Brasileiros
Brasileiros
[editar]O Peru tem duas histórias fundamentalmente distintas. Uma, a do comum dos livros, teatral e ruidosa, reduz-se ao romance rocambolesco dos marechais instantâneos dos pronunciamentos. A outra é obscura e fecunda. Desdobra-se no deserto. É mais comovente; é mais grave; é mais ampla. Prolonga, noutros cenários, as tradições gloriosas das lutas da Independência; e veio até aos nossos dias tão impartível e sem hiatos, apesar de seus aspectos variáveis, que pode acapitular-se sob o título único, geralmente adotado pelos melhores publicistas daquela República: El Problema del Oriente.
A designação é perfeita. Trata-se de assunto rigorosamente positivo a resolver.
Ao peruano não lho impuseram maciços argumentos de sociólogos ou a intuição feliz de um estadista, senão o próprio empuxo material do meio. Constrangida numa fita de terrenos adustos entre as cordilheiras e o mar, onde acampara durante três séculos iludida pelo fausto dos conquistadores e dos vice-reis, a nacionalidade, maior herdeira das virtudes e dos vícios por igual notáveis da Espanha cavalheiresca e decaída do século XVII, compreendeu afinal, pelo simples instinto da defesa, a necessidade imperiosa de abandonar a clausura isolante que a seqüestrava de todo o resto da Terra.
E começou a transmontar os Andes...
Fora longo recontar a sua hégira para o levante, nas investidas sucessivas por cinco penosíssimas estradas desesperadoramente retorcidas no boleado das serras, empinando-se em ladeiras altas de milhares de metros, e unindo os portos do litoral entre Mollendo e Paita às paragens apetecidas da montaña na extrema orla amazônica expandida do pongo de Manseriche às urmanas acachoantes do Urubamba.
Baste-nos notar que depois de transposta a última cordilheira do Oriente e atingida a bacia do Ucaiáli, pôs-se de manifesto aos seus mais incuriosos pioneiros, a par da exuberância do vale maravilhoso capaz de regenerar-lhes a nacionalidade exausta, uma anomalia física oriunda dos relevos orográficos ali predominantes: a melhor porção do país entre os que mais se afiguram ribeirinhos do Pacífico, tem como único e verdadeiro mar, capaz de consorciá-la pelo intercâmbio comercial à civilização longínqua, o Atlântico, que se lhe prende graças aos três longos sulcos desimpedidos do Purus, do Juruá e do Ucaiáli.
Nenhum milagre de engenharia lhos substituirá com vantagem. A linha férrea de Oroya e as que se lhe emparelham nas ousadias do traçado - tornejando escarpas a pique, enfiando em túneis afogados nas nuvens, e correndo em viadutos alcandorados nos abismos - não criarão sistemas de comunicações mais práticas e seguras.
As suas condições técnicas excepcionais, industrialmente desastrosas, tornam-nas para sempre impropriadas a transportarem, sem fretes excessivos, os produtos do Oriente, ainda quando a abertura do Canal de Panamá dispense, mais tarde, a longa travessia contorneante do Cabo Horn.
Assim, a saída para o Atlântico, pelo Amazonas e seus tributários de sudoeste, se tornou a primeira solução claríssima do problema. E nas paragens novas, erigidas administrativamente no atual Departamento de Loreto, começou para logo um intensivo trabalho de domínio, que persiste, crescente, em nossos dias.
Abriram-se caminhos demandando a opulenta zona fluvial; planearam-se, a despeito de sucessivos malogros, colônias militares e agrícolas, reatou-se, na revivescência das missões apostólicas, a tradição admirável dos jesuítas de Maynas; engenhou-se uma vasta regulamentação de terras; construiu-se o porto de Iquitos, e, para aviventar-se o povoamento, aboliram-se todos os impostos, agindo o homem aforradamente na terra feracíssima. Ao mesmo tempo as expedições geográficas, iniciadas em 1834 por P. Beltran e W. Smith, em que tanto se ilustraram depois F. de Castelnau, Faustino Maldonado, A. Raimondi, John Tucker e hoje G. Stiglich, rumaram a todos os quadrantes, ininterruptas e pertinazes, na tarefa complexa que era uma espécie de levantamento expedito de uma nova pátria.
Aos caudilhos irrequietos contrapuseram-se os exploradores tranqüilos. No litoral revolto pelas sedições e guerrilhas sistematizava-se a incapacidade crônica dos governos revolucionários, e, derrancados os melhores estímulos da recente campanha pela liberdade, os bravos salteadores do poder desmandavam-se num militarismo pernicioso que ali, como em toda parte, era a fraqueza irritável da nação enferma. Nos desertos floridos da montaña ao arrepio ou à feição dos rios ignorados, remoinhando nos giros estonteantes das muyunas, canoas despedidas, de frecha, nas correntadas céleres dos pongos, ou embatendo nas travancas abruptas das cachoeiras - os geógrafos, os prefeitos e os missionários demarcavam novos cenários à pátria regenerada e, apurando em tirocínio de perigos os mais nobres atributos da sua raça, reconstruíram o caráter nacional que se abatera, e davam àqueles rumos, secamente definidos por traçados geométricos, um prolongamento inesperado na História.
Porque o problema do Oriente, afinal, incluía nas suas numerosas incógnitas os destinos do Peru inteiro.[1]
Reconheciam-nos os próprios caudilhos esmaniados. Não raro no estavanado e vacilante de seus atos, entre dois fuzilamentos ou entre dois combates, acertavam de considerar por momentos as paragens insistentemente aneladas, e muito deles, de golpe, transfiguravam-se patenteando lúcidos descortinos de estadistas.
A este propósito poderiam citar-se numerosos casos delatadores da política bifronte, do mesmo passo reconstituinte e demolidora, que com o rigorismo de um decalque retrata na ordem moral do Peru o contraste físico entre o Ocidente obscurecido, onde as energias se quebrantam malignadas pela história emocional epidêmica dos pronunciamentos - e o Levante resplandecente, onde alvorecem as esperanças renascidas.
Aponte-se um exemplo.
Em 1841 a República estava a pique das maiores catástrofes. Imperava D. Agustín Gamarra. Aquele zambo cesareano refletia nos atos tumultuários os desequilíbrios de seu temperamento instável, de mestiço, ferrotoado dos temores e das impaciências de um prestígio improvisado, à ventura, nos sobressaltos das guerrilhas.
O seu governo - governo de quem inaugurou no Peru o regime das deposições apeando o virtuoso La Mar - foi naturalmente agitadíssimo. O restaurador imposto pelas armas dos chilenos, de Bulnes, sobre os destroços da efêmera confederação perúvio-boliviana, assediado pelas ambições contrariadas, pelas exigências dos condutícios incontentáveis e pelas ameaças dos conspiradores recidivos, tonteava na vertigem daquela eminência, onde chegara desprendendo-se da parceria dos cholos e pisoando todos os melindres aristocráticos da terra que sobre todas herdara a sobranceria tradicional da Espanha. Nas conjunturas prementes dependeu-lhe, por vezes, a fortuna, até do gesto de uma mulher - a sua própria esposa, amazona gentilmente heróica, que não raro travando de uma espada e precipitando-se, à espora feita, a cavalo, pelo campo das manobras ou no mais aceso dos combates, ia eletrizar com a presença encantadora os coronéis embevecidos e os regimentos vacilantes...
Assim não se poderiam exigir à vida em tanta maneira perturbada e romântica, daquele presidente, ponderosas medidas administrativas. Acompanhamo-la apenas com o interesse artístico de quem segue a urdidura de imaginosa novela sulcada de episódios alarmantes, ou dramáticos, até desfechar no sacrifício, inútil e glorioso, do protagonista, sucumbindo sob uma carga furiosa dos lanceiros bolivianos nas esplanadas de Viacho...
Mas no volver de uma das páginas salteia-nos esta surpresa:
"El ciudadano Agustín Gamarra - Gran mariscal restaurador del Perú, benemérito a la patria in grado heroico y eminente, etc. "Considerando que para promover la navigación por vapor en el rio de Amazonas y sus confluentes és necesario proporcionar facilidades y ventagens que indemnicen a los empresarios...
"Decreta: 1º Se concebe al ciudadano brasileiro D. Antonio Marcelino Pereira Ribeiro el privilegio exclusivo de navegar por buques de vapor en el rio Amazonas, en la parte que corresponde al Perú e todos sus afluentes.
"... 3º Los buques de vapor levarón el pabellón brasileiro...
"Dada en la casa de Gobierno de Lima a 6 de Julio de 1841."[2]
Este decreto, extratado nos trechos principais, inculca ao mesmo tempo o caudilho, no recacho presuntuoso que lhe emprestam aqueles adjetivos e substantivos constrangidos a escoltarem-lhe o nome, e o governante, que primeiro traçou aos seus patrícios a marcha regeneradora para o Oriente. Mas não o reproduzimos apenas para realce dos aspectos contrariantes da História Peruana; senão também para destacar aquela figura de brasileiro, que seria inexpressiva se não constituísse o primeiro termo de uma série de compatriotas obscuros, erradios dos nossos fastos e elegendo-se por atos memoráveis entre os melhores servidores da nação vizinha.
De fato, à medida que se rastreia a marcha peruana para o levante, exposta em todos os seus pormenores, miudeada em regulamentos, em decretos, em circulares e em ofícios - porque é a suprema preocupação política, militar e administrativa do Peru - observa-se nas referências obrigatórias e incisivas ao elemento brasileiro, o intercurso de uma outra avançada obscura, mas vigorosa, e contrapondo-se-lhe numa expansão tão enérgica, para o ocidente, que com os seus efeitos a despontarem de longe em longe, precisamente nos períodos mais decisivos da primeira, se restauraria todo um capítulo da nossa História, que se perdeu ou se fracionou despercebido à visão embotada dos cronistas, para ressurgir agora, esparso em fragmentos surpreendentes, nas entrelinhas da História de outro povo.
É o que demonstram outros casos, entre nós inéditos. Apontemo-los de relance.
No período abrangido pelos governos do austero Marechal Castilla, as explorações prosseguiram. Castelnau desceu das cabeceiras do Urubamba às ribas do Amazonas; Maldonado imortalizou-se descobrindo, numa excursão temerária, a nova estrada para o Atlântico ajustada ao sulco desmedido do Madre de Diós; e Raimondi desvendou os tesouros da mesopotâmia de 16.000 léguas quadradas de terras exuberantes, interferidas pelos cursos do Huallaga e do Ucaiáli. Por fim Montferrir calculou, rigorosamente, as riquezas da Canaã vastíssima: 50.000.000 de hectares, valendo o mínimo de meio bilhão de pesos.
A aritmética tornava-se quase lírica nesta dilatação de números maravilhosos.
As medidas governamentais do grande Marechal tiveram para logo o alento dos mais enérgicos estímulos patrióticos, a par do anseio de fortuna dos mais desassombrados aventureiros.
Os peruanos, iludidos durante largo tempo no litoral estéril, viam pela primeira vez o novo mundo. E a conquista da terra, numa de suas fases mais agudas, desenrolou-se em toda a plenitude.
Então, contravindo a tantas esperanças sob o amparo das mais lúcidas resoluções governativas - leis, regulamentos e decretos enfeixando-se num volumoso compêndio de administração fecunda e militante - principiou uma fase desalentadora de brilhantes tentativas abortícias.
As colônias planeadas, e para logo erigidas, espelhavam por algum tempo naqueles rincões solitários a fantasmagoria de um progresso artificial; e extinguiam-se prestes. Já em 1854 o governador de Loreto, pueblo obscuro cujo nome irradia hoje abrangendo aqueles lugares, ao informar do estado de duas colonizações sucessivas que ali se estabeleceram, centralizadas em Caballo-Cocha, próximas à fronteira do Brasil, indicava-as completamente extintas. E idênticos malogros generalizavam-se por toda a banda.
Eram naturais. As vagas humanas nas paragens virgens não se aquietam de súbito. Carateriza-as nos primeiros estádios a instabilidade inevitável imposta pela própria força viva adquirida no movimento da marcha. Precedendo ao equilíbrio das culturas, surge a pesquisa dos frutos ou das riquezas imediatas, como a permitir aos recém-vindos, na vida errante das colheitas, dos garimpos, dos pastoreios ou das caçadas, um reconhecimento imprescindível do seu novo habitat, antes da escolha de uma situação de descanso.
É a eterna função social do nomadismo, que mesmo no Peru já se manifestara na azáfama devastadora dos cascarileros, desvendando as paragens ignotas que vão dos cerros de Carabaya às vertentes mais afastadas do Beni.
Este incentivo, porém, ali, estava extinto.
Por aquele tempo, uma tenaz explorador, Marckam, comissionado pelo governo inglês, andava nas regiões da quina calisaya; e conseguira transplantar tão prontamente para as Índias aquele elemento da fortuna peruana que, já em 1862, mais de quatro milhões de árvores, em Darjeeling, com a produção extraordinária de 370 toneladas de quinino, iniciavam uma concorrência triunfante no primeiro assalto. Deste modo, as paragens tão ansiosamente apetecidas mostravam-se, ante os novos povoadores, desnudas desses recursos que em toda a parte se figuram adrede predispostos a que não se desenfluam as esperanças sempre exageradas dos que emigram.
Não lhes bastariam, certo, as bombonaças para os chapéus de palha oriundos da indústria graciosa das mulheres do Moyobamba, ou os cascalhos auríferos das vertentes do Pastaza guardadas pelos huambizas ferocíssimos.
Assim, todos os atos, e magníficos decretos, e lúcidos regulamentos, e generosas concessões de terras, do último governo de Castilla, desfechariam nos mais lastimáveis insucessos se, precisamente na derradeira quadra da sua presidência, e no mesmo ano (1862) em que a cultura indiana da quina arrebatava daqueles desertos o seu maior atrativo _ um anônimo, um outro imortal humílimo evadido da nossa História, não aparecesse, eclipsando de golpe os mais imponentes lances administrativos e oferecendo aos peruanos o reagente enérgico que os alentaria até aos nossos dias na rota da Amazônia.
Um brasileiro descobriu o caucho; ou, pelo menos, instituiu ali a indústria extrativa correspondente.
No reconstruir este trecho da nossa História, que versado mais tarde por um historiador merecerá o título de Expansão Brasileira na Amazônia, não vamos desacompanhados.
Diz-nos um narrador sincero:[3]
"Antes do ano de 1862, não tinha ainda sido explorada a incalculável riqueza da goma elástica... Depois da entrada de alguns brasileiros para o território do Departamento, principalmente do laborioso José Joaquim Ribeiro, começou este rico produto a figurar no catálogo dos que o Departamento exporta para o Brasil. A primeira quantidade exportada foi de 2.088 quilogramas, produto dos ensaios daquele brasileiro que muito teria contribuído para o desenvolvimento dessa indústria, se ao iniciá-la não encontrasse contrariedades nascidas do cupidismo de alguns agentes subalternos que contra ele exerceram todos os ardis..."
Não comentemos o desquerer das autoridades peruanas. Era antigo. Desde 1811 o reportado D. Manoel Ijurra denunciava "los Brazileros más próximos al Perú que tienen la bárbara costumbre de armar expediciones militares con objeto de haccer correrías sobre los indios Maynas, atropelando muchas veces las autoridades..."; ou apresentava-os como "absolutos monopolizadores del comercio de importación o exportación."[4]
Cinco anos depois, em ofício alarmante, o Subprefeito de Maynas solicitava providências urgentíssimas "al intuito de que los Brazileros moradores de Caballo-Cocha, salgan fuera de esta provincia, se buenamente no quieren, por la fuerza"; e pintava-os laivando-os dos mais denegridos estigmas. Por fim o Governador-Geral das Missões (1849) determinou se exigissem passaportes de todos os brasileiros que lá entrassem, gaguejando num castelhano emperrado esta razão curiosíssima: "que no se experimentaba provecho alguno en estos negociantes del Brazil; ni menos hay bayonetas con que poder conterlos; hacen lo que quieren metiendo-se por los rios, extraendo zarza, manteca, salado e otras especies..."[5]
Não prossigamos.
Adivinha-se nestas linhas, que poderiam ser prolongadas, a invasão formidável que se alastrava avassaladora para o ocidente, desafiando os ódios do estrangeiro; espraiando-se pelo vale do grande rio, por Loreto, Caballo-Cocha, Moremote, Perenate, Iquitos, até Nauta, na embocadura do Ucaiáli; subindo pelo Ucaiáli em fora até além do Pachitéa: deixando nos mais vários pontos, nos sítios numerosos, nas trilhas coleantes do deserto, e até nos costumes ainda persistentes, os traços indeléveis da passagem.
Se a historiássemos contraporíamos às verrinas oficiais dos subprefeitos apavorados, cujos dizeres se pejoravam à medida que progredia aquela surda conquista do solo, os próprios conceitos de Antonio Raimondi. Mas aquele belo tipo de Joaquim Ribeiro, que em 1868 o maior naturalista peruano foi encontrar nas margens do Itaia possuindo as melhores fazendas do Departamento, concretiza uma réplica irrefragável. Não o pearam tão pequeninos empeços. Criada a indústria extrativa, a exportação da borracha a partir de 1871 erigiu-se preeminente entre as dos demais produtos de Loreto. E as turmas dos extratores, sem nenhuns amparos oficiais, rompendo espontâneos de toda a parte e arremetentes com as mais desfreqüentadas espessuras, ultimaram em pouco tempo a empresa quase secular tantas vezes cindida de reveses.
Desvendou-se todo o Oriente.
Mas há um reverso no quadro.
A exploração do caucho como a praticam os peruanos, derribando as árvores, e passando sempre à cata de novas "manchas" de castilloas ainda não conhecidas, em nomadismo profissional interminável, que os leva à prática de todos os atentados nos recontros inevitáveis com os aborígenes - acarreta a desorganização sistemática da sociedade. O caucheiro, eterno caçador de territórios, não tem pega sobre a terra. Nessa atividade primitiva apuram-se-lhe, exclusivos, os atributos da astúcia, da agilidade e da força. Por fim, um bárbaro individualismo. Há uma involução lastimável no homem perpetuamente arredio dos povoados, errante de rio em rio, de espessura em espessura, sempre em busca de uma mata virgem onde se oculte ou se homizie como um foragido da civilização.
A sua passagem foi nefasta. Ao cabo de 30 anos de povoamento, as margens do Ucaiáli, tão nobilitadas outrora pela abnegação dos missionários de Sarayaco, patenteiam, hoje, nos seus vilarejos diminutos, uma decadência moral indescritível.
O Coronel Pedro Portillo, atual Prefeito de Loreto, que as visitou em 1899, denunciou-a, indignado: Alli no hay leyes... El más fuerte que tiene más rifles, es el dueño de la justicia". Verberou depois o tráfico escandaloso de escravos...[6] E, afinados pelo mesmo tom, um sem-número de outros excursionistas, que fora longo citar, delatam, em narrativas expressivas, o regime de tropelias que se normalizou naquelas terras - e se amplia seguindo os rastros do homem que passa pelo deserto com o só efeito de barbarizar a própria barbaria.
Ora, na presciência dos inconvenientes desta exploração, que, entretanto, determinou o pleno desdobramento de seu domínio no Oriente, o governo peruano nunca renunciou ao seu primitivo propósito de uma colonização intensiva. E para ao mesmo tempo garantir o tráfego do melhor caminho para o Amazonas, pelo Ucaiáli, que vai da estação terminus de Oroya aos tributários principais do Pachitéa, estabeleceu em 1857, à margem de um deles, o Rio Pozuzo, a colônia alemã, que sobre todas lhe monopolizou os cuidados e uma solicitude nunca interrompida.
Realmente, a situação era admirável. À média distância de Iquitos, próxima aos afluentes navegáveis do Ucaiáli e num solo exuberante, o núcleo estabelecido era, militar e administrativamente, o mais firme ponto estratégico daquele combate com o deserto, justificando-se os esforços e extraordinárias despesas que se fizeram para um rápido desenvolvimento, que as melhores condições naturais favoreciam.
Mas não lhe vingou o plano. A exemplo do que acontecera em Loreto, os novos povoadores, embora mais persistentes, anulavam-se, estéreis. A colônia paralisara-se, tolhiça, entre os esplendores da floresta. Reduziu-se a culturas rudimentares que mal lhe satisfaziam o consumo. E o progresso demográfico, quase insensível, retratava-se numa prole linfática, em que o rijo arcabouço prussiano se engelhava na envergadura esmirrada do quíchua. Ao visitá-la, em 1870, o Prefeito de Huanuco, Coronel Vizcarra, quedou atônito e comovido: os colonos apresentaram-se-lhe andrajosos e famintos, pedindo-lhe pão e vestes para velarem a nudez. O romântico D. Manoel Pinzás, que descreveu a viagem, pinta-nos em longos períodos soluçantes os lances daquele cuadro desgarrador!, suspendendo-o em dois rijos pontos de admiração.[7]
Viu-o ainda, passado um lustro, com as mesmas cores sombrias, o Dr. Santiago Tavara, ao descrever a primeira viagem do Almirante Tucker.
Por fim, transcorridos trinta anos, o Coronel P. Portillo na sua rota do Ucaiáli teve notícias certas do núcleo povoador: era uma Tebaida aterradora. Lá dentro os primitivos colonos e os seus rebentos degenerados agitavam-se vítimas de um fanatismo irremediável, na mandria dolorosa das penitências, a rezarem, a desfiarem rosários e a entoarem umas ladainhas intermináveis numa concorrência escandalosa com os guaribas da floresta.[8]
Ora, o excursionista, que é hoje um dos mais lúcidos políticos peruanos, para agravar-se-lhe o desapontamento ante este malogro completo da colônia predileta da sua terra, tivera dias antes, ao passar em Puerto Victoria, na confluência do Pichis e do Palcazu, formadores do Pachitéa, um espetáculo completamente diverso. De fato, Puerto Victoria surgira e desenvolvera-se, tornando-se a estância mais animada e opulenta daquela redondeza, sem que o governo peruano soubesse ao menos do seu aparecimento.
Jamais cogitara em povoar aquele trecho.
A paragem era malsinada. Rodeavam-na os mais bravios entre os selvagens sul-americanos: os campas do Pajonal, ao sul, e ao norte os caxibos indomáveis, que em 1866 haviam trucidado em Chonta-Isla, que lhe demora a jusante, os oficiais de marinha Tavara e West. O Prefeito Benito Arana, que ali andara naquele mesmo ano, fora, em som de guerra, com dois vapores e uma lancha artilhada, em revide àquela afronta sanguinolenta. Saltou em terra; meteu-se pela mata; travou pequeninos recontros em formidáveis tiroteios; volveu num triunfo singularíssimo, encalçado de perto pelos selvagens, que o frechavam; embarcou no tumulto da sua gente vitoriosa, e fugindo; canhoneou furiosamente as barrancas; volveu, precípite, águas abaixo, deixando na Playa del Castigo um traço romanesco da sua empresa tormentosa...
E durante três decênios a região sinistra permaneceu no isolamento que lhe criavam as gente apavoradas...
Até que, provindos do ocidente e vencendo à voga arrancada, nas ubás esguias, as correntezas fortes do Pachitéa, atravessaram-na de extremo a extremo e foram abordar na confluência do Pichis alguns aventureiros destemerosos.
Eram uns caboclos entroncados, de tez morena e baça, e musculatura seca e poderosa. Não eram caucheiros. A palavra remorada não lhes vibrava na fanfarrice ruidosa. Ao invés de um tambo, improvisaram um tejupar mal arranjado. Não se armaram do cuchillo, misto de punhal e de navalha. Pendiam-lhes à cintura as facas de arrasto, longas como as espadas.
Aperceberam-se sem ruídos para a empresa e penetraram, vagarosamente, na floresta...
Não se conhecem as peripécias da entrada temerária, que foram sem dúvida excepcionalmente dramáticas. Os caxibos têm no próprio nome a legenda da sua ferocidade. Caxi, morcego; bo, semelhante. Figuradamente: sugadores de sangue. Ainda nos seus raros momentos de jovialidade aqueles bárbaros assustam, quando o riso lhes descobre os dentes retintos do sumo negro da palmeira chonta; ou estiram-se de bruços, acaroados com o chão, as bocas junto à terra, ululando longamente as notas demoradas de uma melopéia selvagem.
Atravessaram, indenes na bruteza, trezentos anos de catequese; e são ainda a tribo mais bravia do vale do Ucaiáli.
Mas ao que se figura não pulsearam com vantagem o vigor nos novos pioneiros.
É que o bárbaro sanguinário tinha pela frente, enterreirando-o, um adversário mais temeroso, o jagunço.
Os recém-vindos eram brasileiros do Norte; e o seu patrão, Pedro C. de Oliveira, mais um modelo de lidador obscuro aparecendo em lances de fecundas iniciativas entre os acontecimentos de uma história estranha. Para aquilatar-se-lhe a valia, observemos de relance que em janeiro de 1900 foi nomeado, apesar da sua nacionalidade, governador de toda a zona que o seu barracão centralizava.[9]
O Coronel Portillo, que ali deparou agasalho sincero sem o pregão de rasgados oferecimentos, tão característico da nossa gens obscura, trai em todos os conceitos que emitiu no seu relatório - desde o primeiro dia até despedir-se da "muy estimable familia del señor Olivera", o encanto que lhe causou a estância animadíssima no centro de suas culturas fartas, e inteligentemente locada com as numerosas vivendas circulantes no alto da barranca, a prumo sobre a margem esquerda do rio, que se alcançava subindo uma longa escadaria resistente e tosca. Cativaram-no, sobretudo, os valentes tranqüilos que se lhe mostraram modestíssimos em pleno triunfo sobre a barbaria e a terra. Por fim, à sua visão esclarecida não escapou que aquele forasteiro, sem um decreto e sem uma subvenção, resolvera o problema colimado pelo governo de seu país, fundando no lugar mais conveniente a estação garantidora da "via central" demandando a Amazônia. Disse-o nuamente: Porto Vitória era o lugar mais apropriado para a guarnição militar e alfândega que protegessem a importação e exportação da colônia de Chanchamayo, norte de Pajonal, Tarma e montañas do Palcazu, Matro e Pozuzo.
Concluiu: "La casa de Olivera debe ser tomada por el Supremo Gobierno como la más aparente para las oficinas de la capitania, aduana e comandancia militar."
Foi aceito o alvitre. Um decreto do Presidente Pierola ordenou a demarcação de Puerto Victoria para estabelecer-se comisaría destinada a proteger os colonizadores daquelas terras; e num grande ciúme da situação vantajosa adquirida revelou o intento de uma posse exclusiva "no consentiendo, alli, en el radio de un quilómetro, poblador alguno".[10]
O Peru conseguira realmente uma estação fluvial admirável. E os brasileiros retiraram-se.
Passaram cinco anos.
Em 1905 um touriste parisiense, J. Delebecque, desceu o Pachitéa, em viagem para o Amazonas, e não notaria a estância outrora florescente se não o acompanhassem alguns índios mansos conhecedores dos lugares.[11]
No alto da barranca, que os enxurros solapavam, viam-se apenas alguns tetos abatidos e restos de culturas afogadas num carrascal bravio.
O porto era uma ruína.
O viajante ali permaneceu por algumas horas a fim de secar as suas roupas encharcadas ao calor de uma fogueira feita com as portas desquiciadas e ombreiras vacilantes das vivendas, consoante praticam todos os que por ali passam na travessia de Iquitos; e considerou, melancolicamente, que daquele jeito Puerto Victoria seria em breve apenas uma recordação.
Depois abalou rio abaixo, a toda a voga, fugindo da paragem que se ermana no mais completo abandono...Notas
[editar]- ↑ Es evidente que, en el fondo de este asunto hay una necesidad imperiosa de la república… los destinos del Perú no pueden ser cumplidos sin el domínio de esa zona (Dr. Y. Capelo, Exposición Histórica de la Via Central, 1898)
- ↑ El Peruano. Tomo VIII, n. 9.
- ↑ J. Wilkens de Matos. Dicionário Topográfico do Departamento de Loreto. Pará, 1874. pp. 30 e 31.
- ↑ M. Ijurra. Resumen de los Viajes a las Montañas de Maynas, 1811-1915.
- ↑ Colección de Leyes, Decretos, etc., referentes al departamento de Loreto. Tomos V (p. 198) e VII (p. 5).
- ↑ Colección de Leys. Tomo III, p. 506.
- ↑ D. Manuel J. Pinzás. Diario de la Exploración de los Rios Palçazu, Matro e Pachiteá. Huanaco, 1870.
- ↑ Colección de Leys. Tomo III, p. 531.
- ↑ Registro Oficial del Departamento de Loreto. Ano 1900, p. 10.
- ↑ La Montaña, 1899, p. 26.
- ↑ A Travers l'Amérique du Sud, 1907.