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Brasileiras celebres (1862)/III: Religião e vocação

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JOSEFA DE SÃO JOSÉ — A BEATA JOANA DE GUSMÃO — A IRMÃ GERMANA

Bela e sublime se eleva na capital do império cisatlântico a serra tijucana, ramificação digna da cordilheira dos Órgãos, que contorna parte do magnífico golfo de Niterói, de que se mostravam tão zelosos os antigos tamoios, seus primitivos habitantes. É como que o fundo escuro do quadro desse painel deslumbrante em que se desenha a rainha da América meridional, com a sua coroa mural.

Ah! E que de transformações em menos de um século! Já pouco resta do pitoresco que caracterizava esse belo vale do desterro! Ouve-se apenas a sineta, que nossos pais ouviam, derramando sobre as asas do vento os seus sons fúnebres e melancólicos, que se perdem nos extremos dessa nova e nascente Babilônia. Lá sobre a montanha está o rústico campanário, e o santo gineceu das filhas de Santa Teresa de Jesus, as carmelitas descalças. No seu recinto, em leito de modéstia argila, descansa o invicto e grande capitão, que elevou os arcos triunfantes dessas águas, que murmuram junto da sua sepultura, e a quem a vitória coroou de seus louros nas campinas de Uruguai, e a seu lado, em campa rasa, dorme o sono dos mortos a fundadora daquele asilo, a madre Jacinta de São José.

No começo do século décimo oitavo viviam no Rio de Janeiro e eram venerados pela sua religiosidade José Rodrigues Aires e Maria Lemos Pereira. Unidos pelos laços matrimoniais, abençoou o céu o seu consórcio dando-lhes dois filhos e duas filhas.

Os felizes pais assaz se esmeraram na educação dos seus genitores, aos quais o Senhor concedeu a graça da perseverança no caminho da vida por este vale de espinhos e lágrimas; mas a todos eles se avantajou Jacinta, que tão célebre tinha de se tornar pela fundação de uma nova comunidade, como pelas contrariedades com que teve de lutar durante os longos anos de sua existência.

Ela nasceu no dia 15 de outubro de 1715 e desde os tenros anos que ganhou certa superioridade sobre seus irmãos pelos muitos excelentes dotes naturais, e conquistou a benevolência e estima de seus parentes e das pessoas com quem falava. Fez-se notável pela sua presença, amável pela sua bondade querida pela sua discrição e agrado, e admirada pelas suas virtudes. Unia a prudência à fortaleza, a formosura à modéstia e à humildade sem afetação. Era devota, não por ostentação, mas por queda natural.

Cresceu-lhe com a idade o fervor de votar-se a Deus; cedo compreendeu José Rodrigues Aires as piedosas inclinações que patenteava a sua filha, e longe de contrariá-la condescendeu com as suas súplicas e lhe fez presente de uns cilícios.

Animada pela condescendência paterna, entregou-se de todo ao exercício da penitência. Viram-na desde então como o anjo da oração embeber-se pela noite adiante nas práticas religiosas, e muitas vezes a surpreenderam a se martirizar com as disciplinas, que ainda hoje se conservam em sua cela, no seu convento. Corria depois a via sacra, coroada de espinhos e curvada ao peso da cruz que levava aos ombros, parte da qual ainda subsiste.

Tão fervorosos foram os desejos de ser religiosa, que em vão se opôs o amor maternal a tão decidida vocação. A morte de seu pai, que favoneava os seus favoritos projetos religiosos, veio ainda mais contrariá-la em seus desígnios; achou porém em tão grande calamidade uma amiga protetora em sua irmã Francisca para consolá-la em suas atribulações.

A mãe entregue às afeições do amor maternal, se inquietava a todo instante com o retiro de sua filha; e até se persuadia que ela aborrecia a sua companhia. Anelava que fosse santa, mas lhe desagradavam as penitências, que não lhe eram ocultas; alegrava-se com vê-la praticar alguns atos de virtude, cheios de piedade, mas lhe insinuava, mas lhe pedia que se não mortificasse. Muitas vezes ia surpreendê-la, e então lhe arrancava das mãos ensangüentadas os instrumentos da penitência! Outras vezes pagava a pobres mulheres, que viviam de esmolas, para lhe contarem histórias durante a noite, a fim de lhe dissipar a melancolia e desviá-la de seus exercícios religiosos. Então a contrariada menina, sem proferir a menor palavra de descontentamento, sofria com paciência; e tornava-se imóvel no seu leito para ver se a deixavam na suposição de que dormia.

Tinha ela adquirido a resignação nas graves enfermidades por que passara desde a idade de onze anos. Caiu uma vez tão gravemente enferma, que recebeu os sacramentos da extrema-unção. Sem esperança de vida, tocava os paroxismos da morte; deram-na por desfalecida; cuidaram de seu enterro, mas sua irmã, que como ela tinha o coração abrasado da fé, beijou-a, revocando-a a existência; chamou-a como que da eternidade, e Jacinta abriu os olhos cheios de cera da vela benta, que tinha entre as mãos geladas, abriu-os e fitou-os como que ressuscitada. Sofreu ainda outras muitas enfermidades, cujas curas foram o seu martírio. Ficava muitas vezes em estado cataléptico, sem que pudesse dizer o que tinha; derramava então humores pútridos pelas narinas, boca e ouvidos, que a deixavam com todos os sinais de morta.

Tais sofrimentos mais e mais acendiam em sua alma a fé, cuja luz brilhava majestosamente sobre a sua resignação como uma auréola. Inflamava-se-lhe o espírito nos fervorosos desejos de ser freira professa e de votar-se ao Senhor como esposa do Céu. Daí veio o entregar-se com sua irmã à prática da vida religiosa, com determinada hora de oração e penitência, freqüência de sacramentos, silêncio e retiro, sem que faltasse aos deveres de respeito e obediência para com sua mãe, de circunspeção e gravidade para com as pessoas de fora, ocupando o mais do tempo nos cuidados domésticos.

Ao fervor religioso das duas meninas reuniu-se a devoção de seu irmão José, e desde então se entregaram livremente aos transportes do amor divinal. Já por esse tempo D. Maria Lemos Pereira tinha passado a segundas núpcias, e seu novo estado concorreu para que se afrouxassem os rigores de sua oposição; veio então Jacinta a adquirir, graças à intervenção de seu tio Manuel Pereira Ramos, a chácara denominada da Bica, contígua ao monte da capela da Senhora do Desterro, e dela tomou posse no mês de março de 1742, e na madrugada do dia 27 do mesmo mês se retirou para ela levando consigo a imagem do Menino Deus. Francisca acompanhou-a ao seu retiro, e desde esse dia disseram adeus aos lares paternos e a tudo quanto as prendia ao mundo, na intenção de não voltar mais a seus mentirosos encantos e seduções enganadoras.

Naquela casa arruinada, pequena, e que se fazia em pedaços, colocou aquela imagem que levada consigo, e aí recebeu depois a visita de seu padrasto André Gonçalves dos Santos, comissário geral da artilharia, e de seus irmão Sebastião Rodrigues Aires e José Gonçalves.

Retiradas as dias irmãs do tumulto da cidade e entregues a Deus pela oração e penitência, deixaram os apelidos de sua casa para ficarem sob a proteção de Jesus, Maria e José, e tomaram os nomes de Jacinta de S. José e Francisca de Jesus e Maria. Unidas pelos mesmos sentimentos religiosos, esforçaram-se ambas em levantar uma capela consagrada ao Menino Deus, e com o produto da venda das jóias de Jacinta se deu princípio às obras. Ali viveram enquanto duraram os trabalhos, como que emparedadas, abrindo apenas o postigo de uma porta para trancarem do que se fazia mister.

“Difundiu-se logo”, diz o historiador Baltasar da Silva Lisboa, “difundiu-se logo por toda a cidade o suave aroma das virtudes daquelas servas de Deus, que causou tão agradável sensação ao governador Gomes Freire de Andrade, o exemplo dos bons governadores, que se lhe acendeu no espírito eficazmente proteger os seus pios desígnios, ajudando a levantar a capela, dando-lhes uma mesada, que José Gonçalves ia receber do brigadeiro Alpoim. Suscitaram-se, como é de costume, contradições e dificuldades na recepção das esmolas, que se fez necessário ir o mesmo José Gonçalves recebê-las, dizendo-se-lhe que o general as havia de ajudar e confiasse em Deus, que ele pagaria por junto. Não pararam as obras da capela, e o bispo dom frei João da Cruz deu a autorização conveniente, parecendo milagroso o adiantamento, e tal a atividade de Jacinta na sua conclusão, que até com o próprio trabalho o aumentava, indo nas tardes frescas e nas noites de luar com sua irmã carregar pedra em companhia do referido José Gonçalves, este em carrinho de mão, seus escravos à cabeça, e Jacinta e Francisca em um saco, conforme podiam.”

Concluída a capela no dia 31 de dezembro de 1743, foi benta segundo o rito romano, pelo cônego doutoral Henrique Moreira de Carvalho, com autorização do bispo. Rezou missa e ali receberam elas o pão dos católicos no dia 6 de janeiro do ano seguinte, vestidas de capas e saias pardas, com um véu preto pela cabeça, celebrando a primeira missa o padre Manuel Francisco, religioso carmelita. Levantou-se um postigo da parte do evangelho sobre o presbitério da capela, para servir de confessionário, e como ouviam a missa do coro, desciam na ocasião de comungar.

O bispo doutoral dom Frei João da Cruz aí disse missa por duas vezes antes de partir para Lisboa; os adornos consistiam unicamente na profusão das flores. Satisfeito de tudo quanto vira, lhes fez presente de duas imagens santas, que foram depois transladadas para o convento, que se edificou no monte chamado então do Desterro e hoje de Santa Teresa, onde ainda existem.

Aí permaneceram as primitivas flores do Carmelo brasílico com grande edificação, privadas de toda comunicação com as pessoas do século, entregando-se ao trabalho braçal, cultivando a sua horta e o seu jardim, não obstante os padecimentos, que sofria Jacinta, apenas compensados por êxtases, em que se diz que Deus lhe tornara fácil a compreensão dos mais sagrados mistérios de sua divindade.

Passarei em silêncio muitos milagres que fez, os êxtases que teve, as lutas que sustentara com o demônio, que por vezes a martirizaram, as visões, essas celestes miragens imaginárias, e tudo isso enfim que gozara, e que seu confessor explicava escudado nas erudições que possuía dos legendários, para somente me ocupar com a sua vida real e as suas boas obras. Todas as suas revelações foram escritas pelo seu confessor Fr. Manuel de Jesus e pelo padre José Gonçalves, e acham-se no arquivo de seu convento e lá podem crédulos e incrédulos proceder a minuciosos exames.

Em setembro de 1745 enfermou Fr. Manuel de Jesus e veio a falecer em dezembro, deixando Jacinta e sua irmã recomendadas ao padre mestre Antônio Nunes, ao cônego doutoral Henrique Moreira de Carvalho e ao vigário da Candelária o Dr. Inácio Manuel da Costa Mascarenhas.

Pouco durou o padre Nunes no exercício de suas funções, gloriando-se da especial consolação de seu espírito pela direção das duas irmãs, que observavam fielmente o seu recolhimento e exercitavam constantemente a virtude.

Em 15 de março de 1748 veio-se-lhes reunir Rosa de Jesus Maria e depois outras muitas, e todas elas serviram de consolação a Jacinta então dolorosamente ferida no mais íntimo do coração com a espada do anjo da morte, que cortou a vida de sua irmã, a sua companheira nos exercícios religiosos e sua amiga nas atribulações de seus dias de contrariedade.

“A sua vida”, diz o conselheiro Baltasar da Silva Lisboa, “foi santificada pela pureza de sua consciência, bondade de coração, mortificação sem afeto, recato sem fingimento, docilidade e humildade sem ostentação, sempre obediente, caritativa e dada à oração e exercícios espirituais sem interrupção; diligente e exata em seus deveres sobre a voz da obediência, com resignação; assídua ao trabalho, não obstante as freqüentes enfermidades.”

“Agravando-se a sua enfermidade”, acrescenta o padre-mestre Antônio Nunes, “sofria Francisca tudo com tal paciência, que nenhum gemido se lhe ouvia das sufocações de sua fatal enfermidade. Recebendo o santo viático foi desamparada dos facultativos, e persuadidos de que não havia que esperar socorro da medicina, lhe anunciaram a proximidade da morte, e disse então: “Seja o Senhor bendito! Perdoe-me Ele as minhas culpas pela sua infinita misericórdia e seja quando ele muito bem quiser.”

Morreu exatamente como vivera, em 13 de julho de 1748. Jacinta amortalhou-a com suas próprias mãos, admirando-se que tendo o rosto denegrido e como penalizado se tornasse natural, com os olhos claros e o corpo flexível.

Tão bela era no seu rosto a morte!!

Basílio da Gama.

Fazia Jacinta com que suas irmãs observassem os exercícios da ordem reformada de Santa de Teresa1e os da comunidade, vestidas de saias de droguete castor pardo, cobertas com um véu de fumo, fechado por diante, que lhes servia de touca, até que o bispo D. Frei Antônio do Desterro lhes permitiu vestirem-se de hábito.

Todos os anos vinham novas irmãs aumentar a sua milícia, compartilhar de sua missão. Já na chácara da Bica se praticavam as regras de Santa Teresa; as oficinas achavam-se repartidas com comodidade e decência; o coro ocupava a primeira sala; o mais da casa dividia-se em celas, refeitórios, colocutórios e outras dependências. Aí lhes dava o padre José Gomes lições de latim para que pudessem rezar o ofício divino pelos breviários.

Trabalhava a santa donzela somente para Deus, no seu mais ardente desejo de lhe consagrar perpétuo culto, esperando somente obter por meio do Senhor o êxito de seus votos, e quando lhe perguntavam quem a havia de ajudar naquele tão santo designo, respondia que o governador, o grande conde de Bobadela.

Certa de que ele concorreria com esmolas para as obras da capela, o berço da religião de Santa Teresa nesta cidade, teve oportuna ocasião de lhe falar quando lhe pedia uma entrevista, que o deixou sensibilizado, arrancando-lhe lágrimas. Prometeu-lhe o conde coadjuvá-la, dizendo que sempre tinha desejado concorrer para aquelas obras, e que era de seu intento fazer-lhe um convento.

Não faltou o bom e pio governador à sua promessa, e teve a bondade de convidar o bispo para uma entrevista, e ali determinarem o lugar para a criação do edifício. Prestando-se o prelado, ficaram ambos extasiados da localidade. Sentados humildemente como peregrinos que descansavam, sobre os degraus da escada da entrada, levaram os olhos por essas cenas, que se desenrolavam ante eles. Que vista imensa e bela abrangendo todos os pontos da nossa magnífica baía, as praias que a bordam, os montes que a contornam, ainda revestidos de suas florestas, e o infinito que se abre neste horizonte ensanefado pelas nuvens coloridas dos raios do sol! E toda essa magnificente pompa da natureza contrastava com a pobreza com que ali viviam aquelas santas mulheres.

Percorreram depois com o engenheiro Alpoim todo o velho edifício e trataram da edificação de outro, ficando o bispo encarregado de obter do rei e do papa as licenças necessárias, e o conde de cuidar de seu material e construção e o engenheiro de planejar e orçar a obra.

Nesse dia concedeu o bispo que as recolhidas se vestissem com hábito de estamenha parda, com capas de baeta branca, guardando as instituições de Santa Teresa, e ficaram então consideradas carmelitas descalças.

Juntavam-se os materiais para a nova obra, quando a viagem do governador à capitania das Minas Gerais, trouxe inúmeros desgostos e amarguras a Jacinta, que via seus projetos contrariados pela divergência suscitada pelo bispo, o qual preferia contra seu voto a regra de Santa Clara, que observavam as freiras de Lisboa, e com mais razão, pois era o traje mais adequado ao clima úmido e quente, como até hoje o tem demonstrado a prática, mas inutilmente.

Com a volta do governador deu-se princípio à obra, benzendo o bispo no dia 24 de junho 1750 a primeira pedra, com assistência do mesmo governador, senado da câmara e principais do Rio de Janeiro. Para maior solenidade houve grande parada, que deu as salvas do estilo.

As obras progrediam rapidamente sob as vistas paternais do governo, que também erguia os arcos triunfais do arqueduto da Carioca, e já no dia 24 de julho de 1751 se instalava Jacinta com as suas companheiras na capela, enquanto se não concluía o resto do edifício.

Chegara por este tempo o breve do sumo pontífice, dado em Roma aos 5 de janeiro de 1750. Mandava-se por ele que os religiosos professassem a regra de Santa Clara da mais estrita observância; a comissão encarregada de seu exame julgou contra a sua aceitação; e como o governador simpatizava com as intenções dos devotos, se encarregou de mandar a Roma nova súplica; porém a glória das batalhas o chamou aos campos do Sul. Lá o esperava o troféu laureado da vitória. O bispo pertinaz em sua opinião se opôs às súplicas humildes de Jacinta, que instava para que professassem as regras e constituições de Santa Teresa de Jesus.

Nas cartas que por esta ocasião dirigiu ao ilustrado conde de Bobadela, derramou os pensamentos de seu pressentimento e cuidado. Até as pessoas que lhe apatrocinavam a vocação vieram a sofrer, sendo uma destas o padre Antônio Nunes, que esteve dois anos preso. Enfim o general partiu para as missões do Uruguai, onde a sua espada só tinha de ceifar os louros da vitória, deixando à tuba de Basílio da Gama a recomendação de seus feitos.

Jacinta, combalida de desgostos, tomou a heróica resolução de atravessar o oceano, e ir a Lisboa alcançar as licenças necessárias. No dia 14 de novembro de 1753, acompanhada de seu irmão o padre Sebastião Rodrigues Aires, do padre Antônio Rodrigues Aires e do padre Antônio Nunes, se embarcou para além-mar. Acompanhou-o até a bordo o seu tio Manuel Pereira Ramos, e dele se despediu.

— Adeus, Jacinta, disse ele, talvez não torne mais a ver-te, porque estou velho.

— Ainda o acharei vivo, respondeu ela.

Antes de se embarcar fez ver às suas filhas urgente precisão de sua viagem, animando-as e fortalecendo-as com seus conselhos.

Esta despedida casou-lhe profunda impressão; elas guardaram fielmente as instruções que lhes deixou por escrito, e jamais falaram com pessoa alguma, durante a sua ausência, sem mesmo excetuarem seus pais.

A nau seguiu viagem para Lisboa com escala pela Bahia sob o comando do capitão-de-mar-e-guerra Pedro Luís Olival. Na Bahia recebeu a seu bordo o marquês de Lavradio, que acolheu a madre Jacinta com aquela bondade característica de sua família.

Nada sofreu Jacinta durante a travessia; desembarcou na capital do império lusitano, sob a proteção de dona Ana de Lorena, avó da princesa que depois se chamou dona Maria I. Por sua intervenção se apresentou madre Jacinta em audiência a el-rei dom José I, já informado da sua pessoa e pretensão. El-rei lhe concedeu por alvará de 27 de setembro de 1755 a necessária licença, e mandou impetrar do sumo pontífice a bula da declaração da regra de Santa Teresa, a qual foi dada em Roma no ano 16 do prontificado de Benedito XIV em 22 de dezembro de 1755.

Triunfou enfim a religiosa fluminense da bem entendida conTrariedade do bispo, e dispôs-se a voltar à pátria. Ao despedir-se, o rei lhe disse:

— Vá, madre Jacinta, vá aliviar as saudades de suas filhas e nos encomende a Deus!

Partiu de Lisboa cheia de consolação e aqui aportou no dia 17 de abril de 1756, onde a veio abraçar seu tio o capitão Manuel Pereira Ramos.

— Aqui estou ainda vivo, exclamou ele, e agora Jacinta?

— Cuide em preparar-se, lhe voltou ela, que está breve! O capitão viveu apenas seis meses.

Apressou-se a madre Jacinta em mandar cumprimentar o bispo, e participar-lhe a concessão do breve e beneplácito régio, e encontrou-o muito enfermo e já sem poder sair do paço episcopal.

Prosseguiam as obras do convento com atividade e esperava-se a sua conclusão para ter lugar à profissão das freiras, e completarem-se os votos de Jacinta; mas o ano de 1763 começou para ela com aspecto negro, melancólico e carregado!...

No 1º de janeiro a morte veio surpreender o ilustre conde, seu protetor. Jacinta e suas companheiras receberam o seu féretro à porta da sua igreja, e o depositaram no cruzeiro da parte do Evangelho do mesmo convento. Ao expirar se lhe ouviram estas palavras relativamente àquelas freiras.

— A casa de Bobadela fica feita, mas as minhas filhas ficam ainda sem casa!

Como são incompreensíveis os decretos da providência! Jacinta de S. José não viu também, como o conde de Bobadela, o fim de sua obra, o complemento de sua missão. Estava ela pronta a professar com as suas irmãs a regra de Santa Teresa, como tanto anelava, faltando unicamente a aprovação do patrimônio, quando em 2 de outubro de 1768 dirigiu eterno adeus a suas companheiras, com os olhos banhados de lágrimas!

— Filhas, disse ela, bem sabeis quanto tenho trabalhado por vós para que o convento se concluísse e professasses como filhas de Santa Teresa; tudo está pronto e corrente, mas por altos destinos da Providência não ficou completo como era de meu desejo. Embaraçou-o o Senhor bispo; é vontade de Deus, e que ela seja feita: mas vou certa de que a obra se há se completar depois de meus dias. Vivei em boa harmonia, sempre em observância regular.

Conservou na morte aquela serenidade angelical que lhe notavam no rosto. Grande concurso de povo acudiu à grade para vê-la, e necessário foi fechar as portas para impedir qualquer indecência, e à noite se lhe deu sepultura.

Aprovou o bispo a escolha da madre Maria da Encarnação para sua sucessora, e veio visitá-la ao convento; mas só ao seu sucessor coube dar profissão àquelas criaturas, perpetuando ns religiosas o espírito de sua santa fundadora, modelo da vida religiosa.

A elevação da rainha dona Maria I ao trono em 1777 trouxe àquela instituição a aurora da felicidade, pois que pelo decreto de 11 de outubro desse ano confirmou a licença e graça d'el-rei seu pai e permitiu legalmente o domínio de tudo quanto se tivesse adquirido.

O distinto bispo dom José Joaquim Justiniano de Mascarenhas Castelo Branco, que tanto honrou a mitra e o báculo da diocese fluminense, lhe deu a tão desejada clausura canônica em 16 de junho de 1780, pontificando no seguinte dia na igreja do novo convento, vestindo-as canonicamente de seus hábitos e lhes dando o noviciado.

Elas professaram em 23 de janeiro de 1780, e terminando o primeiro triênio elegeram as suas preladas segundo as leis canônicas. Três dias antes daquela solenidade permitiu o bispo que se abrissem as portas para que o povo visse as oficinas do convento. Saíram depois as religiosas em forma de procissão, desde o monte do Desterro até o convento da Conceição da Ajuda, demorando-se aí algumas horas em recreação com as freiras deste convento.

Estavam elas, porém, submersas na mais profunda humildade, coradas de pejo, prosseguindo por obediência do bispo por entre alas do povo, sem que soubessem por onde pisavam, com os olhos no chão sem que soubessem o que viam: cheias de encantadora modéstia, cobertas de véus escuros que excitavam viva sensibilidade e devoção, e provocavam lágrimas.

Hoje em dia é outra a missão da mulher que vota-se ao Senhor, ou como disse o imperador na sua viagem às províncias do Norte: “Não é só rezando que serve-se a Deus!” Arrefeceu a admiração que ela excitava nos séculos passados quando tomava o véu na sua profissão e fazia o tremendo voto das abnegações das coisas terrestres.

A civilização pede uma missão mais útil, mais condigna das instituições do cristianismo. Ela exige que a par da oração se mostre a realidade das obras de misericórdia recomendadas pela Igreja de Jesus Cristo; que a mulher, anjo sublime do cristianismo, seja enfermeira, já à cabeceira dos enfermos, já no campo da batalha socorrendo os feridos e moribundos, já nos dias de atribulação amparando os desgraçados que caem sem leito; e que, sem perder o seu instinto maternal, torne-se mãe dos órfãos desvalidos que não tiveram um berço no regaço materno, e que cure tanto de sua educação, como de sua existência malfadada.

E contudo curvemo-nos diante do sepulcro da fundadora do convento das carmelitas descalças do Rio de Janeiro, da Madre Jacinta de São José, e de suas virtuosas companheiras. Deixem-nas dormir pacificamente o sono dos finados, certas de que não serão despertadas pela voz sacrílega do septismo.


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Àquela família tão célebre, que deu ao mundo o distinto diplomata e abalizado estadista Alexandre de Gusmão e o famoso aeronauta Bartolomeu Lourenço de Gusmão; que deu à pátria os oradores que seguiram no púlpito a plêiade dos brilhantes pregadores do tempo da colônia, tais como o jesuíta Inácio Rodrigues e o carmelita João Álvares de Santa Maria, pertence Joana de Gusmão, cujas virtudes cristãs lhe granjearam o cognome de Mulher Santa.

Como seus ilustres irmãos, ela nasceu na cidade de Santos, que era por esse tempo ainda vila. Corria então o ano de 1688, e a religião sorriu-lhe ainda no berço. Seus pais a educaram nas máximas da religião católica, dando exemplo não interrompido a sublime prática das virtudes cristãs. Esposou-a um ilustre fazendeiro que, segundo a tradição, gozava de honras militares.

Durante as sua união conjugal jamais falou D. Joana de Gusmão aos deveres que lhe impunha o seu estado, e ainda nas cousas mais simples desta vida oferecia os mais sublimes exemplos abrilhantados pela luz de suas excelentes qualidades. Já o recinto doméstico lhe parecia estreito teatro para as aspirações de sua alma, quando uma tremenda enfermidade a levou à fonte santa, cujas águas gozam por muito tempo da nomeada de virtuosas para todos os males que afligem a humanidade.

Chamava-se então a fonte milagrosa a Fonte do Senhor, e não era ela mais do que o remanso que fazem as águas do rio Iguape em um recanto de pouco fundo.

As lendas tradicionais, recolhidas pelos religiosos de outro tempo, razão que tal nome lhe proveio por se ter aí lavado a imagem do Senhor, que se venera na ermida da Senhora das Neves, a qual, encontrada em uma praia deserta, fora ali lançada para a purificarem da vegetação marinha, que recebera das águas do oceano.

“Boiava ela”, diz a jesuíta Manuel da Fonseca, “e com piedosa audácia lhe puseram uma pedra em cima, ajudando-se de seu peso para a conservarem coberta de água sobre outra pedra, enquanto a purificavam.

“Muitos anos se conservou este lago servindo de piscina aos necessitados, e dando aos enfermos milagrosa saúde com o trabalho só de se lavarem em tão santas águas. Abusaram, porém, de tanta piedade, e a pedra, que até então era de pequena estatura, querendo a seu modo vingar esta injuria, cresceu tanto que, tomando todo o circuito, o tapou, deixando somente livre o ribeiro, em cujas águas ainda hoje estão depositados grandes remédios para muitas enfermidades.”

Curado o corpo, tratou Joana do curativo da alma; dirigiu-se à igreja da Senhora das Neves, onde aquela imagem, que santificara as águas do Iguape, se oferecia à contemplação dos fiéis, e ali, depois de elevaro seu espírito ao Altíssimo, viu pendente de uma das paredes da capela uma relação que nos foi conservada pelo padre Cristóvão da Costa de Oliveira, e nela leu o seguinte:

“Sendo no ano de 1647 mandados dois índios boçais e sem conhecimento da fé, por Francisco de Mesquita, morador na praia da Juréia, para a vila da Conceição, a seus particulares, acharam na praia do Una, junto ao rio chamado Piaçuna, rolando um vulto com as superfluidades do mar, a que vulgarmente chamam ressacas, e o reconhecendo, o levaram para o limite da praia, onde fazendo uma cova, o puseram de pé, com o rosto para o nascente, e assim o deixaram com um caixão e seis velas, que divisaram ser de cera do reino, e uma botija de azeite doce, as quais cousas de achavam divididas em pouco espaço do dito vulto.

“Voltando os índios dali a dias, acharam o dito vulto, que não conheciam, no mesmo lugar, mas com o rosto virado para o poente, no que fizeram grande reparo, e não acharam vestígio de que pessoa humana o pudesse ter virado.

“Logo que chegarão ao sítio de seu administrador, contaram o caso e assim que se soube pelos vizinhos, se resolveram Jorge Serrano e sua mulher Ana de Góis, seu filho Jorge Serrano e sua cunhada Cecília de Góis, a ir ver o que contavam os índios; e acharam a santa imagem na forma que os índios tinham exposto, e tirando-a, meteram em uma rede e a trouxeram alternativamente os dois homens e as duas mulheres até ao pé do monte a que chamam Juréia, aonde os alcançariam as gentes da vila da Conceição, que vinham ao mesmo afeito pela informação dos índios.

“As gentes da Conceição ajudaram aos quatro a condução da imagem até ao mais alto do monte, donde os dois homens e as duas mulheres com a mesma alternativa a transportaram até à barra da ribeira do Iguape.

“Aí foram os moradores da vila do mesmo nome buscá-la, e trazendo-a com grande veneração, a puseram no rio a que chamam hoje Fonte do Senhor, para lhe tirarem o salitre e a encarnarem de novo, o que conseguiram, e a colocaram nesta igrejaa2 de novembro de 1674.

“É também tradição que a santa imagem do Senhor Bom Jesus vinha de Portugal embarcada para Pernambuco, e que encontrando-se o navio com inimigos infiéis, lançaram os portugueses a santa imagem ao mar para não ser tomada, com o que se achou junto dela, cera e azeite, e que ao mesmo tempo em que foi achada a santa imagem na praia, foram vistas pelo padre Manuel Gomes, vigário da vila de S. Sebastião, passar pelo mar, da parte do norte para o sul, seis velas acesas, em uma noite, sendo que a luzerna iluminava grande circunferência.”

Estas narrações legendárias fizeram profunda impressão no ânimo de Joana que, de combinação com seu marido, prometeram ante a imagem santa do Piaçuna que aquele que sobrevivesse ao outro não passaria a segundas núpcias e iria peregrinar pelo mundo.

Saberiam, porém, como romeiros do Senhor, que promessas faziam à face do altar, e como seria aceita pelo Céu a missão a que se votavam? Nas disposições humanas não entram por certo os cálculos do destino que Deus reserva às suas criaturas, e, pois, longa e bem longa teve de ser a peregrinação de Joana.

De volta da romaria, finou-se-lhe o marido, que os seus dias estavam contados na ampulheta do tempo.

Sucumbiu a essa hedionda enfermidade, que alterava as povoações brasileiras, que levava a desolação ao seio das famílias, que derramava o pranto por todas a parte e cobria de luto quase todas as casas, e ante a qual hesitava a ciência humana, enquanto o gênio de Jenner não descobriu o segredo de sua prevenção.

Morrera, segundo a tradição, em Paranaguá, e Joana, depois de pagar o tributo da saudade e da religião ante a sua sepultura, tomou, envolta nos trajos lutuosos da viuvez, o bordão dos peregrinos dos tempos bíblicos.

Levava o cilício sobre as carnes que tinham morrido para o mundo, e sobre o cilício um hábito de burel pesado, negro, e sobre o hábito e pendente do pescoço a imagem do menino Deus, em nome do qual pedia esmolas.

Caminhava a pé e sozinha pelo império das feras, cujos bramidos não lhe intimidavam; atravessava as solidões, penetrava pelas florestas seculares, povoadas por hordas de selvagens bárbaros e antropófagos, e afrontando ásperos e escabrosos caminhos, convertendo, graças à fé que lhe robustecia a alma, os espinhos em flores, as flores em frutos, entrou assim pela província de Santa Catarina.

Desde logo a freguesia de Lagoa tornou-se o lugar de sua habitação favorita e o ponto de partida de suas constantes peregrinações.

Por muito tempo ocupou-lhe a imaginação o pensamento de ali fundar uma capela, com as esmolas que obtinha dos fiéis, para o que chegou a alcançar licença do bispo da diocese do Rio de Janeiro, cujo báculo ainda hoje se estende às ovelhas da grei catarinense.

Queria erigir um templo, embora com rústica aparência, mas tributo de sua ardente vocação à imagem que trazia pendente do seio — que lhe escutava as palpitações do coração — e obter para ela a adoração dos crentes.

O que não conseguiu fazer na freguesia da Senhora da Lagoa — ou por mudar de tenção — ou por melhor aconselhada sobre o local que devia escolher, veio a fazê-lo na ilha da Senhora do Desterro, hoje sede da capital da província.

Assim a obteve a impetrada licença do bispo do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1750, nas terras que para isso lhe concedera a Ordem Terceira da Penitência, do Senhor Bom Jesus, com a cláusula de ficar a mesma capela pertencendo à mesma ordem, destinando-se lugar decente para a colocação do Menino Deus e celebrando nela a sobredita ordem todos os atos e funções divinas.

Os irmãos terceiros não se descuidaram de ajudar a obra da irmã Joana. Nesse mesmo ano abriram eles uma subscrição entre si, e ajustaram a condução dos materiais por empreitada; mas sérios, por demais sérios foram os embaraços que ocorreram a obstar a sua realização naquele lugar, e passaram-se dois anos sem que se desse começo às obras.

Então recorreu Joana à caridade do rico proprietário André Vieira da Rosa, aquele mesmo que mais tarde cedeu o terreno para a edificação da casa do hospital da caridade, que serviu até ao ano de 1854, em que os enfermos foram trasladados para o hospital novo, inaugurado no dia 5 de março do mesmo ano.

Por escritura de 19 de março de 1762, lhe fez André Vieira da Rosa doação de dez braças de terreno, em quadro, para edificar a capela, com as frentes até ao mar, para o adro e serventia pública, e, em 25 de abril, requeria ela à Ordem Terceira a restituição da importância das esmolas que havia cedido para a edificação da capela, visto querer construí-la então por si mesma. Anuiu a Ordem Terceira de bom grado, dando por motivo de demora da edificação da capela a falta da licença real, que impetrara do reino, e, em 2 de maio desse ano, se lavrou a escritura de distrato e se lhe fez entrega do respectivo dinheiro.

Empenhou-se Joana de Gusmão em realizar o seu ardente desejo, e as obras da capela de seu Menino Deus começaram com toda a atividade, e dois anos depois doava ela a mesma capela e uma casa, dependência da mesma, à religião franciscana, levada das considerações da falta que havia na terra de sacerdotes, que assistissem aos povos com a palavra evangélica, e freqüentassem os confessionários, por só haver um vigário em cada freguesia, com a obrigação de festejar a mesma ordem todos os anos o Menino Deus, e lhe dar por sua morte sepultura, no recinto de sua capela.

Impetrada a licença do ordinário, pelo provincial Fr. Inácio da Graça, foi verbalmente concedida; deixou-se, porém, de lavrar a escritura da respectiva donação, e ficou por isso sem efeito.

Instituída em 1765 a irmandade dos Passos, entrou Joana para o seu grêmio, e no dia 3 de julho de 1767 obteve a irmandade provisão para erigir na igreja do Menino Deus a capela do Senhor dos Passos, a qual, sendo começada em 27 de julho do ano seguinte, ficou concluída no de 1769.

Tinha-se realizado o mais ardente desejo de Joana; podia morrer tranqüila, mas a vida se lhe prolongou ainda por onze anos.

Durante todo esse tempo, tão largo para ela, trajou o hábito da ordem terceira da Penitência, para o que obteve licença da mesma ordem, e dele usou quotidianamente. Seguiram o seu exemplo outras devotas, e entre elas Jacinta Clara, que sucedeu a Joana de Gusmão na administração da capela, não só por ocasião do seu falecimento, como durante a sua estada nesta cidade do Rio de Janeiro pelos anos de 1773 a 1774, quando aqui diligenciava esmolas para a sua capela.

Compenetrada da sublimidade de sua missão e levada da tendência de seu espírito para o amor do próximo, não descuidou-se da infância desvalida, esses anjos desterrados da pátria celeste. Repartiu com elas os conhecimentos bebidos na casa paterna, de que saíram tão distintos e instruídos varões; não era simplesmente uma mestra no meio de suas discípulas, mas uma mãe caritativa, piedosa e boa, que se fazia amar, ao passo que se tornava respeitada, contendo-as com aquele olhar expressivo e perscrutador que lhe dera a natureza, e que conservou em toda a sua perfeição, ainda nos últimos momentos da vida; ou afagando-as com aquele riso angélico, que lhe pairava nas faces, e que lhe dava um não-sei-quê de amabilidade.

A longa idade que os Céus lhe concederam neste vale de lágrimas serviu-lhe para aumentar as suas privanças e torná-la a imagem de resignação.

Dores agudíssimas, como coroa de espinhos, lhe cingiam o coração e varavam-no com a espada da morte.

Sobreviveu a todos os seus parentes e viu baixar à sepultura todos os seus irmãos, destituídos de bens da fortuna, e alguns na última miséria da vida humana! Quantas vezes nas horas longas de seu recolhimento, em que ficava a sós com a sua alma, depois de haver preenchido os duros e árduos preceitos, a que se impusera para com a divindade, não se entregaria à contemplação do nada das grandezas terrestres, cujo quadro real e sublime tinha em sua própria família! Inácio e João votam-se à abnegação das coisas mundanas, e terminam seus dias nas pobres celas de suas ordens; Alexandre vê perecer seus filhos no meio das chamas, que lhe devoraram também sua fortuna, e expira pobremente num leito de penúrias, depois de ter servido de secretário de uma embaixada a uma das primeiras cortes da Europa e de ter sido um dos melhores ministros do reinado de D. João V. Bartolomeu foge à Inquisição de Lisboa e moribundo bate às portas do hospital de Toledo, mendigando uma enxerga para seu último leito, e um lençol que lhe sirva de mortalha, depois de ter quebrado as leis da atração e descoberto a aeronáutica remontando-se aos ares em sua máquina e deixando boquiaberto o povo da cidade de Lisboa.

Mais alguns anos e um século teriam passado por sobre essa cabeça veneranda, encanecida por tão longa idade!

Afinal já não vivia; arrastava apenas a existência, como pesado fardo.

Curvada ao peso de noventa e dois anos, arrimava-se ao bordão de suas peregrinações e ia-se grave, vagarosa e cansada pelas ruas da vila do Desterro.

A velhice, a mocidade e a infância lhe tributavam então as maiores considerações de respeito, de amor e de simpatia. O povo se descobria em sinal de veneração, e ouvia-se no meio de turbas um murmúrio surdo abafado, que dizia:

— É a beata Joana de Gusmão!Éa mulher santa!

Na noite de 15 de novembro de 1780, um luzido acompanhamento de homens envoltos em opas escarlates e acetinadas, empunhando brandões acesos e entoando os cantos da eucaristia, seguido de numeroso concurso de pessoas de todas as classes, de todas as idades, de ambos os sexos saiu da matriz da Senhora do Desterro e dirigiu-se a uma pobre choupana.

Abriu-se a porta; parou silenciosamente o acompanhamento, e o sacerdote, conduzindo o santo viático, penetrou na morada da humilde pobreza, no asilo da santa virtude.

Uma mulher, estendida sobre pobríssimo leito; pálida; com as faces enrugadas pelo sulco dos anos; os cabelos longos e brancos; mas ainda com os olhos cheios de vida, refletindo o brilho da vela benta, que ardia ante a imagem do Crucificado, estendeu a mão descarnada, balbuciou algumas palavras repletas de unção e recebeu satisfeita e alegre entre os seus lábios, ungidos pelo anjo da oração, a sagrada partícula, o pão da alma.

Desde então se lhe amorteceram os olhos; puseram-lhe a vela da agonia entre os frios dedos de uma mão, e o crucifixo na outra, e as lágrimas congelaram-se nas rugas cavadas da face. Os lábios, em rápida contração nervosa, deixaram escapar um suspiro lânguido, abafado, e tornaram-se para sempre imóveis...

O acompanhamento apagou os seus brandões, e seguiu silenciosamente pelas ruas por que viera. Um murmúrio surdo e triste derramava, como que a medo, a notícia da morte da beata Joana.

No dia seguinte, as vozes lúgubres e plangentes dos sinos da capela do Menino Deus anunciaram as suas exéquias, levando os seus fúnebres e tristes sons aos arredores da vila. Uma procissão acompanhou o seu esquife, suspenso sobre os ombros de seus irmãos terceiros da Penitência. Ao cântico dos mortos, baixou o seu corpo à sepultura que ela escolheu para seu eterno jazigo, e donde não deveria ser jamais exumado.

A irmandade dos Passos guarda ainda hoje em modesta urna, em sua igreja, como relíquias santas, alguns dos restos mortais da beata Joana de Gusmão, a fundadora da capela do Menino Deus, a dedicada mestra da infância desvalida, a boa e caritativa pobre, que repartia de suas esmolas com os necessitados como ela, e de quem ainda a tradição dos habitantes da província de Santa Catarina honra a memória.


✻ ✻ ✻

Sobre o píncaro de uma das serras da província de Minas Gerais, não muito distante de Ouro Preto, se eleva a capela da Senhora da Piedade.

A tradição de sua edificação é uma das mais poéticas lendas de nossa pátria.

É crença dos habitantes do lugar que ali vivia um casal de ricos e honrados agricultores, mas que no meio de suas riquezas arrastavam uma existência desgraçada e infeliz.

Ligada pelos laços do himeneu vira o ditoso casal os seus votos satisfeitos; os céus legitimaram o seu amor dando-lhe uma filha, mas este fruto de tão venturosa união veio ao mundo condenado a não falar; a mudez tinha selado para sempre os seus lábios e pois a herdade da serra não retumbou com os gritos infantis e inocentes da linda menina.

Os pais tocados de tão grande desventura fizeram mil promessas invocando a piedade da Santa Virgem, e um dia que subiam o íngreme e escabroso trilho de sua habitação, viram a sua filha nos braços de um anjo.

Extáticos ante a visão celeste, que para logo esvaeceu-se, viram os ditosos pais a bela menina correr-lhes ao encontro balbuciando os doces nomes de pai e de mãe, e pai e mãe ali prostrados a receberam em seus braços, e para logo subiram ao Senhor, nas asas do anjo da oração, as suas vozes agradecidas.

Fiéis à sua promessa elevaram com as suas próprias mãos rústico, mas sublime templo; e a capela da Piedade tornou-se desde então o alvo da romaria dos habitantes da circunvizinhança daquela serra, que hoje tem o seu nome.

Lá descansam os restos mortais dos pais que foram tão venturosos e com eles os de sua filhinha, que ali crescera e viveu sempre feliz, e que ali prostrada aos pés da Virgem dava graças por tamanho benefício.

A romântica legenda inspirou a um poeta brasileiro, o Sr. F. L. Bittencourt Sampaio, belos e harmoniosos versos, como são os seguintes:

Vai o sol por sobre o monte
Seus raios d’ouro quebrar,
E nas nuvens do horizonte
Mansamente a se ocultar.
Ao final do dia
Longes ecos de harmonia
Suspira o vento... e passou!
É uma nota perdida
De virgem que ali nascida
Seus trenos d’alma soltou.

Mimo e flor d’aquele prado
Que ao pé do monte ali vês,
Morava um anjo calado
Filho dos ermos; não crês?
Era uma linda menina,
Singela como a bonina
Ao desabrochar da manhã;
Dentre todas a mais bela
Folgava moça e donzela
Sempre gentil e louçã.

Quando a aurora se toucava
De etéreas flores no céu,
E de luz já se arreava
Límpido dia sem véu,
Pelo prado e vale e monte
Ao pé do rio ou da fonte

Peregrina ei-la a folgar!
Ninguém lhe ouvia um queixume;
Só das flores o perfume
Buscava ingênua aspirar.

As aves, a flor, a brisa,
Verde o campo e o céu de anil,
A garça branca, que frisa
Do lago a onda sutil,
Das folhas brando cicio,
Da floresta o murmúrio
Semelhando um longo ai;
E o doce carpir fervente
Da cascata ou da corrente,
Que sobre os seixinhos cai:

Nada é mais doce que vê-la
Descuidosa do porvir!
Invejada por ser bela,
Por inocente a sorrir.
De mancebos acercada
Fugia toda corada
Ligeira, qual beija-flor!
Tal a corça perseguida
Voe por devesas fugida
Do fero, audaz caçador.

À tarde, na Veiga amena
Folgava ainda a correr;
Mas nunca a linda morena
Pôde falar — que viver!
Era muda! — Não falava
Sorria só e folgava,

Que era um anjinho de Deus!
E quando o sol se escondia
Do prado vinha e corria
A rezar junto dos seus.

No colo então da mãezinha
Ia-se logo a deitar,
Como a mimosa avezinha
Vai-se no ninho ocultar.
Fugia ao mundo — inocente!
Calada sempre e contente,
Só Deus amava e seus pais.
Cismava... mas não de amores;
Seus sonhos eram de flores
Feliz se achava — demais!

Assim vivia calada
Sempre a folgar, a sorrir;
Das amigas separada
Dos mancebos a fugir.
Eis que um dia junto ao monte
Para os céus erguendo a fronte
A virgem pôs-se a rezar,
Rezou... rezou... e tremendo,
Pasmada se foi correndo
Por seus pais alto a chamar!

Fora um milagre! A donzela
Em voz bem clara falou!
Ficando agora mais bela
Quase divina ficou!
E o povo crê na verdade
Que a Virgem da Piedade,

Toda vestida de luz,
Ali na serra vagando,
Falara à muda, mostrando
Seu Menino Deus Jesus!

Daquele monte no pino
Uma ermida então se fez
Para amar do Deus Menino;
Logo ali depois de um mês
Cercam-na flores selvagens
Que lá naquelas paragens
O caminheiro encontrou,
Que, passando ali, por perto
Sobre o monte e ao templo aberto
Primeiro entrando...rezou!

E vinha sempre a donzela,
À tarde por devoção,
De lá na ermida singela
Dizer a sua oração.
Morreu!... Ali sepultada
Jaz para sempre calada,
Que a morte muda só é!
Mais feliz, talvez, que outrora
Que nos Céus cantando agora
Com os anjos cresceu de fé.


✻ ✻ ✻

Corria o ano de 1814, e uma romaria de fiéis e curiosos concorria de grande distância à capela da Piedade, sobre a serra do mesmo nome, não mui distante da cidade do Ouro Preto; ia ali ouvir missa e presenciar os êxtases e os padecimentos de uma moça, a quem chamavam a irmã Germana, a qual, para satisfazer a devoção que tinha com a Santa Virgem, obteve do seu confessor a permissão de ir habitar a de serta capela, que coroava o píncaro da alta serra. Facilmente lhe concederam o que pedia, pois era voz geral, que a sua vida era puríssima, e o seu procedimento irrepreensível.

Nessa habitação tão terna, vivendo como um anacoreta, longe do comércio do mundo, tendo apenas uma irmã por companheira, cresceu a devoção de Germana, e votou-se a todas as abnegações das grandezas deste mundo; quis jejuar às sextas-feiras e aos sábados: ao princípio impediram-lho, porém ela declarou que lhe era inteiramente impossível tomar qualquer refeição durante esses dois dias, e dali em diante os passou na mais completa abstinência.

Meditando um dia sobre os mistérios da Paixão, entrou Germana num como êxtase; seus braços se abriram, formando com o seu corpo uma cruz, tendo os pés igualmente cruzados, e se conservou nesta postura pelo espaço de quarenta e oito horas; desde então se renovou o fenômeno semelhante, sem a mais pequena interrupção; começando sempre na noite de quinta para sexta-feira até a noite de sábado para domingo, sem que fizesse o menor movimento, sem que proferisse uma única palavra, e sem que tomasse o mínimo alimento. Espalhou-se a notícia, e os habitantes de ambos os sexos e de todas as condições e idades vieram das circunvizinhanças presenciar este espetáculo inteiramente novo para eles, e ignorando a sua causa, tomaram os seus efeitos como milagre, e dali o nome, que deram a Germana de irmã, e a fama, que ela ainda hoje goza de santa. Dois médicos ou cirurgiões, ou, como então se dizia, dois clínicos Antônio Pedro de Sousa e Manuel Quintão da Silva concorreram da sua parte, para que mais e mais se aumentasse a veneração pública, passando atestados, de que o seu estado era sobrenatural, pois só assim podiam explicar a periodicidade de seus ataques catalépticos.2

Em vão o Dr. Gomide, distinto e instruído médico, formado na Universidade de Edimburgo, procurou refutá-los, publicando uma memória cheia de ciência e de lógica,3 na qual procurou provar, fundado em numerosas autoridades, que os êxtase da irmã Germana nada mais eram do que uma catalepsia; cresceram as romarias à serra da Piedade, e divulgou-se o boato de que o doutor, não tendo visto a enferma, não pudera estudar o fenômeno da sua moléstia em todas as suas particularidades, e os atestados dos clínicos, não tendo sido impressos, foram reproduzidos em numerosas cópias, e circularam ainda nas mais remotas vilas e aldeias da província.

O que até ali era crença para todos, começou a ser dúvida para muitos, e a opinião pública dividiu-se; então interveio o sábio e esclarecido bispo de Mariana, o padre dom Cipriano da Santíssima Trindade, que antevendo o escândalo, que se poderia dar luta, que se começava a travar entre as encontradas opiniões, proibiu a celebração da missa na capela da Piedade, sob o pretexto da falta de régia licença, com o fim de acabar com as numerosas romarias. Os afeiçoados, porém, da irmã Germana, crentes sinceros e de boa fé, não só se apressaram em oferecer as suas casas, como que vieram à corte do Rio de Janeiro solicitar a necessária licença. Germana lhes agradeceu de todo o seu coração, mas preferiu ir com a sua irmã para a casa de seu confessor, homem de certa gravidade, já avançado em anos, não destituído de instrução, e que habitava por aqueles arredores. Alcançada a licença, abriu-se de novo a capela, e no seu rústico campanário tornou a soar o sino, anunciando o regresso da irmã Germana, e convocando os fiéis e os curiosos para a missa, e para a contemplação dos milagrosos êxtase da santa da serra da Piedade.

Daí em diante começou a manifestar-se novo prodígio; todas as terças-feiras experimentava a irmã Germana êxtase de algumas horas, seus braços deixavam a sua natural posição e se conservavam cruzados sobre as costas da enferma. Os devotos explicavam este novo fenômeno com a coincidência do dia, pois é na terça-feira, que se oferecem à meditação dos fiéis os sofrimentos de Jesus Cristo, ligado à coluna.

Aos nacionais juntaram-se peregrinos estrangeiros, viajantes instruídos correram a visitar também, levados da curiosidade humana, capelas da serra da Piedade, e Augusto de Saint-Hilaire, sábio naturalista francês, dando conta da sua peregrinação àquele sagrado asilo, fala-nos assim da irmã Germana:

“Vi na serra da Piedade uma moça muito falada nas comarcas de Sabará e Vila Rica. Chamava-se irmã Germana, e desde o ano de 1808, que padecia de afecções histéricas, acompanhadas de convulsões violentas, exorcismaram-na e empregaram remédios inteiramente contrários ao seu estado, o que a fez piorar ainda mais. Quando ali cheguei havia já muito tempo, que ela não se levantava mais da cama, e a dose de alimentos, que tomava diariamente, apenas excedia a que se dá aos recém-nascidos. Não comia carne, rejeitava igualmente todos os alimentos gordurosos, e não podia sequer levar um caldo. Doces, queijo, um pedaço de pão, um pouco de farinha, formavam o seu nutrimento, não poucas vezes rejeitava o que acabava de pedir, e quase sempre era necessário obrigá-la a comer alguma cousa.

“Quando pela primeira vez cheguei à serra, fui recebido pelo diretor da enferma; tinham-me assaz falado do desinteresse e da caridade deste eclesiástico. Pratiquei por bastante tempo com ele e não me pareceu destituído de instrução. Falou-me da sua penitente sem entusiasmo algum. Desejava, me disse ele, que os homens instruídos estudassem o estado de Germana, pois que o doutor Gomide, pois que o doutor Gomido tinha escrito o seu folheto, sem que se tivesse dado ao trabalho de ir ver a sua enferma. Se este sacerdote não exagerou o que me contou acerca do poder, que tinha sobre Germana, poderiam os sectários do magnetismo animal tirar dele grande partido para apoio da sua doutrina. Assegurou-me com efeito, que no meio das mais terríveis convulsões, lhe fora bastante tocá-la para sossegá-la. Logo que estava nesses êxtases periódicos, tinham seus membros tal rigidez, que era mais fácil quebrá-los e rasgá-los do que curvá-los ou dobrá-los; mas, se dermos fé ao testemunho de seu confessor, por mais de leve que tomasse o braço ou a mão, facilmente lhe dava a posição que julgava conveniente. O que há de real, é que o confessor de Germana, tendo-lhe ordenado que comungasse num desses dias de êxtase, ela por um momento convulsivo levantou-se do leito em que a tinham levado para a igreja, ajoelhou-se, com os braços abertos e recebeu a santa hóstia, e desde esse momento, que comungou sempre da mesma maneira no seu estado estático. Em suma o seu confessor não falava, senão com extrema simplicidade, acerca do poder que tinha sobre a pretendida santa, atribuía-o unicamente à docilidade da enferma, e ao respeito, que votava ao caráter sacerdotal, e acrescentava, que qualquer outro eclesiástico colheria o mesmo resultado. Ele me dizia com aquela confiança, que os magnetizadores exigem de seus adeptos: a obediência desta pobre moça é tal, que se eu lhe ordenasse, que passasse uma semana inteira sem tomar alimento algum, ela não hesitaria, nem ficaria por isso mais incomodada, mas, ajuntava ele, temo tentar a Deus, com tal experiência.

“Pedi que me mostrasse a enferma, e conduziram-me a um pequeno quarto, onde jazia continuadamente deitada. Vi-lhe o rosto dentre um lenço, que lhe encobria a cabeça, e não me pareceu ter mais de 34 anos de idade, que era a que com efeito se lhe atribuía. Sua fisionomia simpática e agradável indicava grande magreza e extrema debilidade. Perguntei-lhe com estava, e respondeu-me com uma voz quase extinta, que estava melhor, do que na realidade o merecia. Tomei-lhe o pulso, e surpreendeu-me a sua forte aceleração.

“Tendo subido de novo na sexta-feira, pedi que me conduzissem outra vez ao seu aposento. Estava deitada em sua cama e tinha a cabeça envolta num lençol. Seus braços estavam abertos, sendo que a parede impedia que um deles se estendesse livremente e o outro saia além do leito, e era sustentado por um tamborete. Tinha a mão extremamente fria, os dedos polegar e indicador estendido e os outros encolhidos: os joelhos curvos e os pés encruzados. Nesta posição conservava a mais perfeita imobilidade, sentia-se-lhe apenas o pulso, e podia-se supô-la sem vida, se pelo efeito da respiração o seu peito não fizesse elevar-se levemente a sua colcha. Procurei por vezes dobrar-lhe o braço, mas inultimente, a rigidez dos músculos aumentava na razão dos meus esforços, creio que não poderia empregar maior força sem inconveniente para a desgraçada enferma. Verdade é que fechei uma e mais vezes as suas mãos, mas logo que as deixava, tomavam o seu ademã de costume. A sua irmã, que velava quase sempre a seu lado, e que se achava presente nesta ocasião, me disse que nem sempre esta pobre se mostrava tranqüila em seu êxtase como estava então, e que na verdade os pés e braços ficavam constantemente imóveis, mas que ela arrancava suspiros e gemidos, batia com a cabeça sobre o travesseiro, e que pelas três horas da tarde manifestavam-se-lhe movimentos convulsivos: era esse o momento, em que Jesus Cristo soltara o derradeiro suspiro.

“Antes que dirigisse à serra para vê-la em seus êxtases, tinha ideado experimentar nela a ação do magnetismo animal, mas a presença de numerosas testemunhas impediu-me que o fizesse com regularidade. Todavia sob o pretexto de observar-lhe o pulso, coloquei a minha mão esquerda sobre a sua e pus-me na disposição de espírito exigida pelos magnetizadores, nenhum resultado obtive, mas para não deixar de ser exato, devo confessar que fui constantemente distraído pela presença de testemunhas, e pelas sua conversações.”

Outros viajantes, como Spix e Martius, distintos naturalistas alemães, que perlustraram a província de Minas Gerais, visitaram a capela da serra da Piedade, levados das narrações, que lhes faziam os habitantes acerca dos milagres e santidades de Germana, mas já as autoridades tinham intervindo e julgado prudente afastá-la para mais longe, a fim de acabar com as numerosas peregrinações e romarias.

Também a irmã Germana não habitou por muito tempo o lugar do seu exílio. Acharam-na um dia naquela postura, que tomava ordinariamente quando era acometida da catalepsia, como diziam os médicos, ou quando estava em seus êxtases periódicos, como dizia o povo, pálida e fria como uma bela estatua de mármore, seu coração tinha cessado de bater, era apenas um cadáver...

A morte, muitas vezes tão benigna, tinha posto termo a seus longos sofrimentos. Não o foi, mas viveu e morreu como uma santa.
Notas

1 A Espanha, tão fértil na produção de grandes gênios, deve gloriar-se de ter dado o berço a santa Teresa de Jesus, virgem que se dedicara ao culto do Senhor, poetisa que exalçara a glória de Deus, em versos cheios de doçura e melancolia, religiosa que reformou e instituiu numerosos claustros.

Santa Teresa de Jesus, filha de Afonso de Céspede e Beatriz de Ahumade, nasceu em Ávila, a mais bela das cidades, que outrora entravam na demarcação da antiga Lusitânia, em 1515; faleceu em 1582 aos 67 anos de idade, e foi canonizada em 1615 pelo papa Paulo V.

Acendeu-se-lhe a devoção ainda em tenros anos, o pensamento sublime da imortalidade d'alma lhe borbulhava de contínuo na mente e de contínuo repetia como que extasiada: “Para sempre! Para sempre! Para sempre!” Não contava ainda 15 anos, quando ardendo no desejo de ir procurar entre os infiéis a gloriosa palma do martírio, abandonou a casa de seus pais, acompanhada apenas de seu irmão Afonso de Céspede, aquele que ela mais estimava dentre três irmãos e oito irmãs, que tinha, o qual havia nascido no mesmo dia que ela, mas quatro anos antes, e que depois morreu desastrosamente na conquista do Rio da Prata, em combate contra os indígenas. Surpreendidos em sua fuga por um parente, foram conduzidos à casa paternal e asperamente repreendido por seus pais. Exigiram então no jardim umas como celazinhas e ali convertiam as horas de recreio em horas de orações e místicas leituras.

Sua mãe, que era muito dada a leitura de romances de cavalaria, então em voga, e que seu marido aborrecia, inspirou-lhe tão viva paixão por eles, que ajudada de seu predileto irmão, veio a compor também um romance neste gênero, com belas aventuras, com riquíssimas ficções, e sobre o qual, diz o padre dom Francisco da Ribeira, seu biógrafo, muito havia que dizer.

Desejando enclaustrar-se para poder seguir mais livremente a vida de paz, exempta do comércio com o mundo, dirigindo fervorosas preces a Deus, viu transportada de alegria aproximar-se o mais feliz e desejado momento de toda a sua longa e trabalhosa vida. Já sua beleza, que tão iconograficamente nos transmitiu a pena do bispo de Terragona, dava que cuidar, pois essa estátua regular, esse corpo avultado e branco como flocos de neve, esses cabelos, que em negras madeixas lhe desciam até aos claros e torneados ombros, essa longa testa, esses olhos pretos brilhantes, essa boca e faces carmesíneas, formando um todo perfeito, iam pouco a pouco se tornando o objeto de louvores, quando, em conseqüência da morte de sua mãe, seu pai a conduzia ao mosteiro da Graça. Tomou o véu de religiosa do Monte Carmelo e em breve tornou-se célebre. Foi ela quem introduziu a reforma no mosteiro de Ávila, quem por seu zelo ardente e puras virtudes, adquiriu tanta influência, tamanho predomínio, que sucessivamente reformou quatorze conventos de religiosos e dezesseis de religiosas, e fez ainda mais: sua instituição atravessou o Oceano e veio aclimatar-se no Novo Mundo.

Ela de sua própria mão escrevera a sua vida; a primeira vez por conselho de seu confessor, dom Pedro Ibáñez, e depois a pedido de frei García de Toledo. Não há notícia alguma da primeira obra e quanto à segunda foi impressa, sendo que o autógrafo acha-se no Escorial muito bem conservado. Frei Antônio de S. José a verteu em linguagem portuguesa, e publicou-a ilustrada com muitas eruditas dilucidações. O grande poeta lírico, frei Luís de Leão, homem dotado de transcedente talento e que possuía muita soma de conhecimentos, igualmente começou de escrevê-la para satisfazer o desejo da imperatriz Maria, filha do célebre imperador Carlos V; mais, a morte lhe impediu que a concluísse. Foi mais feliz o padre dom Francisco da Ribeira, um de seus confessores, e a ele se devem muitas particularidades da vida desta santa, que só ele não ignorava.

Suas obras como que respiram um odor celeste, que enleva; ressumbra nelas um sentimento místico, uma expressão, que não fala ao coração, mas à alma; seu estilo é suave e fluente; porém aparecem aqui e ali seus defeitos, algumas faltas, e pequenas incorreções. As mais gabadas são uma alegoria intitulada Castelo da Alma, os avisos espirituais, escritos com bastante erudição e as suas cartas, que formam dois volumes, em cada uma das quais, segundo a asserção do bispo do Osma, D. Juan de Palafox y Mendonza, se descobre o admirável espírito desta virgem prezadíssima, a quem comunicou o Senhor tantas luzes para que elas ilustrassem e melhorassem as almas.

Santa Tereza era poetisa! A inspiração do Céu, o fogo sagrado da poesia lhe inflamava o cérebro. Toda sensibilidade, toda religiosa, ela empunha à lira do cristianismo e de seus lábios desprendem-se versos cheios de melancolia, mas de uma melancolia toda embebida no prazer da sublime dor do cristianismo.

2 O doutor Gomide a explica, narrando o seguinte fato, que, conquanto seja curioso, mais serve para comprovar o instinto dos animais, do que a periodicidade de uma moléstia. Um proprietário da cidade de Gaeté tinha uma tropa de bestas, que ia todos os sábados à cidade carregada de gêneros alimentícios. Estes animais eram soltos no pasto, segundo o costume, e pela manhã e à noite vinham à casa receber a sua ração de milho, mas no sábado, único dia de trabalho, não só se apresentavam como que se escondiam no mato.

3 Intitula-se: Impugnação analítica ao exame feito pelos clínicos em uma rapariga, que julgaram santa, na capela da Senhora da Piedade da Serra. Rio de Janeiro, 1814.