados, os gloriosos, cuja vida é um calvário de estações dolorosas... A ventura nunca vem cedo; chega mesmo tarde demais. É um viajante descuidado e fantástico, que não sabe onde vai, onde deve comer, onde deve dormir, e que uma noite vem por fantasia bater à nossa porta. Mas já a velhice cá estava: a cabeça está calva, os olhos sombrios, a boca fechada; nós nos habituamos à imobilidade da sepultura, pela imobilidade da idéia. Todavia abre-se a porta a esse viajante estouvado e falador que para vir à nossa casa solitária toma um caminho mais longe... que retardou-se na viagem a cercar com as mãos as cinturas das jovens aldeãs encontradas, e a contar-lhes loucas histórias que as fizeram corar — de prazer! Abrimos a porta mas, rosnando; por que temos reumatismos: abrimos rosnando e tossindo, escandalizados das risadas intempestivas e da alegria extravagante desse hóspede, cuja vinda, que nos importuna tantas vezes, há bom tempo saudamos com efusão e gratidão... Não lhe compreendemos o falar... Já nos é um estrangeiro; mais que um estrangeiro mesmo, um inimigo; por que sua presença agora em nossa casa é uma ironia amarga, é um insulto. Mas não somos maus; não sabemos sê-lo; a dor habitua à bondade; e em vez de dizer a esse estranho que nos perturba o sono de ancião, batendo precipitadamente na porta fechada de nosso coração: “Já não vem a tempo!” — dizemos-lhe melancolicamente: — “É bastante tarde!”
— Ah! coisa terrível.., coisa terrível... a ventura!
Durante um instante ficou ele com a cabeça entre as mãos crispadas; depois continuou com os olhos mais úmidos de lágrimas, porém mais enternecidos:
— Ouço soar em meu coração sinfonias inebriantes da mocidade, como um alegre concerto de vozes amadas... Ouço minhas alegres e frescas recordações de mancebo bater carga e rolar louca e impetuosamente por meu pobre cérebro... Ah! toque insensato, amante risonho dessas recordações, dessas sinfonias me fazem mal!... Quero dormir o meu último sono, embalado pelo pensamento de que meu fantasma doce e triste atravessará talvez a vida de Henrique e Bagatela, e deixará um vestígio perfumado em seus corações... Ah! ainda vem ver, por que tentei essa prova maldita?... Antes de morrer experimentei a morte... Magoadora experiência! não sei se devo alegrar-me com ela, pois eles são felizes, ou entristecer-me uma vez que morro! Oh! meus ídolos! ídolos amados, caístes do pedestal em que vos elevei!... Eu devera morrer logo... teria lançado a campo, crença, fé, ilusão!... não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à tua queda, Gabriela!...
Depois, desembaraçando-se do vestuário do velho que o incomodava, Max dirigiu-se pálido, grave, com a fronte carregada de idéias sinistras, para o fundo da sua oficina e para diante de uma tela branca que parecia esperar dele o movimento e a vida...
O rosto viril do artista refletiu, nesse instante, as torturas sem nome, as angústias horríveis, as dores inauditas que lhe rasgavam a alma desde o dia em que voluntariamente deixara Henrique e Bagatela... Estava acostumado ao uso das decepções como Mitrídates ao uso dos venenos; mas desta vez a dose era forte demais: matava-o!...
Nesse instante, ele odiava a vida com todas as forças que lhe restavam... desenganado deste mundo, chegava quase aos lábios a taça fatal quando o vento lhe trouxe o eco fraco de um canto lançado no espaço: Pôs-se a escutar. A voz dizia:
Debalde semeei formosas crenças.
Nem um raio de sol desceu-me aos prados!
Veio a dor às campinas da esperança
Como vai joio ao trigo.
— É a voz de um poeta! — murmurou Max com um melancólico sorriso. — Não sou só eu a sofrer!
Chegou-se depois ao seu cavalete, tomou os pincéis e na tela colocada em frente dela construiu em uma hora, que passou como um relâmpago — o poema melancólico e pungente de sua vida despedaçada ainda no começo... Evocou por um momento os dois entes adorados que tinham vindo um após outro cravar-lhe o punhal no coração... E essa tela animou-se como por encanto! Iluminou-se de reflexos fantásticos e vertiginosos! Max dava assim o derradeiro esforço de seu gênio, o último grito de sua alma, a última vibração de seu coração...
Mas esse esforço sobrenatural devido à febre e ao desespero, esmagou-o... Ele arrastou-se até a janela para contemplar ainda uma vez o céu que lhe negava, como suprema consolação, fechar os olhos nos seios de uma mulher, e nos braços de um amigo; palpitava-lhe o peito convulsivamente...
Grossas nuvens pardas, levadas por um vento. Estas acumulavam-se no horizonte como uma massa de neve. O sol, em seu ocaso, espalhava sobre a cidade uma cor sombria em harmonia com as sombrias idéias do artista...
— Vamos! — exclamou ele voltando à mesa onde depusera ao entrar um pequeno frasco contendo um licor escuro. — Que o sacrifício se consuma! Agora que todas as afeições estão mortas, que as minhas ilusões estão extintas, vou extinguir-me com elas, como elas vou morrer... O aventureiro Gabor tinha razão: — “A vida é uma caçoada amarga!...”
E de um trago, o heróico artista absorveu o licor do vidro que descompôs-lhe o semblante rapidamente.
Corria-lhe o olhar sangrento e úmido de um a outro objeto, roçando de leve muitas recordações que se prendiam a duas criaturas queridas e amadas demais.
De repente, esse olhar moribundo parou na tela deslumbrante em que seu gênio lançara a última palavra... Parecia-lhe que legar aos vivos, aos indiferentes, aos felizes o admirável poema que ele esboçara seria uma profanação, um sacrilégio, uma impiedade e reunindo então as poucas forças que lhe deixava o veneno, arrastou-se penivelmente até o cavalete, tomou uma faca e em um sublime e último esforço rasgou e despedaçou freneticamente a tela... Depois seus braços se torceram, os dedos se lhe crisparam, soltou um grito surdo, um grito de angústia e de saudades supremas que o eco repetiu.
— Tudo acabara.