Balada de loucos

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Oui, nulle souffrance ne se perd, toute douleurfructifie, il en reste un arome suibtil qui se répand indefiniment dans le monde!

M. DE VOGUE

Mudos atalhos afora na soturnidade de alta noite, eu e ela, caminhávamos.

Eu, no calabouço sinistro de uma dor absurda, como de feras devorando entranhas, sentindo uma sensibilidade atroz morder-me, dilacerar-me.

Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca, rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.

Eu e ela, ela e eu! — ambos alucinados, loucos, na sensação inédita de uma dor jamais experimentada.

A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo, como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...

Eram em torno paisagens tristes, torvas, árvores esgalhadas nervosamente, epilepticamente — espectros de esquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos sem apertar nunca outros braços amados!

Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta, sonhadora e niilista cabeça de Cristo de cabelos empastados nos lívidos suores e no sangue negro e esverdeado das letais gangrenas.

Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse, como duas Chagas obscuras mascaradas na Noite.

Longe, sob a galvanização espectral do luar, corria uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse...

O luar plangia, plangia, como as delicadas violetas doentes e os círios acesos das suas melancolias, as fantasias românticas de sonhador espasmado.

Parecia o foco descomunal de tocheiros ardendo mortuariamente.

A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo, como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...

Beijos congelados, as estrelas violinavam a sua luz de eternidade e saudade.

E a louca lúgubres litanias rezava sempre, soluços sem o limitado do descritível — dor primeira do primeiro ser desconhecido, originalidade inconsciente de um dilaceramento infinitamente infinito.

Eu sentia, nos lancinantes nirvanescimentos daquela dor louca, arrepios nervosos de transcendentalismos imortais!

O luar dava-me a impressão difusa e dormente de um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela, abraçados na suprema loucura, ela na loucura do Real, eu na loucura do Sonho, que a Dor quint'essenciava mais, fôssemos boiando, boiando, sem rumos imaginados, interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto humano dos organismos — almas unidas, juntas, só almas vogando, almas, só almas gemendo, almas, só almas sentindo, desmolecularizadamente...

E a louca rezava e soluçava baixinho rezas bárbaras.

Um vento erradio, nostálgico, como primitivos sentimentos que se foram, soprava calafrios nas suas velhas guslas.

De vez em quando, sobre a lua, passava uma nuvem densa, como a agitação de um sudário, a sombra da asa de uma águia guerreira, o luto das gerações.

De vez em quando, na concentração esfingética de todos os meus sofrimentos, eu fechava muito os olhos, como que para olhar para o outro espetáculo mais fabuloso e tremendo que acordava tumulto dentro de mim.

De vez em quando um soluço da louca, vulcanizada balada negra, despertava-me do torpor doloroso e eu abria de novo os olhos.

E outro soluço, outro soluço para encher o cálix daquele Horto, outro soluço, outro soluço.

E todos esses soluços parecia-me subirem para a lua, substituindo miraculosamente as estrelas, que rolavam, caíam do Firmamento, secas, ocas, negras, apagadas, como carvões frios, porque sentiam, talvez! que só aqueles obscuros soluços mereciam estar lá no alto, cristalizados em estrelas, lá no Perdão do Céu, lá na Consolação azul, resplandecendo e chamejando imortalmente em lugar dos astros.

A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo, como, quando se leva a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife...

O vento, queixa vaga dos túmulos, esperança amarga do passado, surdinava lento.

De instante a instante eu sentia a cabeça da louca pousada no meu ombro, como um pássaro mórbido, meiga e sinistra, de uma doçura e arcangelismo selvagem e medroso, de uma perversa e febril fantasia nirvanizada e de um sacrílego erotismo de cadáveres. Ficava tocada de um pavor tenebroso e sacro, uma coisa como que a Imaginativa exaltada por cabalísticos aparatos inquisitoriais, como se do seu corpo se desprendessem, enlaçando-me, tentáculos letárgicos, veludosos e doces e fascinativos de um animal imaginário, que me deliciassem, aterrando...

Eu a olhava bem na pupila dos grandes olhos negros, que, pela contínua mobilidade e pela beleza quente, davam a sugestão de dois maravilhosos astros, raros e puros, abrindo e fechando as chamas no fundo mágico, feérico da noite.

Naquela paisagem extravagante parecia passar o calafrio aterrador, a glacial sensação de um hino negro cantado e dançado agoureiramente por velhas e espectrais feiticeiras nas trevas...

A lua, a grande mágoa requintada, a velha lua das lágrimas, plangia, plangia, como que na expressão angustiosa, na sede mais cega, na mais latente ansiedade de dizer um segredo do mundo...

E eu então nunca mais, nunca mais me esquecerei daqueles ais terríveis e evocativos, daquelas indefiníveis dolências, daquela convulsiva desolação, que sempre pungentemente badalará, badalará, badalará na minh'alma dobres agudos e lutuosos de uma Ave-Maria maldita de agonias, como se todos os bons Anjos da Mansão se rebelassem um dia contra mim cantando em coro reboantes, conclamantes hosanas de perseguição e de fel!

Nunca! nunca mais se me apagará do espírito essa paisagem rude, bravia, envenenada e maligna, todo aquele avérnico e irônico Pitoresco lúgubre, por entre o qual silhueticamente desfilamos, eu, alucinado num sonho mudo, ela, alienada, louca — simples, frágil, pequenina e peregrina criatura de Deus, abrigada nos caminhos infinitos deste tumultuoso coração.

Só quem sabe, calmo e profundo, adormecer um pouco com os seus desdéns serenos e sagrados pelo mundo e escutou já, de manso, através das celas celestes do mistério das almas, uma dor que não fala, poderá exprimir a sensação aflitíssima que me alanceava...

Ah! eu compreendia assim os absolutos Sacrifícios que redimem, as provações e resignações que transfiguram e renovam o nosso ser! Ah! eu compreendia que um Sofrimento assim é um talismã divino concedido a certas almas para elas adivinharem com ele o segredo sublime dos Tesouros imortais.

Um Sofrimento assim despertava em mim outras cordas, fazia soar outra obscura música. Ah! eu me sentia viver desprendido das cadeias banais da Terra e pairando augustamente naquela Angústia, tremenda, que me espiritualizava e disseminava nas Forças repurificantes da Eternidade!

E como dentro de mim estava aberto para ela o suntuoso altar da Piedade e da Ternura, eu, com supremos estremecimentos, acariciava essa alucinada cabeça, eu a levantava sobre o altar, acendia todas as prodigiosas e irisantes luzes a esse fantasma santo, que ondulava a meu lado, no soturno e solene silêncio de fim daquela sonâmbula peregrinação, como se ambos os nossos seres formassem então o centro genésico do novo Infinito da Dor!