Brasileiras celebres (1862)/II: Armas e virtudes
Quando o brado da invasão holandesa repercutiu em nossas plagas, um povo pequeno, mas consciente de sua intrepidez e heroicidade, correu às armas, e surpreendeu a expectativa da Europa prolongando por trinta anos uma luta que parecia de fácil terminação!
Nessa guerra heróica, chamada brasílica, não tiveram senhoras brasileiras que invejar aos seus compatriotas os feitos honrosos e dignos de valor e da coragem. As senhoras de Pernambuco conquistaram os louros do triunfo, não já, diz Jaboatão, pelo brio com que souberam guardar o seu crédito em ponto de honra e honestidade, o valor e constância com que sofreram muitos opróbrios e ainda tormentos, mas sim pelo ânimo varonil com que em repetidas ocasiões se atreveram a manejar as armas, onde já desfaleciam as forças dos mesmos cabos e soldados.
Tejucupapo, Porto Calvo e Serinhaém conservaram ainda a tradição de seus feitos; duram ainda nos ecos daqueles montes o ruído do combate misturado com as aclamações de suas vitórias.
A fome assolava o Recife, onde tremulava o pavilhão neerlandês; e a ilha de Itamaracá, que era como que o celeiro dos holandeses estava exausta, e pois o almirante Lichtart saiu do Recife com doze navios de guerra e tomando em Itamaracá as tropas disponíveis, seguiu com mais quinze navios para Tejucupapo com o desígnio de devastar a povoação de São Lourenço da Malta, vingar antigas derrotas e refazer-se de viveres.
Lichtart atrevido e experimentado procurou iludir a vigilância dos habitantes. Arribou a Maria Farinha, onde demorou-se todo o dia, simulando desembarques, e à noite, suspendendo o ferro, veio com a sua terrível armada surpreender Tejucupapo, e marchar subitamente contra São Lourenço.
Aí o aguardava o bravo major de milícias Agostinho Nunes, num reduto levantado pelos habitantes, e que servia como que guarida a suas famílias; e Mateus Fernandes, destemido mancebo, à frente de trinta companheiros destemidos, emboscados na floresta que bordava a estrada, esperava a ocasião para picar a marcha triunfante.
Os holandeses não se demoraram em apresentar-se às armas do novo Leônidas; caiu morto o sargento-mor de batalha que os capitaneava e um fogo mortífero rompeu de todos os lados.
As dignas e corajosas pernambucanas compreenderam o perigo a que se expuseram seus maridos, seus pais e seus filhos, e pegaram em armas, e correram às ameias do reduto.
O seu exemplo encoraja os peitos varonis. Três vezes investe o inimigo, três vezes tenta a escala, e três vezes é rechaçado pelo denodo das formidáveis guerreiras, que têm por estandarte a imagem do Redentor, que lhes apresenta a mais valerosa dentre elas.
E o combate durou por algumas horas.
Enfim os holandeses, dizimados pela morte, e desacoroçoando do triunfo, tocam a retirada, e fogem espavoridos, conduzindo os seus mortos;... mas a terra selada de seu sangue atesta a galhardia dos nossos compatriotas, e os despojos de que deixam o campo juncado, ornam o troféu da vitória devido ao valor das armas das senhoras brasileiras.
Infelizmente a História esqueceu-se de seus nomes, que deveriam exornar essas páginas tão ricas de reminiscências heróicas; pertencem-lhes, porém, as honras desse dia memorável, são unicamente delas os louros de tão assinalado feito, e o esquecimento de seus nomes concorre para que o brilho do triunfo reflita sobre todo o seu sexo, e constitua por si mesmo um dos maiores brasões de glória das nobres pernambucanas.
Na manhã do dia 7 de dezembro de 1859, S. M. o Imperador levado da curiosidade e do respeito pelas tradições da nossa pátria visitou a povoação de S. Lourenço de Tejucupapo.
Para recordação de sua incursão histórica, fez cortar um pedaço do tronco de uma soberba sucupira, que ali florescia, a fim de conservá-lo em memória da coragem que patentearam naquela localidade as senhoras brasileiras.
Possa essa prova de tão alta e honrosa consideração à sua memória servir de orgulho às suas compatriotas!
Dona Clara Camarão não era uma dessas descendentes dos conquistadores portugueses, que se pudesse vangloriar de um nascimento ilustre, mas uma indiana, gerada nos bosques brasileiros, nascida na taba, ou rústica cabana, levantada por seus pais, sobre a rede de algodão, trançada por sua mão, como indicava a sua tez avermelhada, como o dizia o perfil e os contornos de seu rosto, como o denunciavam seus negros e acanhados olhos, e seus cabelos corredios e espargidos pelos ombros. Ela soube tornarse interessante e recomendável, não só pelas suas maneiras agradáveis, como pela intrepidez e bravura do seu ânimo, merecendo por isso a atenção dos seus compatriotas, e a afeição e dedicação do mais generoso e valente indiano, que produziram as tribos brasileiras.
Ignora-se a que tribo de índios pertencia dona Clara Camarão, em que parte do Brasil viu a luz, e até o seu nome primitivo: embalde se percorrem, a este respeito, as páginas dos historiadores da Guerra Brasílica. É todavia de crer que, como seu marido, descendesse dos carijós, e nascesse em Vila Viçosa, nas abas da serra da Ibiapaba, onde os jesuítas estabeleceram uma aldeia de índios que assaz concorreu para a povoação da província do Ceará.
Ligada pelos laços do consórcio a dom Antônio Filipe Camarão, achava-se dona Clara com ele em Porto Calvo, onde o Conde de Bagnolo acabava de se fortificar, quando João Maurício de Nassau, à testa de um exército numeroso, tentou a conquista desta nascente vila, e tudo se pôs em movimento. Dona Clara Camarão empunhou as armas, incitou com o seu exemplo as senhoras de Porto Calvo, que se desalentavam em gritos de terror, e marchou à sua frente, contra os invasores holandeses. Ações brilhantes encheram as páginas da História nesse dia: mas a sorte das armas foi desfavorável aos nossos, que, podendo ser vencedores, tocaram a retirada, e abandonaram a vila. Ainda assim, Henrique Dias, com seus negros, Camarão com seus índios, e dona Clara com a sua esquadra feminil, escoltaram os habitantes de Porto Calvo, marchando para Madalena, depois para Penedo, e finalmente para Sergipe, donde se passaram à Bahia em 1634.
Tanto esforço e tão admirável coragem mereceram ser cantados pelo jovem poeta nacional José da Natividade Saldanha, que, por mais de uma vez, foi inspirado pelas ações ilustres de sues compatriotas.
Eis aqui os seus versos:
Vibrando a longa espada,
Ao lado marcha do brasíleo esposo
A nobre esposa amada:
No campo dos troianos
Camila Furiosa,
Voando sobre a grimpa da seara,
Mais triunfos à morte não prepara.
Assoberbam o batavo nefando;
O quente sangue espuma;
Qual belga foge, qual brasíleo fere:
Quem evita o mavorte
Na espada feminil encontra a morte;
Ambos assim cobertos de alta glória
Alcançam do holandês clara vitória.
Não foi, porém, só nesta ação que se assinalou dona Clara Camarão, que no dizer de Damião de Fróis Perim, acompanhou seu marido em todas as campanhas, e teve parte em todas as vitórias.
O que admira, é que tendo Fílipe IV, rei de Espanha, que estendia o seu pesado cetro sobre o reino português e suas conquistas, galardoado os serviços de dom Antônio Filipe Camarão, premiando-o com a mercê de cavaleiro do hábito de Cristo, e fazendo-lhe graça do dom, se esquecesse de sua esposa, sendo que foi tão ilustre como ele, ou mais ainda, se lhe levarmos em conta a delicadeza do sexo.
O amor da pátria, um dos mais nobres caracteres do coração humano, pertence a todos os países. Resplandece em todos os tempos, brilha entre todas as classes, e fulgura como partilha de todos os sexos.
Quando os holandeses devastavam as capitanias brasileiras, que demoram ao norte, o vulto heróico e saliente do grande Matias de Albuquerque, chamou a atenção dos intrépidos invasores para a nascente povoação de Vila Formosa, que se eleva sobre a margem esquerda do rio Serinhaém, e que se orgulhava com o seu outeiro, que tinha por torreada coroa um diadema religioso, a sua rústica mas bela e vistosa capelinha, que alveja destacando-se do verde do seu arvoredo e se deixa ver de grande distância.
Pequena era a força do nosso general, e o sargento-mor de batalha Andrezon o veio desalojar daquela posição à frente de oitocentos homens. O inimigo acometeu o ponto guardado por vários capitães, que teriam nas suas cinco companhias uns cento e trinta soldados, inclusive alguns índios. Não podendo conservar o posto, buscaram os nossos o rio Serinhaém, e aí carregou sobre eles o inimigo, porém, Matias de Albuquerque com seu irmão Duarte de Albuquerque e uma centena de defensores, desconcertou o inimigo em seu triunfo e o obrigou a retirar-se, com os que já se retiravam. Conhecendo depois o inimigo que era vergonhosa covardia ceder ante tão pequeno número, voltou de novo e de novo empenhou-se o combate, não menos duvidoso e mortífero. Durava já sete horas e o campo ia se juncando de mortos e feridos, quando o inimigo prudente e cauteloso começou a retirar-se...
Entre os que perderam a vida defendendo a pátria, contou-se Estêvão Velho; era apenas um soldado, muito jovem ainda...
A notícia de sua morte chegou rapidamente aos ouvidos de sua mãe D. Maria de Sousa, uma das mais nobres senhoras de Pernambuco, dotada de espírito varonil, talhada pelo molde das antigas espartanas, e que soube vencer a aflição natural, sopitar os afetos maternais, e dar o exemplo da maior heroicidade verificada pelo amor da pátria.
Era imensa a perda que acabava de sofrer aquele coração: além de Estêvão Velho, tinha já perdido um genro e dois filhos; mas lembrou-se que possuía ainda dois, um de 13 e outro de 14 anos; chamou-os e lhes dirigiu estas sublimes palavras cheias de nobreza e heroicidade:
“A Estêvão tiraram hoje a vida os holandeses, e posto que, filhos meus, perdi já três e um genro, antes vos quero persuadir, que desviar da obrigação precisa aos homens honrados, numa guerra onde tanto servem a Deus com a el-rei, e não menos a pátria; pelo que cingi logo a espada; e a triste memória do dia, em que a pondes na cinta, esquecendo-vos para a dor, só vos lembre para a vingança, matando ou sendo mortos tão esforçadamente, que não degenereis desta mãe e daqueles irmãos!”
“Com admirável constância”, diz o historiador da guerra brasílica, Brito Freire, “fazendo-se logar entre as insignes matronas da nação portuguesa, que em todos os séculos celebrou tanto a fama, aprenderam desta mulher a ser valorosos os homens.”
“Este exemplo de patriotismo”, escreve o conselheiro Baltasar da Silva nas suas Notas biográficas, “é digno de eterna memória, porque elevou seu nome tão gloriosamente nos fastos brasílicos, preferindo a salvação da pátria ao amor filial.”
“Procedimento sem dúvida”, acrescenta monsenhor Pizarro nas suas Memórias históricas, “mais ilustre que o da celebrada matrona lacedemônia, de quem se conta, que ciente da morte de um filho na batalha, pelejando pela pátria, mandou outro substituir o lugar. Ejus locum expleat frater (Irá seu irmão ocupar o seu lugar)!”
Os filhos de tão generosa mãe não desmentiram de seu ânimo varonil nem de sua constância patriótica; ambos eles se mostraram dignos dela, de seus valorosos irmão e de sua pátria, e souberam nobre e esforçadamente cumprir a recomendação, que ela lhes fez naquela hora tão solene e de tão santa e heróica abnegação.
Nasceu dona Rosa Maria de Siqueira na cidade de S. Paulo, no ano de 1690. Seus ricos e nobres pais, Francisco Luís Castelo Branco e dona Isabel da Costa e Siqueira, curaram de lhe dar uma não medíocre educação. Ligada por laços conjugais ao desembargador Antônio da Cunha Souto Maior, cavaleiro professo na ordem de Cristo, passou à cidade da Bahia, em companhia de seu consorte, e ali, em princípios de dezembro de 1713, embarcou em a nau Nossa Senhora do Carmo e Santo Elias com destino a Lisboa.
Montava essa nau 28 peças; ia carregada de açúcar, tabaco e coirama, e levava a seu bordo 119 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Tendo feito boa viagem, achava-se na madrugada de 20 de março de 1714 sobre a costa de Lisboa, 15 léguas ao mar das Berlengas, quando ao largo se avistaram três velas. Eram corsários argelinos, que então andavam naqueles mares, aprisionando as naus cristãs e cativando os que nelas encontravam. A capitânia montava 52 peças, a almirante 44, e a fiscal 36, perfazendo ao todo 132 bocas de fogo, e sendo numerosas as tripulações.
Reconhecidas as velas, soou o rebate a bordo da nau cristã, e para logo pediu o capitão Gaspar dos Santos Negreiros a Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que regressava ao reino português depois de haver sido governador de Minas, que ocupasse o seu posto, e ele combateria sob suas ordens. A tão generosa oferta se recusou Antônio de Albuquerque, alegando que não tirava a glória do vencimento, a quem lhe dava tão ilustre princípio com aquela ação, e ainda mais, que da milícia do mar, não tinha a necessária experiência; porém, que estava pronto a obedecer-lhe e a pelejar em serviço do rei e da religião. Aceitou o capitão aquela modesta escusa, e dispôs tudo para o combate.
Eram 7 horas da manhã, quando retumbaram os mares com os trovões da guerra, e o ar se toldou de negro fumo. Começado o combate, começou também dona Rosa Maria de Siqueira a assinalar-se por suas ações, como se houvera soado a hora do seu glorioso renome. Acesa de ânimo, cheia de coragem, quis logo compartir a glória dos combatentes na defesa de tantas vidas; e era para ver-se como a ilustre paulista animava os guerreiros no meio de tão encarniçado conflito já ministrando armas a uns, já levando pólvora a outros, e sempre repetindo; “Viva a fé de Cristo!”
Alguns judeus, que iam presos e remetidos ao tribunal do Santo Ofício, desejando o triunfo dos argelinos, preferindo o peso dos grilhões do cativeiro aos tormentos infernais dos cárceres da Inquisição, e ao fogo das suas horrorosas fogueiras, acusavam o capitão de temerário e de imprudente, desanimando assim os que combatiam pela própria conservação, honra e liberdade; e diziam que não era nem valor, nem acerto, aceitar batalha com desigual partido; que a defesa passava a temeridade, quando se não podia duvidar do vencimento; e que melhor era entregar a nau antes do estrago, que depois da vitória, porque os mouros castigariam em todos a culpa de um só, não dando quartel; que o capitão pelejava antes pela sua fazenda embarcada em a nau, do que pela liberdade, honra da nação, e defesa da fé. Dona Rosa, repreendendo-os com energia, a todos persuadiu, que era a morte em tal caso preferível à capitulação e cativeiro de tão bárbara gente, segurou os ânimos dos combatentes, tomados de entusiasmo e admiração, por verem que uma senhora sabia pôr em prática o que ensinava por suas palavras. Ela deixou as roupas do seu sexo, trajou à militar, e, confundida com eles, pelejou a batalha, afrontou os perigos, sem que o espetáculo terrível e sanguinoso de um tal conflito lhe quebrasse o ânimo.
Amiudadas eram as descargas de artilharia e mosquetaria das naus infiéis: nuvens de projetis choviam de momento em momento sobre o convés, e aos repetidos gritos das tripulações inimigas de “Amaina! Amaina!” respondia a corajosa guerreira paulistana com altos brandos de “Viva a fé de Cristo!” Levando uma bala a cabeça do condestável, que dirigia uma peça, e na ocasião em que ia fazê-la disparar, lançou-lhe D. Rosa o fogo, ficando no mesmo lugar até que um artilheiro a viesse substituir.
A batalha ferida ao despontar do sol durou até ao seu ocaso, e só foi suspensa à chegada da noite. Os nossos, aproveitando o ensejo favorável, entregaram-se a atos de piedade, amortalhando os mortos, curando os feridos e reparando também a nau do melhor modo possível, e porque se houvesse acabado o cartuxame, aprontou dona Rosa, ajudada por duas negras e duas velhas índias, que pouco trabalhavam, para mais de trezentos cartuchos, certa de que no dia seguinte maior seria o combate e coroado da vitória.
Aos primeiros raios do sol, surgindo sobre a superfície das águas do Oceano, travou-se de novo o conflito com maior valor, com mais intrepidez da parte dos cristãos. Cinco vezes os infiéis abordaram a nau, e cinco vezes foram rechaçados, mortos ou arrojados ao mar. Dona Rosa, como uma verdadeira heroína, apareceu em todo esse dia de horrível combate, pelejando briosamente, acoroçoando os guerreiros com o brado de “Viva a fé de Cristo! Ora ajudando os marinheiros a arrear, a recompor os cabos, no manejo marítimo, ora cuidando dos feridos, e sempre olhada com admiração e respeito.
Uma granada argelina, arrebentando junto da vela grande, a incendiou; prontamente despiram os combatentes as suas roupas para com elas abafar o incêndio; dona Rosa os imitou tanto, quanto lhe permitiu o recato de seu sexo, e a tão acertado remédio se deve não ter lavrado o fogo. Os mouros, supondo ia a nau ateada, trabalharam para rendê-la, mas eis que pelos esforços e atividade varonil de uma mulher, a nau mareia, graças à nova vela, evitando assim nova adornagem. O inimigo desce de seu intento, dispara a última carga de artilharia e mosquetaria, e recua já noite fechada.
Dona Rosa desenvolveu então a mesma atividade, que mostrara na noite precedente; prestou-se a todo o serviço, indispensável a novo combate. No dia seguinte não ousaram os corsários aproximar-se; embalde mandou o capitão marcar a nau, esperando novo conflito; o vento refrescou e os argelinos sumiram-se no horizonte. Caíram então os cristãos de joelhos, e com os olhos e os braços alçados para o céu, deram graças ao Senhor por esta vitória.
A nau demandou a barra de Lisboa, e em 22 de março de 1714 fundeou nas águas do Tejo.
Dona Rosa tornou-se por muito tempo o alvo da curiosidade dos habitantes da metrópole portuguesa; todos a queriam ver, e todos a louvaram pelo seu nobre valor, pela sua rara intrepidez. A coragem da distinta brasileira deu assunto à conversação, e fez com que seu nome viesse à posteridade, alcançando um lugar nas páginas da História.
Nascida nos últimos anos do décimo sétimo século, dotada de índole extremamente belicosa, e coração varonil, contava dona Maria Úrsula de Abreu Lencastre, apenas dezoito anos de idade, quando, ardendo de desejo de assinalar-se nos campos da guerra, abandonou a casa paterna, fugiu aos braços de seu velho pai, João de Abreu e Oliveira, e embarcou-se para Lisboa, onde, no dia 1º de setembro de 1700, assentando praça de soldado, sob o nome de Baltasar do Coito Cardoso, passou ao Estado da Índia.
Foi nessa celebrada parte do mundo, teatro dos brilhantes feitos de tantos cabos portugueses, que vasta carreira de glória se abriu ao jovem Baltasar do Coito Cardoso. Longo seria enumerar as proezas que obrou, os combates em que se achou, e o modo como que neles se soube haver; bom será, porém, apontar aqui, que no assalto à fortaleza Amboíno, foi um dos soldados que primeiro ousaram entrá-la, e que, havendo-se tornado digno de galardão pelo ânimo e valor, que mostrara na tomada das ilhas Corjuém, e Panelém, que o vice-rei Caetano de Melo e Castro ganhou a Fondom Saunto Branscoló Sardersai, das terras de Cudale, foi nomeado cabo do baluarte da Madre de Deus, na fortaleza de Chaul, onde prestou relevantes serviços.
Em 12 de maio de 1714 obteve baixa do seu posto, e, trocando a vida guerreira pela pacífica, esposou o valente Afonso Teixeira Arrais de Melo, que, anos antes, havia sido governador do forte de São João Batista, na ilha de Goa.
Tendo servido o Estado, pelo espaço de quase quatorze anos, que apenas alguns meses lhe faltaram para isso, assinalando-se pelo seu valor, não quis o rei dom João V deixar de remunerar os importantes serviços, prestados por uma mulher, na carreira das armas, e por despacho de 8 de março de 1718, lhe fez mercê do paço de Panguim, pelo tempo de seis anos, e de um xerafim por dia, pago na alfândega de Goa, com a faculdade de testar em seus descendentes, e, na falta destes, em quem bem lhe parecesse. Ali expirou dona Maria Úrsula de Abreu Lencastre, coberta das bênçãos de seus contemporâneos, rodeada de homenagens; conservando em toda a vida, como que para lembrança de seus feitos brilhantes, tanto o trajo varonil, como a espada, testemunha de seu heroísmo.