Brasileiras celebres (1862)/I: Amor e fé
Ao cristianismo deve o Brasil os nomes que nos transmitiram as gerações passadas dessas mulheres que, arrancadas às brenhas, vieram à luz da civilização ostentar as virtudes, cujo gérmen tinha a divindade depositado em seus generosos corações; estranha contrariedade das mulheres criadas no seio do catolicismo, educadas nas máximas do Evangelho e que despenhadas pelos degraus do vício às últimas classes sociais tornam-se o labéu e o escárnio da própria humanidade.
Paraguaçu ou Catarina Álvares, a bela e virtuosa esposa de Caramuru; Maria Bárbara, a mártir do amor conjugal; dona Clara Camarão, a guerreira, e Damiana da Cunha, a mulher missionária, são as dignas representantes por parte de seu sexo, dessa raça desgraçada e infeliz, cuja autonomia vamos absorvendo ou aniquilando todos os dias, até a sua completa extinção.
Catarina Alves é um dos nomes a que se ligam as mais romanescas tradições brasileiras.
Filha do principal (moru bixaba) de uma aldeia de tupinambás, mereceu pela sua beleza e qualidades a preferência do famigerado Diogo Álvares entre as mais distintas indianas de seu tempo. As águas do batismo, a regeneração da culpa original, e a Igreja reconheceu-a depois por esposa daquele a quem ela votara o mais puro amor, legitimando assim a sua união conjugal.
Diogo Álvares, natural de Viana do Minho em Portugal, foi arrojado às praias do Brasil vítima do naufrágio de uma caravela que se presume ter-se perdido sobre os parcéis de Mairapé, o caminho do estrangeiro, na linguagem poética de seus antigos habitantes.
Ali, ainda com os vestidos úmidos e pesados, curvou-se sobre as praias encantadoras; seus olhos se alçaram para os céus; e a invocação de Salvador, que dirigiu à Divindade, deu nome a magnífica baía que desdobrava-se a seus olhares.
Corria então o ano de 1510 e aquelas paragens eram mal visitadas dos europeus; e pois os tupinambás o viram com admiração sair do mar, com uma fisionomia completamente estranha para eles não só pela alvura de seu rosto como pela espessura e comprimento de sua barba, e conduziram-no para a sua aldeia.
Segundo os costume dos bárbaros era o náufrago seu prisioneiro, e devia servir-lhes de pasto nos seus festins antropofágicos; gozava, porém, o mísero cativo de certas homenagens até a aproximação do dia fatal.
Luz, porém, a boa fortuna de Diogo Álvares que com ele fossem rejeitadas pelo mar armas e pólvora, que recolheu cuidadosamente; era o céu que lhe confiava no seu temível mosquete o raio que devia subjugar os seus senhores, e dar-lhe um predomínio absoluto sobre os seus ânimos. Explica-lhes a serventia de seu instrumento bélico, e prova-o com o exemplo que tem nas suas mãos a punição de seus inimigos que lhe ousem fazer o mais pequeno dano; e o tiro disparado do mosquete, cujos projéteis vão abater a ave que paira nos ares, enche de assombro os selvagens, que fogem espavoridos bradando na sua língua: Caramuru! Caramuru!
Esse nome na sua linguagem pitoresca e poética era bem cabido ao homem que eles tinham visto sair como que do meio das ondas com o seu terrível mosquete; pois por esse nome conheciam uma espécie de moréia grande, de dez a doze palmos de comprido, armada de dentes venenosos que inoculam a morte por meio da mordedura. Desde então, tomou-se Diogo Álvares o verdadeiro Caramuru, o ente sobrenatural que devia guiá-los à vitória nas guerras que pelejavam de contínuo contra os seus vizinhos, como as feras de seus próprios bosques.
Senhor da língua geral, falada em toda a costa do Brasil, acabou Diogo Álvares por ganhar a completa obediência dos selvagens em razão do desenvolvimento de sua inteligência e tratou de lançar entre eles os fundamentos de uma povoação mais sólida, ou menos nômade.
Mereceu a sua atenção o sítio da Graça, pouco distante da praça onde agora existe a igreja paroquial da Senhora Vitória, conhecida ainda hoje por Vila Velha, denominação que começa a cair em esquecimento.
Conta-se que Diogo Álvares ali fizera construir novas cabanas, muito mais decentes ao recato das famílias e que aproveitando-se dos fragmentos de seu navio, erigiu uma rústica capela, dedicada a Nossa Senhora da Graça, na qual hasteou o pendão da remissão da humanidade.
Era Diogo Álvares o alvo de todas as atenções, e os chefes das diversas aldeias tupinambás o solicitavam para esposo de suas filhas; aceitou, porém, o feliz e jovem português a mão de Paraguaçu, a filha do chefe que primeiro o recolhera e cuja hospitalidade tão fatal lhe poderia ter sido.
É voz ainda hoje que abordando aquelas praias um navio francês desses que se empregavam no tráfico do brasil, permutando-o pelas mais fúteis mercadorias da indústria européia, aproveitara-se Caramuru do oferecimento do capitão e transportara-se à França com a sua Paraguaçu. A tradição narra em tocante episódio a morte de uma indiana que por largo tempo acompanhou a nado a nau, até que sucumbiu entre as ondas, vítima do amor e da saudade.
José de Santa Rita Durão, que comemorou em belíssimo poema as aventuras de Caramuru, revestindo das cores da poesia essas tradições populares, não obstante a História negar a sua veracidade por falta de documentos em que melhor se baseie, assim nos pinta tão pungente quadro:
É fama então que a multidão formosa
Das damas que Diogo pretendiam,
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
E que a esperança de o alcançar perdiam;
Entre as ondas com ânsia furiosa
Nadando o esposo pelo mar seguiam,
E nem tanta água que flutua vaga,
O ardor que o peito tem banhado, apaga.
Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada,
E ignorando a ocasião da estranha empresa
Pasma da turba feminil que nada:
Uma que as mais precede em gentileza
Não vinha menos bela do que irada;
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha a nau, se apega ao leme.
“Bárbaro, a bela diz, tigre e não homem!...
Porém o tigre, por cruel que brame,
Acha forças no amor, que enfim o domem,
Só a ti não domou por mais que eu te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mais pagar tanto amor com tédio e asco...
Ah! que corisco és tu... raio... penhasco!
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo
Quando eu a fé rendia ao teu engano,
Nem me ofenderas a escutar altivo,
Que é favor dado a tempo, um desengano:
Porém, deixando o coração cativo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu filho amor tão crua morte?
Tão dura ingratidão menos sentira,
E esse fado cruel doce me fora,
Se a meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora;
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que, sem que o creia
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.
Enfim tens coração de ver-me aflita
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente com que aos meus respondas;
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita
(Disse vendo-o fugir), ah não te escondas
Dispara contra mim teu cruel raio!...”
E indo a dizer o mais cai num desmaio.
Perde o lume dos olhos, pasma e treme
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com mão já sem vigor soltando o leme
Entre as salsas escumas desce ao fundo;
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer, desde o profundo:
“Ah Diogo cruel!” disse com mágoa,
E sem mais vista ser sorveu-se n’água.
Choraram da Bahia as ninfas belas,
Que nadando a Moema acompanhavam,
E vendo que sem dor navegam delas
A branca praia com furor tornavam:
Nem pode o claro herói sem pena vê-las
Com tantas provas que de amor lhe davam;
Nem mais lhe lembra o nome de Moema
Sem que ou amante a chore ou grato gema.
Se Diogo Álvares foi com efeito à Europa, breve tempo demorou-se na esplêndida corte da França, se é que passou de Diepe, onde fora unicamente fazer batizar a gentil Paraguaçu e legitimar à face da Igreja a sua união, tanto mais que a tradição diz que voltara no mesmo navio. Regressando à América, aqui o veio encontrar Francisco Pereira Coitinho, a quem D. João III acabava de galardoar os serviços prestados na Índia doando-lhe uma das mais riquíssimas capitanias em que dividira o Brasil.
O donatário Francisco Pereira Coitinho aportou na Bahia em 1537; Caramuru ajudou-o na fundação da sua colônia, mas os portugueses, longe de aliarem-se aos selvagens, romperam em encarniçada luta; o vencedor dos povos indiáticos viu eclipsar-se o esplendor de suas vitórias, e retirou-se para a capitania de S. Jorge de Ilhéus, onde os tupininquins viviam em paz com os europeus.
Diogo Álvares o acompanhou com a sua Paraguaçu, e suas filhas, duas das quais já estavam casadas com colonos; anos depois naufragava ele com o donatário nos parcéis da ilha de Taparica, de que a poesia derivou o nome do pai de Paraguaçu. Coitinho, que recolhia-se à sua antiga colônia a instâncias dos tupinambás, pereceu às mãos desses bárbaros, e, a exceção de Caramuru, todos os seus companheiros tiveram a mesma sorte.
Viveu ainda Diogo Álvares por muitos anos; recebeu o governador Tomé de Sousa e foi-lhe assaz útil na fundação da antiga capital do Brasil, até que tranqüilamente expirou nos braços de sua consorte e no meio de toda a sua numerosa descendência, em 5 de outubro de 1557.
Não sobreviveu-o por muito tempo a feliz Catarina Álvares e seus despojos mortais descansam na igreja do mosteiro de Nossa Senhora da Graça onde lhe puseram o seguinte epitáfio:
“Sepultura de Dona Catarina Álvares Paraguaçu, senhora que foi desta capitania da Bahia, a qual ela e seu marido, Diogo Álvares Correia, natural de Viana, deram aos senhores reis de Portugal; edificou esta capela de Nossa Senhora da Graça e a deu com as terras anexas ao patriarca de São Bento no ano de 1582.”
No convento existe também o retrato de Dona Catarina Álvares, mas talvez tenha a mesma exatidão que tem a época da doação das terras, já quando seu marido era morto, e ela também, a menos que queriam que falecesse com mais de oitenta e seis anos; e até o mesmo nome de Caramuru é inexato.
Paraguaçu teve quatro filhas de Diogo Álvares, e não há muito tempo que uma de suas descendentes pedia ao governo imperial a graça de um título por ser a única que não o possuía.
É pois a sua descendência uma das mais ilustres da cidade da Bahia, e é desse tronco que vem a casa da Torre, tão célebre pela sua opulência.
Entre as páginas votadas às Brasileiras pelas suas ações magnânimas, pelos seus feitos de valor, pelas suas provas de amor da pátria, pelos seus rasgos de desinteresse, pelos seus exemplos de virtude, pelos seus atos de piedade e religião, pelas suas produções artísticas, literárias ou científicas, consagremos também uma página a uma e modesta mameluca.
Heroínas domésticas, sem admiradores nem poetas, sem imprensa nem tribuna, sem coroas nem estátuas, sem glória nem apoteoses, as mulheres exercem a prática de todas as virtudes, enquanto que os homens, árbitros ou legisladores da sociedade, heróis ou reis do século, se contentam com as suas teorias. O seu fausto, o seu esplendor, o seu arruído, o seu povo, as suas aclamações são as mudas e silenciosas paredes da sua habitação, são os seus cuidados, são a sua família. A sua vida toda de deveres é como que um exemplo contínuo, um exemplo santo, um exemplo justo, do qual nenhum prêmio esperam neste vale de sofrimentos e prazeres, de risos e lágrimas, e que se a alguma recompensa podem ou devem aspirar, é por sem dúvida à bem-aventurança, que a divina Providência reserva na sua santa glória aos seus mimosos, aos seus prediletos, aos seus escolhidos. É a esperança de além túmulo, nuvem dourada, que no horizonte reflete os raios do sol no poente!
A fidelidade conjugal, um dos mais nobres caracteres da mulher, que como o diadema da sua pureza, que como a coroa da sua honestidade brilha nobremente sobre a sua cabeça, que jamais se curvou à desonra, que jamais repousou sobre a perfumada almofada do vício, a acompanha triunfantemente da hora do himeneu à da sepultura, do tálamo do amor puro ao leito eterno da morte. Santa virtude, que pertence a todas as classes, altas, medianas, e baixas, da sociedade, e que, como o diamante e o ouro tanto brilha nas areias de um regato, como na coroa de um rei, tanto realce tem na magnificência admirável dos paços sob os seus abrilhantados tetos, como na humildade doce e enternecedora da choupana, entre as suas rústicas e pobres paredes.
Pura era a vida da mameluca — da mulher descendente de cristãos ou de bárbaros selvagens, mas educada sob o catolicismo, e que vivia satisfeita naquele engano da alma, de que fala Camões, e que a fortuna invejosa raras vezes deixa durar, e que morreria ignorada do mundo, que baixaria à vala comum dos mortos, ao seio da mãe da humanidade, com toda a sua virtude, tendo unicamente a oração fervente de mistura com algumas lágrimas, e com alguns ais de saudade de seus parentes, ao dobrar lúgubre mas passageiro dos sinos da sua aldeia, e a recompensa eterna da sua castidade na outra vida, se outro fosse o seu fim, se a peripécia da sua existência não convertesse o drama frio e comum da sua vida numa tragédia horrível, que tão grande brado deu de seu existir, que tão alto proclamou o seu nome, e que por toda a parte assoalhou o seu exemplo de amor conjugal.
A mísera e mesquinha bem longe estava do galardão, que lhe destinava o mundo depois do seu voluntário martírio. Desconhecida esposa de ignorado soldado, Maria Bárbara, que tantas provas havia dado do seu amor conjugal, foi assassinada covarde, fria e cruelmente, junto da Fonte do Marco, não longe da cidade de Belém, capital da província do Pará, pela mão homicida, que embalde pretendeu manchar a sua castidade. Resignada, preferiu a morte à desonra, e como mansa ovelha, coroada das flores do sacrifício, deixou-se degolar pelo pérfido assassino, que lhe abriu as portas da glória ao som dos hossanas dos santos e inocentes mártires.
Tomou de um anjo as cintilantes asas,
E para o Céu voou!
Ah! E quantas mulheres, ávidas da palma do martírio, não invejariam a sua morte! Como um epitáfio bem merecido, um poeta, filho do majestoso Amazonas, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, inspirado pela sublimidade do assunto, escreveu sobre a sua sepultura estes maviosos, estes sublimes versos, que arrancam suspiros e ais à alma mais estóica, e que se não podem ler sem que os olhos se umedeçam de lágrimas, sem que a alma fique possuída de um não-sei-quê de saudade e compaixão, e que, para nos servirmos da frase de Victor Hugo, são qual doce e longínquo som, que se escuta ainda por muito tempo:
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe, como do ferro penetrante,
Me viste por fiel cravado o peito
Lacerado, insepulto e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante.
Que de um monstro inumano, lhe declara
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém, que alívio busque a dor amara,
Lembrando-se, que teve uma consorte,
Que por honra da fé, que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.
À fé, o divino farol que nos guia a eternidade, deve o Novo Mundo a sua civilização, o seu progresso e a sua liberdade; mas essa luz pura e celeste não penetrou nas belas florestas da América, não desceu por seus caudalosos rios, nem subiu as suas altíssimas cordilheiras levada somente, como se pensa, por esses famosos padres que, triunfando de todos os obstáculos, fizeram ouvir a voz do Evangelho no próprio festim da antropofagia dessas horas bárbaras entre os próprios bárbaros.
A mulher que baixara do Calvário ao lado do padre depois do tremendo sacrifício, tinha também direito à glória de tão santa missão, e pois Damiana da Cunha realizou em nossa pátria tão sublime tarefa.
Os caiapós a reconheciam por sua soberana, os homens civilizados chamavam-na a neta do cacique; mas a posteridade designa-a por mulher missionária, e essa designação equivale a uma apoteose.
Essa tribo bravia, valerosa e intrépida, conhecida também pelo nome de coroados, dominava os sertões de Camapuã, mas nas suas caçadas e correrias alargava-se até Curitiba. Vagava nua empunhando o arco e a seta e manejando com destreza o tanguape, espécie de maça. Contava os meses por luas; fazia com grande vozeria as suas festas e jogos, em que exercitava as suas forças; tinha ajuntamentos noturnos e com danças e tinta de negro celebrava as exéquias de seus mortos. Eram eles altos, bem apessoados, e passavam entre os Indianos por belos. 1
Os paulistas que descobriram Goiás levaram suas bandeiras triunfantes aos sertões dos miserandos Índios. A avidez das riquezas as animava, e ao passo que revolviam os leitos dos rios em procura do metal que lhes acendia a cobiça, travavam guerra de morte com as tribos selvagens, e os prisioneiros tinham por condição a escravidão.
Os caiapós, zelosos de sua independência, juraram-lhes a guerra do extermínio e levaram suas incursões até os seus estabelecimentos situados na parte setentrional de São Paulo: as bandeiras eram repelidas com denodo, e os saques das caravanas abrilhantavam-lhe o triunfo como troféus da vitória.
Nessas circunstâncias resolveu o governador Luís da Cunha e Meneses reduzi-los à vida social por meios brandos, que até ali se haviam esquecido de empregar. Luís, simples soldado que fizera parte das bandeiras, foi escolhido para essa missão; puseram-no à frente de cinqüenta goiases e três índios que deviam servir de línguas, e Vila Boa viu esperançosa sair para o sertão essa expedição de paz, no dia 15 de fevereiro de 1780.
Longos meses erraram esses intrépidos aventureiros pelos desertos das feras, sustentando-se da caça e de mel selvagem; procurando com sinais pacíficos os intrépidos caiapós, e dirigindo-lhes por meio de seus intérpretes, palavras cheias de paz e conciliação; repartindo com eles brindes pueris, pelos quais esperavam alcançar nada menos do que a liberdade bravia de que gozavam. Alguns dentre eles se deixaram captar de tanta benevolência e quiseram por si mesmos conhecer o grande capitão de quem tanto e tão bem lhes falavam esses aventureiros missionários, e pois decidiram-se a acompanhar a expedição até a capital de Goiás.
Vila Boa amanheceu ruidosa de alegria. O cabo da bandeira pacífica entrava à frente de sua expedição, tendo por séqüito quarenta caiapós entre homens, mulheres e crianças. Vinha na frente deles um ancião, de fisionomia nobre e agradável, guardado por seis guerreiros, com seus arcos e flechas e terríveis maças. Era o maioral de uma tribo dessa altiva nação indiana, e entre as mulheres caminhava a sua filha, trazendo um menino pela mão e uma linda criancinha às costas, sentada numa espécie de rede de cipó pendente de uma faixa que lhe cingia a cabeça.
O feliz soldado foi recebido com pomposa festa; a artilharia saudou os bem-vindos filhos das florestas, e a igreja paroquial de Santana abriu de par em par as suas portas, e ao som dos cânticos bíblicos renderam-se graças ao Senhor pelo êxito da expedição. Agradecido o ancião com o acolhimento que tivera, enlevado com os encantos e gozos que lhe oferecia a vida social, declarou que não voltaria mais à existência nômade e selvagem de seus bosques. Despediu os seus guerreiros e marcou-lhes o prazo de seis luas para que voltassem trazendo os caiapós que se tinham deixado ficar em suas pobres palhoças, e que, dizia ele, eram tão numerosos como as estrelas.
Tratou-se de admitir ao seio do cristianismo as criancinhas, purificando-as da mácula nas águas regeneradoras da pia batismal, e pois a filha da filha do ancião recebeu o nome de Damiana, e o governador que lhe serviu de padrinho lhe deu o seu ilustre apelido.
Ao princípio foram estes índios estabelecidos na aldeia Maria, assim chamada em honra da rainha, que então empunhava o cetro do império lusitano, mas com os novos descimentos cresceram em avultado número, que força foi reparti-los pela aldeia de São José, deserta pela extinção de seus primitivos habitantes acroás, javaés e carajás. 2
Não era a aldeia de São José uma simples reunião de ligeiras choupanas apropriadas a seus moradores à maneira de suas malocas. O governador e capitão-general José de Almeida e Vasconcelos Soberal e Carvalho que lhe dera o sobrenome de Moçamedes, denominação de seu baronato, fez construir casas com bonita aparência, entre as quais colocou um palácio de recreio para os governadores, consumindo enormes somas em tais construções, um tanto suntuosas, relativamente à sua localidade.
Elevava-se a aldeia sobre uma colina dominada pela serra Dourada, légua ao norte do ribeirão da Fartura, braço direito do rio dos Pilões, que também o é do rio Claro. Em frente à igreja, de elegante frontispício, com suas duas torres, ao sul de espaçosa praça, levantava-se a habitação dos governadores com seu pórtico coroado das armas reais. Quatro torreões erguiam-se nos cantos da praça e os mais edifícios que a circulavam eram térreos, de construção regular. Por detrás da habitação dos governadores via-se um jardim de alguma extensão, regado por um ribeiro, cujas águas foram em parte desviadas para o serviço do engenho de fiar.3
Numa dessas habitações térreas residia Damiana da Cunha,4 neta desse principal submetido de tão bom grado ao jugo da civilização, que tantas comodidades lhe apresentara; ali cresceu à sombra da cruz; ali casou-se com um brasileiro que depois abraçou a vida militar5 e de tal modo se conduziu na prática das virtudes, que mereceu não só o respeito extraordinário dos índios aldeados e ainda dos selvagens, como a consideração e estima dos presidentes e principais pessoas da província.6 Era uma mulher bela entre as mulheres da sua raça; mostrava-se polida, tinha um gesto alegre, amável e franco, e muita penetração de espírito, e falava com muita clareza a nossa língua.7
Os caiapós, porém, altivos de sua liberdade selvagem e de seu nome,8 avezados à vida nômade, zombavam dos esforços empregados pelo governo da província; sujeitando-se momentaneamente à civilização, aprendiam o manejo das armas de fogo e depois abandonavam o lar doméstico, corriam de novo a entranhar-se nas florestas e vinham unidos aos seus bater-se denodadamente com as bandeiras que os sitiavam por água e por terra, sem temor dos homens que outrora tinham por deuses, e manejando tão bem como eles os terríveis trovões.9 Assim continuavam a ser o terror dos habitantes pacíficos, que surpreendidos por suas correrias, viam roubadas e incendiadas as suas casas e pagavam com a vida a defesa de seus haveres.
Damiana da Cunha, dotada de inteligência menos vulgar e de um coração generoso e altivo, contemplava com dor os sofrimentos dos habitantes de Goiás e a perseguição de que se tornavam dignos os seus irmãos primitivos; empreendeu pois reduzi-los à fé e chamá-los ao grêmio da sociedade, ao seio do cristianismo, para que fruíssem os gozos do trabalho. A neta do cacique, como a chamavam, tinha compreendido a sua missão; a fé a guiava aos duros sertões, abria-lhe o caminho para as tabas indianas, e o caiapó até ali indomável e altivo da sua liberdade bravia, dobrava a cerviz às palavras insinuantes, cheias de amor, de caridade e de esperança, de uma mulher cara pelo sangue, que lhes pulsava nas veias.
Quatro vezes os povos da província de Goiás correram à aldeia de São José de Moçamedes para presenciar a sua entrada à frente de centenas de índios, arrancados às brenhas, e que vinham submissos gozar dos frutos da civilização e da paz, e quatro vezes a nobre neta do cacique recebeu em ovações estrondosas a prova do apreço de seus importantes serviços, depois de tantos meses de peregrinações e trabalho.
No ano de 1808 entrou ela com setenta e tantos índios caiapós de ambos os sexos; vinha do sul dos sertões do Araguaia; essa cena repetiu-se em 1820, sendo o número dos índios quase o mesmo.10 O vigário Inácio Joaquim Moreira e seu sucessor Filipe Néri da Silva lançaram a água do batismo sobre essas cabeças acurvadas pela fé à civilização.11
Foi por esta ocasião que ela teve a honra de receber sob o seu teto a visita de Auguste de Saint-Hilaire. Preparava-se então para essa segunda entrada, e como o distinto viajante duvidasse do bom êxito do seu projeto, ela lhe respondeu cheia de confiança: “É preciso que eles não me respeitem tanto para que deixem de fazer o que eu lhes ordenar”.12
Fez a terceira entrada nos sertões de Camapuã no ano de 1828, pondo-se em viagem em dias de maio e recolhendo-se no dia 24 de dezembro de 1825, depois de sete meses de peregrinações e fadigas. O seu séqüito era numeroso; cento e dois índios de ambos os sexos com dois capitães à frente abandonavam as suas rudes habitações, entravam contentes e satisfeitos no templo da formosa aldeia de Moçamedes, e submissos aceitavam das mãos do vigário Manuel Camelo Pinto o batismo que lhes abria as portas à nova existência;13e o próprio presidente da província, que correra-lhes ao encontro com demonstração de agrado, recebeu-os abraçando-os e mimoseando-os com vários brindes para captar-lhes a vontade e merecer-lhes a confiança das boas intenções que havia a seu respeito.14
Nos últimos dias do ano de 1829, os índios caiapós apresentaram-se nas proximidades de Cuiabá com aspecto hostil; vinham cometendo roubos, depredações e assassinatos, e com tal ousadia e bravura que uma bandeira que desceu sobre eles foi obrigada a retirar-se com perda de um índio guanã.
Procurou-se opor maior resistência, ou para chamá-los à ordem ou para afugentá-los; formaram-se pois duas novas bandeiras que deviam atacá-los por terra e pelo rio, e os caiapós atemorizados com o aparato das armas, transpuseram o Araguaia e apareceram nas vizinhanças do rio Claro, na província de Goiás. Durante o dia o fumo e durante a noite o clarão de suas fogueiras denunciavam que não estavam longe daquele arraial e seus habitantes previam com receio a hora tremenda da bárbara incursão, quando veio tranqüilizá-los o nome de Damiana da Cunha.
Era o digno marechal Miguel Lino de Morais, presidente da província, que a chamara, implorando o socorro da mulher missionária; e pela quarta vez deixou ela a sua habitação e aceitou a tarefa árdua mas honrosa que se lhe cometia em nome da civilização.15 Não era esse o seu sonho? Longe de dar-se por fatigada e procurar descansar para sempre sobre o prestígio que havia adquirido, coberta das bênçãos de seus contemporâneos, anelava novas entradas pelos sertões, antevendo novos triunfos no descimento de outras tribos que por lá existiam nas sombras do paganismo, e pois o ensejo nunca lhe foi mais favorável.
O presidente Miguel Lino de Morais lhe escreveu de seu próprio punho, dando-lhe bem cabidas instruções, repletas de conselhos fraternais, numa linguagem condigna de quem em tão remotas paragens representava a pessoa do chefe da nação.16
Ouçamos as suas palavras:
“A amizade com os índios caiapós nossos vizinhos muito me interessa.
“Se eles bem conhecessem as vantagens da vida social e a fortuna de viver no grêmio da Igreja católica romana, seguindo os preceitos do grande Deus, autor de tudo; se eles voluntariamente se apresentassem para existir entre nós, misturados com os moradores pacíficos desta província, ajudando-os em seus trabalhos e aprendendo com eles a trabalhar para adquirir o necessário às suas precisões, bem depressa reconheceriam quanto perdem na vida errante em que vivem embrenhados pelos matos como se fossem feras. “Esta verdade reconhecida por vós e por muitos outros índios da mesma nação que entre vós vivem já civilizados, servirá de força de argumento para os persuadirdes a que aceitem o convite que por vós lhes mando fazer.
“Assegurai-lhes que todas as minhas tenções, muito recomendadas por S. M. o imperador do Brasil, se dirigem ao importante fim de os atrair como nossos irmãos, filhos do Brasil, e que servindo somente de lhes despertar o amor do bem, não é para perturbar a sua liberdade, pois que eles são livres e como tais serão sempre tratados.
“Se encontrardes repugnância em deixarem as suas aldeias para virem viver conosco, não os obrigueis a isso e assegurai-lhe a permissão de poderem vir a esta capital a falar comigo que os tratarei muito bem e lhes darei alguns brindes e ferramentas para os seus trabalhos.
“Recomendai-lhes muito que respeitem os moradores desta província; que não lhes roubem as suas roças, nem matem pessoa alguma, única forma de serem por mim estimados; porém se obrarem o contrário não se poderão admirar de que mande força armada ao mato para castigar, porque os crimes são dignos de castigo.
“Se for possível ter inteligência com os índios coroados, que se julgam ser da mesma nação caiapó e que andam em guerra com a gente de Cuiabá, pedi-lhes da minha parte que deixem de atacar na estrada as tropas que sobem com negócio para aquela província, assim como os seus moradores, pois daí não tiram interesse, antes se expõem a ser perseguidos pelas bandeiras que têm ido sobre eles e que continuarão a marchar se eles não se acomodarem. Dizei a seus capitães e maiorais que se eles deixarem os seus ataques, eu farei com que de Cuiabá procurem outra vez a sua amizade, e se acabe se uma vez essas desordens, e aos seus capitães e maiorais, dizei-lhes também que se apresentem a mim para os brindar.
“Estas instruções que vós deveis estudar antes de partir para o sertão, servirão de guia nos bons serviços que espero do vosso zelo pelo interesse desta província e dos povos da vossa nação caiapó, a quem muito estimo.17
Damiana da Cunha recebeu da presidência da província os brindes com que devia mimosear os seus irmãos primitivos, e no dia 24 de maio de 1830 saía para o sertão com seu marido Manuel Pereira da Cruz18 e um índio e uma índia, José e Luísa, que a acompanharão sempre.19 Oito meses divagou ela pelas florestas, povoadas pelas feras; acompanhou os rios, ora descendo, ora subindo pelas suas úmidas margens; vingou montes arrepiados de rochedos, cavados de precipícios, e regressou depois à sua aldeia no dia 12 de janeiro de 1831.20
Os índios aldeados foram com danças e outras demonstrações de alegria ao seu encontro lá muito além de sua aldeia, pois tinham recebido notícias de sua aproximação pelos próprios que ela expedira no Tombador, além do rio Grande e próximo ao caminho de Cuiabá, e o presidente que se apressara em remeter-lhe alguns víveres e munições, concorreu também a esperá-la com outras autoridades no lugar.21
O seu séqüito, porém, era o menos numeroso de todos quantos vira Moçamedes em suas triunfantes entradas;22 Damiana da Cunha apoiada nos braços de seus índios caminhava vacilante; seus olhos cheios de vida estavam como que apagados e a tristeza se lhe desenhava nas faces amorenadas. Ah! Era o Anjo da Morte que pairava sobre sua cabeça, curva, inclinada para terra!
O presidente foi visitá-la, e o comandante das armas concedeu a seu marido alguns dias de licença para que pudesse velar junto de seu leito.23 Tranqüila e resignada viu ela a morte aproximar-se; repartiu o que possuía com seu irmão Manuel da Cunha a quem tanto estimava;24 recebeu os socorros espirituais, e como quem adormece, cerrou os olhos num suspiro brando e suave se lhe desprendeu dos lábios.25
Tinha expirado a mulher missionária que estragara a existência em suas afanosas peregrinações e para quem a pátria não teve uma recompensa digna de seus serviços!26
Bem depressa propagou-se a fatal notícia, e a consternação lavrou por todas as povoações da província; chorou-se muito tão sensível perda.
Já a esse tempo as casas suntuosas a aldeia de S. José Moçamedes caíam em ruínas... e já hoje pouco resta de tanta grandeza... nem talvez o caiapó se lembre mais do nome de sua antiga soberana, a neta do cacique, a mulher missionária!
1 Cunha Matos, Itinerário, t. II. Silva e Sousa, Mem. da prov. de Goiás, Revist. trim. t. XII, p. 494, etc. (Aug. De Saint-Hilaire. Voyage aux sources du rio de São Francisco, etc. t. II, p. 106.)
2 Cunha Matos, Silva e Sousa, Saint-Hilaire nas obras já citadas.
3 Tenho presente a planta desta aldeia, levantada por Joaquim Cardoso Xavier, sargento do regimento de infantaria de milícia de Vila Boa em 24 de janeiro de 1810, com o seguinte título: Planta da aldeia de S. José de Moçamedes, pertencente a Vila Boa de Goiás, mandada tirar pelo Exm. Sr. D. João Manuel de Meneses, governador e capitão-general desta capitania da qual aldeia o terraplano ocupa 77 ½ braças de longitude e 44 ½ braças de latitude, por medição lineal com 73 quartéis e 4 sobrados entre os ditos quartéis. Só dois não estão demolidos, os mais se acham arruinados, cuja planta está medida e lineada com todas suas partes certas como mostra nesta estampa pelo seu petipé das braças. A planta é em duas folhas representando uma o alçado e a outra o plano.
4 Consta de seu requerimento dirigido ao cônego provisor e vigário-geral de Goiás em 19 de julho de 1829.
5 Era paisano quando casou-se, assentou depois praça no batalhão nº 29 de 1ª linha, sendo extinto deu baixa e assentou de nova praça na 5ª companhia de caçadores de 1ª linha de legião de Mato Grosso da guarnição da província de Goiás, na qual era anspeçada. Abraçando a vida militar diz ele que teve em vista fazer algum serviço ao Império ajudando sua esposa na reeducação do gentio caiapó que infestava a estrada de Goiás para Cuiabá. Auguste de Saint-Hilaire que visitou D. Damiana em 1819 diz erradamente que ela era viúva de um sargento de pedestres, a quem fora por muitos anos confiado o governo de aldeia. (Voyage aux sources du Rio de San Francisco, t. II. P. 117)
6 Merecendo muita consideração a índia D. Damiana, que tem nas tribos do caiapó uma ascendência extraordinária. (Cunha Matos, Itinerário, t. II, p. 138.) Avant de quitter San-José, j'allai rendre visite, avec le caporal commandant, à la personne de toute l'aldea pour laquelle les Caypós avaient le plus de considération: c'était une femme de leurnation, que l'on appelait D. Damiana. (Aug. Saint-Hillaire, Voyage aux sources du rio de San Francisco, t. II, p. 118.)
7 Aug. Saint-Hilaire, na viagem já citada, t. II, p. 118.
8} Chamavam-se entre si Panariás, mas os paulistas os designaram por caiapós, e ignora-se a causa. Panariá vale tanto como se disséssemos Indiano, e Auguste de Saint-Hilaire pensa que com este nome se querem distinguir, como raça dos negros e brancos, do que conclui ser ele posterior ao descobrimento recente do país que antes dessa época criam-se provavelmente os caiapós como os únicos do mundo. (Voyage aux sources, etc. t. II, p. 116)
9 O marechal Miguel Luís Morais, presidente da província, na fala que dirigiu ao conselho da mesma província em 1830. (Matutina meia pontense de 12 de julho de 1830 nº 32.)
10 Atestação de Manuel Camelo Pinto, presbítero secular do hábito de S. Pedro, vigário missionário na aldeia de S. José de Moçamedes, que reporta-se à tradição por falta de assentamentos ou matrícula dos índios.
11 Consta de seu requerimento de 19 de junho de 1829.
12 Na viagem já citada, t. II, p. 119. “D'après ce que me dit cette femme, elle entreprenait ce Voyage dans la persuasion que ses compatriotes seraient plus heureux dans l'aldea qu'au milieu de leurs forets.” Idem.
13 Atestação do vigário Manuel Camelo Pinto de 3 de junho de 1829.
14 Ofício do presidente Miguel Lino de Morais de 31 de dezembro de 1828.
15 Ofício do presidente Miguel Lino de Morais ao Ministério do Império, datado de 24 de maio de 1830.
16 Em 15 de maio de 1830, estas instruções lhe foram lidas muitas vezes por seu marido, segundo a recomendação do presidente. Of. acima citado.
17 Acha-se anexo ao seu ofício de 24 de maio de 1830, dirigido ao Ministério do Império.
18 Portaria de José Antônio da Fonseca, comandante interino do batalhão de caçadores de primeira linha.
19 Requerimento de Manuel Pereira da Cruz ao presidente da província, de 1º de fevereiro de 1831.
20 Atestação do Vigário Manuel Camelo Pinto de 10 de maio de 1831.
21 Ofício do 1º de outubro de 1830, dirigido ao Ministério do Império.
22 Compunha-se de 32 índios de ambos os sexos, sendo alguns menores.
23 Por despacho de 2 de fevereiro de 1831.
24 Consta da ata da sessão extraordinária do conselho da província de 6 de outubro de 1831.
25 Faleceu entre 2 de fevereiro e 9 de março de 1831, como se infere de um requerimento de seu marido dirigido à presidência da província.
26 O marechal Cunha Matos diz no Itinerário do Rio de Janeiro às províncias do Pará e Maranhão, que D. Damiana da Cunha percebia uma pensão anual pelos seus importantes serviços. T. II, p. 138. Não é isto que consta dos documentos oficiais que tenho à vista.
Por aviso do Ministério do Império de 2 de outubro de 1829, mandou-se que o presidente da província de Goiás concedesse a Manuel Pereira da Cruz a gratificação que julgasse conveniente, segundo o merecimento que pudesse ter em seu conceito os serviços que alegava.
O presidente Miguel Lino de Morais deu por ofício de 24 de novembro de 1829 a seguinte informação:
“O suplicante nenhum merecimento tem para suplicar a recompensa pedida, nem é capaz de seguir por si semelhante diligência. Sua mulher Damiana da Cunha, filha de um cacique caiapó, ajudado de um sobrinho, soldado do batalhão nº 29, é que reconduziram e os trouxeram à aldeia pela influência que a dita Damiana tem sobre eles. Ao suplicante neguei os vencimentos de soldado sem o ser, e foi então assentar praça para acompanhar a mulher. À vista disto parece convir mais ser recompensada a mulher do que ele, até por lhe tirar as tensões de ir à corte pedir remuneração de seus serviços, em que me falou. Suposto ficasse desvanecida, com os exemplos dos que têm descido de Mato Grosso, avivaram-se-lhe as idéias, e é um mau exemplo, porque segue-se todos os índios mansos quererem ir, exigindo despesas aqui e na corte, conseqüentemente encarando o espírito do aviso no seu verdadeiro sentido, permita-me, V. Exc., que eu suspenda a sua execução até que se ofereça oportunidade, tratando com a dita Damiana a esse respeito.”
Por aviso de 17 de julho de 1830, ordenou-se que se verificasse em Damiana da Cunha a gratificação que se mandara dar ao seu marido e que ficara suspensa por aviso de 1 de abril de 1839, em conseqüência da informação presidencial.
Na sessão extraordinária do conselho da província de 6 de outubro de 1831, foi lido o requerimento do anspeçada do batalhão de caçadores nº 29 de primeira linha, Manuel Pereira da Cruz, viúvo da falecida Damiana da Cunha, índia da nação caiapó, pedindo a gratificação que tinha sido mandada arbitrar a favor de sua falecida mulher.
O conselho marcou pelos serviços da mesma a gratificação de 40000 l. e resolveu que ao marido se desse metade e a outra metade a Manuel da Cunha, único irmão da dita falecida, com quem ela repartiu o que tinha antes do seu falecimento.
Em novembro de 1832, requereu ainda M. Pereira da Cruz que se lhe abonasse anualmente a gratificação de 20000 l., como a que recebera no ano anterior por deliberação do conselho provincial em observância do aviso de 17 de julho de 1830.
O presidente José Rodrigues Jardim por ofício de 29 de novembro de 1832 informou que além do serviço que ele prestara em duas entradas nos anos de 28 e 29 em companhia de sua esposa, nenhum outro havia feito que se tornasse digno de remuneração , e assim se deliberou por aviso de 10 de abril de 1832.
Os índios José e Luísa, que vivam em companhia de Damiana da Cunha, não ficarão sob domínio de M. Pereira da Cruz, como ele requerera, para lhe servirem de língua em novas entradas por indeferimento do presidente Miguel Lino de Morais, de 9 de março de 1831.