A Transacreana
Transacreana
[editar]A carta da Amazônia, no trato que demora ao ocidente do Madeira, é o diagrama de seu povoamento inicial. A história da paragem nova, antes de escrever-se, desenha-se. Não se lê, vê-se. Resume-se nos longos e torturosos riscos do Purus, do Juruá e do Javari.
São linhas naturais de comunicação a que nenhumas se emparelham no favorecer um dilatado domínio. Geometricamente, os seus talvegues, rumados no sentido geral de SO para NE, num quase paralelismo, oblíquos aos meridianos, facultam avançamentos simultâneos em latitude e em longitude; sob o aspeto físico, à parte os entraves artificiais oriundos do abandono em que jazem, estiram-se de todo desimpedidos. Travam-se-lhes os mais privilegiados requisitos. Na grande maioria dos rios amazônicos, e sobretudo no Vale do Ucayali, os empeços naturais acumulam-se ao ponto de originarem estranhos termos geográficos. Neles não há citar-se um só. Nem pongos vertiginosos, nem despenhadas urmanas, nem muiúnas remoinhantes ou vueltas del diablo desesperadores…
Daí esta expressiva conseqüência histórica: enquanto no Tocantins, no Tapajós, no Madeira e no Rio Negro, o povoamento, iniciado desde os tempos coloniais, se entorpeceu ou retrogradou, retratando-se na ruinaria dos vilarejos a caírem com as barrancas solapadas, ali, ajustando-se-lhes às margens, progrediu tão de improviso que determinou, em menos de cinqüenta anos, uma dilatação de fronteiras.
Era inevitável. O forasteiro, ao penetrar o Purus ou o Juruá, não carecia de excepcionais recursos à empresa. Uma canoa maneira e um varejão, ou um remo, aparelhavam-no às mais espantosas viagens. O rio carregava-o; guiava-o; alimentando-o; protegendo-o. Restava-lhe o só esforço de colher à ourela das matas marginais as especiarias valiosas; atestar com elas os seus barcos primitivos e volver águas abaixo — dormindo em cima da fortuna adquirida sem trabalho. A terra farta, mercê duma armazenagem milenária de riquezas, excluía a cultura. Abria-se-lhe em avenidas fluviais maravilhosas. Impôs-lhe a tarefa exclusiva das colheitas. Por fim tornou-lhe lógico o nomadismo.
O nome de “montaria”, da sua ubá aligeirada, é extremamente expressivo. Ela o ajustou àquelas solidões de nível, como o cavalo adaptou o tártaro às estepes. Esta diferença apenas: ao passo que o calmuco tem nos infinitos pontos do horizonte infinitos rumos atraindo-o ao nomadismo irradiante à roda da sua Yurte, que ao mudar-se se afigura imóvel no círculo indefinido das planuras — o jacumaúba amazonense, subordinado a roteiros lineares, adscrito a direções imutáveis, ficou largo tempo constrangido entre as barrancas dos rios. Mal poderia libertar-se em desvios de poucas léguas pelos sulcos laterais dos tributários. Ao invés do que se acredita, aquelas redes hidrográficas, entretecidas de malhas tão contínuas, não misturam as águas das caudais diversas em largas anastomoses, insinuando-se pelas imperceptíveis linhas de vertentes abatidas nas planícies encharcadas. O Paraná-Mirim volve sempre ao leito principal de onde se esgalhou; e o igarapé acaba no lago que ele alimentou nas cheias para que o alimente nas vazantes, correndo em sentidos opostos consoante as estações; ou extingue-se, ampliando-se nos plainos empantanados escondidos pela flórula anfíbia dos igapós inextricáveis de lianas. Entre um curso d’água e outro, a faixa da floresta substitui a montanha que não existe. É um isolador. Separa. E subdividiu, de fato, em longos caminhos isolados, as massas povoadoras que demandavam aquela zona.
Viu-se então, de par com primitivas condições tão favoráveis, este reverso: o homem, em vez de senhorear a terra, escravizava-se ao rio. O povoamento não se expandia: estirava-se. Progredia em longas filas, ou volvia sobre si mesmo sem deixar os sulcos em que se encaixa — tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso ilusório, de recuos e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra, explora-a e volta pelas mesmas trilhas — ou renova, monotonamente, os mesmos itinerários da sua inambulação invariável. Ao cabo, a breve, mas agitadíssima história das paragens novas, à parte ligeiras variantes, ia imprimindo-se toda, secamente, naquelas extensas linhas desatadas para SO: três ou quatro riscos, três ou quatro desenhos de rios, coleando, indefinidos, num deserto…
Ora, este aspeto social desalentador, criado sobretudo pelas condições em começo tão favoráveis, dos rios, corrige-se pela ligação transversa de seus grandes vales.
A idéia não é original, nem nova. Há muito tempo, com intuição admirável, os rudes povoadores daqueles longínquos recantos realizaram-na com a abertura dos primeiros “varadouros.”
O varadouro — legado da atividade heróica dos paulistas compartido hoje pelo amazonense, pelo boliviano e pelo peruano — é a vereda atalhadora que vai por terra de uma vertente fluvial a outra.
A princípio tortuoso e breve, apagando-se no afogado da espessura, ele reflete a própria marcha indecisa da sociedade nascente e titubeante, que abandonou o regaço dos rios para caminhar por si. E foi crescendo com ela. Hoje nas suas trilhas estreitíssimas, de um metro de largura, tiradas a facão, estirando-se por toda a parte, entretecendo-se em voltas inumeráveis, ou encruzilhadas, e ligando os afluentes esgalhados de todas as cabeceiras, do Acre para o Purus, deste para o Juruá e daí para o Ucayali, vai traçando-se a história contemporânea do novo território, de um modo de todo contraposto à primitiva submissão ao fatalismo imponente das grandes linhas naturais de comunicação.
Nos seus torcicolos, impostos pelas linhas mais altas das pequenas vertentes deprimidas, sente-se um estranho movimento irrequieto, de revolta. Trilhando-os, o homem é, de fato, um insubmisso. Insurge-se contra a natureza carinhosa e traiçoeira, que o enriquecia e matava. Repelelhe tanto os amparos antigos que realiza na maior das mesopotâmias a anomalia de navegar em seco; ou esta transfiguração: carrega de um rio para o outro o barco que o carregava outrora. Por fim, numa afirmativa crescente da vontade, vai estirando de rio em rio, retramada com os infinitos fios dos igarapés, a rede aprisionadora, de malhas cada vez menores e mais numerosas, que lhe entregará em breve a terra dominada.
E do Acre para o Iaco, para o Tauamano e para o Orton; do Purus para o Madre de Dios, para o Ucayali, para o Javari, trilhando aforradamente o território em todos os quadrantes, os acreanos, despeados do antigo traço de união do Amazonas longínquo, que os submetia, dispersos, ao litoral afastado, vão em cada uma daquelas veredas atrevidas, firmando um símbolo tangível de independência e de posse.
Tomemos um exemplo de testemunho estrangeiro.
Em 1904 o oficial da marinha peruana, Germano Stiglich, encontrou no Javari vários brasileiros, que o surpreenderam com a simples narrativa de uma travessia costumeira, ante a qual se apequenavam as suas mais estiradas rotas de explorador notável. Registrou-a em um de seus relatórios: os sertanistas entram pelo Javari, subindo o Itacoaí até às cabeceiras; varam dali, por terra, a buscarem as vertentes do Ipixuna, alcançam-nas; transmontam-nas; descem o pequeno tributário; chegam ao Juruá; navegam até S. Felipe, onde infletem, penetrando o Tarauacá, o Envira e o Jurupari até aonde subam as suas canoas ligeiras; deixam-nas; rompem outra vez por terra a encontrarem o Purus nas cercanias de Sobral; descem, embarcados, 760 km do grande rio até a foz do Ituxi; e enveredando por este último, vão, depois de uma outra varação por terra, atingir o Abunã, que baixam, abordando, afinal, à margem esquerda do Madeira.
A derrota, com a percentagem de 20% sobre as retas da desmedida linha quebrada que a define, avalia-se em 3.000 km, ou o dobro da estrada tradicional, dos bandeirantes, entre S. Paulo e Cuiabá. Os obscuros pioneiros prolongam a estes dias a tradição heróica das entradas, que constituem o único aspeto original da nossa história.
Aquele roteiro, entretanto, alonga-se contorcendo-se em voltas sobremaneira extensas. Abreviemo-lo, baseando-nos em alguns dados seguros.
Partindo de Remate dos Males, no Javari, nas cercanias de Tabatinga, o viajante, em qualquer estação, pode sulcar num dia o Itacoaí até a confluência do Ituí, percorrendo 140 km itinerários. Prossegue por terra em terreno firme, no rumo de SE pelo extenso varadouro de 190 km que corta as cabeceiras do Jutaí e termina em S. Felipe, à margem do Juruá, empregando apenas cinco dias de marcha. Sobe o Tarauacá, embarcado, até a foz do Envira; e desta à do Jurupari, prosseguindo a buscar as suas mais altas vertentes, num percurso máximo de 350 km que vencerá em pouco mais de uma semana. Rompe o breve varadouro que o leva ao Furo do Juruá, e atinge, descendo-o, ao fim de dois dias, o Purus. Daí à faz do Iaco há 392 Km, que se correm em dois dias, de lancha, realizados os ligeiros reparos de que carece o rio. A sede da Prefeitura do Alto Purus, distante 24 km, alcança-se em duas horas de navegação; e dali, pelo varadouro do Oriente, longo de 25 léguas percorrido normalmente em cinco dias, chega-se ao seringal Bagé, à margem esquerda do Acre. Transpondo este rio e seguindo para leste a cortar os derradeiros tributários do Iquiri e os campos do Gavião, o caminhante vai ao Abunã, a jusante da embocadura do Tipamanu, e daí ao Beni, na confluência do Madeira, percorrendo cerca de 300 km em oito dias, por terra. Deste modo, em pouco mais de um mês de travessia, vencendo-se 907 km por águas e 660 por terra, pode-se vir de Tabatinga a Vila Bela, diagonalmente, de um a outro extremo da Amazônia, naquele itinerário de 250 léguas.
A estes números falta, sem dúvida, o rigorismo das quilometragens regulares; mas não variam talvez de um décimo sobre a realidade, à parte os dados demasiado falíveis relativos à navegação do Tarauacá e ao rumo por terra do Jurupari ao Purus.
Excluamo-los nesta variante: partindo do mesmo ponto à margem do Javari e sulcando o Itacoaí até aos seus derradeiros formadores, o viajante encontra o antigo varadouro do Ipixuna que o conduz ao Juruá e a Cruzeiro do Sul, capital do Departamento, em percurso pouco maior do que o anterior por S. Felipe.
Ora, de Cruzeiro do Sul às sedes dos departamentos do Purus e do Acre podem remover-se todos os inconvenientes daquela navegação precária, sujeita a fatigante roteiro.
De fato, o extenso segmento retilíneo, de 605 km, da linha Cunha Gomes, é a própria linha de ensaio de um varadouro notável ligando as três sedes administrativas. Dando-se-lhe o desenvolvimento exagerado de 20% sobre a distância, terá a extensão de 726 km; ou sejam, exatamente, 110 léguas, que podem ser transpostas em grande parte, a cavalo, em menos de doze dias.
Observe-se, de passagem, que este projeto não se delineia nos riscos arbitrários a que se avezam os exploradores de mapas, ou consoante “o conhecido processo do czar Nicolau I, riscando com a unha do polegar o traçado da estrada de Petersburgo a Moscou”.
Esteia-se em reconhecimentos, certo despidos de azimutes, ou cotas esclarecedoras de aneróides, mas práticos e concludentes. O primeiro trecho, normal ao vale do Taruacá, planeado pelo general Taumaturgo de Azevedo, já se acha em grande parte aberto por um seringueiro de Cocamera — e estende-se em terrenos tão afeiçoados à marcha que, depois de concluído o caminho, “ir-se-á do Juruá ao Tarauacá, a cavalo, em quatro dias”, conforme afirma o ex-prefeito em seu penúltimo relatório; ao passo que atualmente, para efetuar-se a mesma viagem, “em vapor, que faça poucas escalas e dobre a foz do Tarauacá, consomem-se 15 dias, no mínimo”.
O segmento intermédio, de Barcelona ou Novo Destino à confluência do Caeté, no Iaco, por sua vez estudado pela Prefeitura do Alto Purus, é de execução facílima, todo desatado sobre breve altiplano livre das inundações. E o último, do Iaco ao Acre, tem há muito tempo um tráfego permanente.
Deste modo a grande estrada de 726 km, unindo os três departamentos, e capaz de prolongar-se de um lado até ao Amazonas, pelo Javari, e de outro até ao Madeira, pelo Abunã, está de todo reconhecida, e na maior parte trilhada.
A intervenção urgentíssima do Governo Federal impõe-se como dever elementaríssimo de aviventar e reunir tantos esforços parcelados.
Deve consistir porém no estabelecimento de uma via férrea — a única estrada de ferro urgente e indispensável no Território do Acre.
Atalhemos uma objeção inicial.
A fisiografia amazônica figura-se sempre obstáculo indispensável a tais empresas. Mas os que a agitam, em argumentos que temos por escusado reproduzir, não podem, certo, compreender as linhas férreas da Índia. De fato, no Industão propriamente dito, o nivelamento superficial, o solo aluviano de areias e argilas acumuladas em espessuras indefinidas, e as características climáticas, patenteiam-se em condições idênticas. Ali, como na Amazônia, os rios destacam-se pela grandeza, volumes excessivos nas cheias, amplitude das inundações, e volubilidade dos canais nos leitos divagantes. Os nullah incontáveis, serpeantes por toda a banda, desenham-se na hidrografia caótica dos igarapés; e o Purus, o Juruá, o Acre e seus tributários, não variam tanto de curso e de regime quanto o Ganges e os rios de Punjab, cujas pontes foram o maior problema que resolveu a engenharia inglesa.
Na Índia, como entre nós, não faltaram profissionais apavorados ante as dificuldades naturais — esquecidos de que a engenharia existe precisamente para vencê-las. Ao discutir-se o memorandum Kennedy, onde germinou a viação hindu, o coronel Grant, do corpo de engenheiros de Bombaim, pilheriou sisudamente, propondo com a maior seriedade que os trilhos se suspendessem em todo o correr das linhas por meio de séries regulares de cadeias, em rijos postes fronteantes, a oito pés acima do solo… E desafiou o humour magnífico de seus fleugmáticos colegas. Os rígidos railroadmen replicaram-lhe tempos depois, esmagadoramente, com a West Indian Peninsular, e nobilitaram toda a engenharia de estradas de ferro obedecendo a uma de suas fórmulas mais civilizadoras, enunciada por Mac-George:
In every country it is necessary that railway should be laid out with references to the distribuition of population and to the necessities of people, rather than to the mere physical characteristics of its geography…
Ora, no caso atual, ainda esses caracteres físicos e geográficos evidenciam-se favoráveis.
A estrada de Cruzeiro do Sul ao Acre não irá, como as do Sul do nosso país, justapondo-se à diretriz dos grandes vales, porque tem um destino diverso. Estas últimas, sobretudo em S. Paulo, são tipos clássicos de linhas de penetração: levam o povoamento ao âmago da terra. Naquele recanto amazônico esta função, como o vimos, é desempenhada pelos cursos d’água. À linha planeada resta o destino de distribuir o povoamento, que já existe. É uma auxiliar dos rios. Corta-lhes, por isto, transversa, os vales.
Daí esta conseqüência inegável: adapta-se, naturalmente, mercê da própria direção, às deprimidas áreas divisórias dos afluentes laterais, e, acompanhando-os, forra-se em grande parte aos empecilhos daquela hidrografia embaralhada.
Por outro lado, ao sul do paralelo de 8º persiste, certo, o facies predominante da enorme várzea amazonense. Mas atenuado. A inconstância tumultuária das águas não se retrata em curvas tão numerosas e volúveis. Os terrenos, expandindo-se em ondulações ligeiras com a altitude média, absoluta, de 200 metros, são, no geral, firmes e a cavaleiro das enchentes. Trilhamo-los em vários pontos. Está-se, visivelmente, sobre formações mais antigas, definidas e estáveis, que as da imensa planura pós-quaternária onde ainda se adivinham as derradeiras transformações geológicas do Amazonas, no conflito inevitável entre os cursos d’água inconstantes e a várzea inconsistente.
Além disto, os obstáculos naturais, reduzem-nos, ou amortecem-nos, os traçados que se lhes afeiçoem. A via férrea em questão deve modelar-se pelas condições técnicas menos dispendiosas a um primeiro estabelecimento — caracterizando-se, sobretudo, por uma via singela, de bitola reduzida, de 0,76 m ou 0,91 m, ou no máximo de 1,0 m entre trilhos, que lhe permita os maiores declives e as menores curvas, dando-lhe plasticidade para volver-se em busca dos terrenos mais altos e estáveis, que lhe alteiem o grade acima das zonas inundadas em traçados quase à flor da terra. Deve nascer como nasceram as maiores estradas atuais: trilhos de 18 quilos, no máximo, por metro corrente, capazes de locomotivas de escasso peso aderente de 15 a 20 toneladas; curvas que se arqueiem até aos raios de 50 metros; e declives que se aprumem até 5% submetidos a todos os movimentos do solo.
Não os tem muito melhores a Central Pacific, de Nevada, com a sua bitola estreita, sem balastro, serpeando com a mesma levidade de trilhos em curvas de 90 metros, e tornejando pendores em rampas inclassificáveis. Ou o Transiberiano, onde locomotivas de 30 toneladas, rebocando 1/6 de peso aderente sobre trilhos de 19 quilos, andando com a velocidade de 20 km por hora, não raro recuavam, desandando, constrangidas se encontravam de frente, repelindo-as, ponteiras, as ventanias ríspidas das estepes…
Sem dúvida, de uma tal superestrutura, a que se liga o imperfeito do material rodante, de tração ou transporte, resultará reduzidíssima capacidade de tráfego. Mas a linha acreana, a exemplo da Union Pacific Railway, não vai satisfazer um tráfego, que não existe, senão criar o que deve existir.
Como as norte-americanas, construir-se-á aceleradamente, para reconstruir-se vagarosamente.
É um processo generalizado.[1] Todas as grandes estradas, no evitarem os empeços que se lhes antolham transpondo as depressões e iludindo os maiores cortes com os mais primitivos recursos que lhes facultem um rápido estiramento dos trilhos, erigem-se nos primeiros tempos como verdadeiros caminhos de guerra contra o deserto, imperfeitos, selvagens. E como para justificar o asserto, o primeiro engenheiro das suas obras rudimentares — que hoje se fazem como há dois mil anos — de suas estacadas, de suas pontes e pontilhões de madeira mal lavradas, superpostas em linhas sobre os styli fixi dos tanchões roliços, é César.
Depois evolvem; e crescem, aperfeiçoando os elementos da sua estrutura complexa, como se fossem enormes organismos vivos transfigurando-se com a própria vida e progresso que despertam.
É o que sucederá com a que prefiguramos. Das primeiras linhas deste artigo ressaltam-lhes os efeitos sociais, que senão pormenorizam por demasiado intuitivos, nos múltiplos aspetos que vão do simples fato concreto da redistribuição do povoamento — locando-se com segurança os núcleos coloniais ou agrícolas e demarcando-se legalmente as terras indivisas — à gerência mais pronta, mais desimpedida, mais firme, dos poderes públicos, que hoje ali se triparte, desunida, em sedes administrativas impostas exclusivamente pelas vicissitudes geográficas.
Tais resultados por si sós bastariam a justificar excepcionais dispêndios.
Entretanto, estes são opináveis. Sob a ação imediata do Governo, e entregue desde a exploração definitiva à nossa engenharia militar, tudo induz a crer que as três principais seções – do Juruá ao Purus, deste ao Iaco, e do Iaco ao Acre – atacadas ao mesmo tempo e favorecidas pelo fácil transporte fluvial dos materiais necessários, por aqueles rios, se construirão de maneira expedita e com os recursos das próprias rendas locais.
Realmente, as suas obras de arte são inapreciáveis e os trabalhos mais sérios limitam-se à construção de pontilhões e aterros, e a extensa derrubada, larga de 40 metros, para a mais intensa insolação do leito.[2]
Sobre não carecer de extensos desenvolvimentos para captar alturas, a linha não só dispensará túneis para vará-las, ou viadutos, e até cortes apreciáveis, como ainda as três grandes pontes que a princípio se afiguram obrigatórias sobre o Tarauacá, o Purus e o Iaco. Cada estação terminus, extremando-lhe os segmentos precipitados, servirá ao mesmo passo à navegação fluvial do rio correspondente, e as baldeações de uma a outra margem deste far-se-ão nos primeiros tempos sem perturbarem demais o tráfego naturalmente restrito.
Assim se prorrogam dispendiosos serviços que podem efetuar-se depois, a pouco e pouco, à feição das circunstâncias. A estrada crescerá com o povoamento. E ainda que atinja aquele enorme desdobramento de 726 km e se reduza a uma via singela, com os necessários desvios, comportando apenas a velocidade diminuta de 20 km por hora, será percorrida em 36 horas justas, que podem subir a aditando-se-lhes as que se empreguem na travessia dos rios.
Realizar-se-á em dois dias a viagem de Cruzeiro do Sul ao Acre, que hoje, nas quadras mais propícias, dura mais de um mês.
A conclusão é infrangível. Não nos delonguemos enumerando-lhe os efeitos extraordinários.
Fixemos outra face da questão.
A engenharia de estradas de ferro definem-na os norte-americanos nesta fórmula concisa e irredutível: “é a arte de fazer um dólar ganhar o maior juro possível”.
Dobremo-nos ao preceito barbaramente utilitário.
O valor econômico daquele traçado é incalculável. E evidencia-se sob múltiplas formas; sendo naturalmente mais dignas de apreço as mais remotas, oriundas do progredimento ulterior, inevitável, da região atravessada.
Fora longo apontá-las. Indiquemos uma única, mais próxima, imediata e impondo-se ao raciocínio mais obtuso.
A safra da borracha nos três departamentos, entre a oblíqua Cunha Gomes e a faixa neutralizada, durante o penúltimo período comercial de 1905, conforme os documentos mais seguros, foi esta:
Rio Juruá | 3.382,134 kg |
Acre e Purus | 5.256,984 kg |
TOTAL | 8.639,118 kg |
Variando os preços atuais entre os extremos de 6$346 e 3$865, deduz-se, em números redondos, a média de 5$000 por quilo; e, subsecutivamente, o valor total da produção – Rs 43.195:590$000; acarretando os créditos gerais (23%) de 9.934:985$700.
Os números são claros e irrefragáveis.
Ora, estes rendimentos tenderão a duplicar, não já em virtude de um desenvolvimento remoto, senão pelo simples fato da abertura do caminho.
A demonstração é de algum modo gráfica, visível.
A exploração das seringueiras, toda a gente o sabe, opera-se, de um modo geral, exclusivamente nas longas fitas das massas que debruam as duas margens dos rios. Os “centros”, anexos aos barracões de primeira ordem, são raros e de ordinário pouco afastados. Ali não há propriamente superfícies exploradas, há linhas exploradas. E estas, de acordo com os dados existentes, podem ser medidas com razoável aproximação. Alongam-se, no Purus, de Barcelona até Sobral; no Iaco, de Caeté até pouco além do seringal de São João; de Cruzeiro à foz do Breu, no Juruá; e no Acre, do porto do mesmo nome até pouco a montante da confluência do Xapuri. Somando-se a estes grandes segmentos os menores, do Tarauacá, do Envira e Jurupari, chega-se à dimensão total, aproximada, de 150 léguas das faixas exploradas, admitindo-se, o que nem sempre se verifica, a continuidade das mesmas. De qualquer modo, aquela extensão é um maximum; e é a definição gráfica, visível, da importância econômica, atual, do Território.
Surge, como se vê, dos simples sulcos dos rios.
Ora, a nova linha será desde logo uma nova “estrada” aberta à entrada dos extratores na colheita pronta de produtos que até hoje não lhes exigiram nenhuns esforços de cultura. Antes de ser uma estrada de ferro será, de fato, uma enorme “estrada” de 120 léguas, quase igual à soma das que se exploram. E como as heveæ brasiliensis, ao revés das castiloas elasticas geradoras do caucho, se caraterizam pela distribuição uniforme nas florestas, não é aventurosa a proporção que nos dê, de pronto, calcada em números rigorosos, o valor imediato da linha planeada — que se construirá, inevitavelmente, em futuro mais ou menos próximo, submetida à diretriz que lhe marcamos.
Porque à importância que lhe é própria agregam-se as decorrentes do seu traçado articulando-se a outros.
Assim, desde que se ultime a “Madeira-Mamoré”, esta a atrairá, irresistivelmente para o levante, realizando-se o fenômeno vulgaríssimo de uma captura de comunicações. Então ela transporá o Acre indo buscar o Madeira na confluência do Abunã, ou em Vila Bela, extinguindo, de golpe, todos os inconvenientes de três navegações contorneantes e longas. Ao mesmo tempo, no outro extremo, dilatando-se para o oeste, perlongando o Moa e indo transmontar os cerros abatidos de Contamana, alcançará o Ucayali, deslocando para Santo Antônio do Madeira parte da importância comercial de Iquitos. Então, a transacriana modestíssima, de caráter quase local, feita para combater uma disposição hidrográfica, se transmudará em estrada internacional, de extraordinários destinos.
Considere-se, a correr, outro lado, menos atraente, deste assunto.
O valor estratégico é supletivo obrigatório dos melhores requisitos que possua qualquer sistema de comunicações em zonas fronteiriças. Mede-se, avalia-se e estuda-se friamente, tecnicamente, sem intuitos agressivos, que não seriam apenas condenáveis: seriam francamente ridículos no nosso tempo e na América.
Assim, apresentemo-lo em linhas despidas e secas, com a só eloqüência das que se gizam no resolver-se um problema de geometria elementar.
Considerem-se no mapa os traçados do Purus, do Juruá e do Javari, e os do Madre de Dios e do Ucayali. São contrariantes. Os primeiros, nos seus rumos a bem dizer uniformes e por igual intervalados, delineiam-se como distensos valos divisórios: subdividem a terra. Os últimos são desmedidos laços de união: abarcam-na. O Ucayali, a partir da confluência do Marañon, alonga-se, contorcido, de oito graus para o sul; inflete depois para leste, pelo Urubamba; e esgalhando-se no Mishagua e no Serjali vai quase anastomosar-se com os últimos manadeiros orientais do Madre de Dios. Este, a partir da confluência do Beni, que o leva ao Madeira, desata-se em extensíssima arqueadura, cortando sete graus de longitude, para o ocidente; inflete, de leve, para o norte pelo thalweg do Manu; e repartindo-se no Caspajali e no Shauinto, vai quase ao encontro das derradeiras vertentes ocidentais do Ucayali. De permeio uma tira de chão, com 5 milhas de largura: o istmo de Fiscarrald. Os dois rios abarcam quase toda a Amazônia numa área de cerca de 1.100.000 km², formando a maior península da Terra.
A pintura hidrográfica é a de desconforme tenaz agarrando um pedaço de continente nas hastes que se encurvam, constritoras, articuladas naquele istmo.
E figura-se-nos sobremodo desfavorável à defesa e garantia das nossas fronteiras naqueles lados.
Demonstremo-lo sem atavios.
Há a princípio uma ilusão oposta. Na hipótese de um conflito com os países vizinhos, acredita-se, à primeira vista, na valia incomparável daquelas três ou quatro estradas extensíssimas. Entrando pelo Purus, pelo Acre, pelo Juruá, ou ainda pelo Javari, podem mobilizar-se simultaneamente quatro corpos expedicionários em busca de outros tantos pontos longamente afastados numa faixa de operações de 700 km, distendida de NE para SO; e aqueles cursos de água recordam as diretrizes estratégicas das “vias consulares” dos romanos. Caem de rijo, perpendiculares, golpeantemente, em cima da fronteira…
Anula-os, porém, a circunvalação desmesurada Madre de Dios-Ucayali.
Revela-se o simples contraste das posições geométricas.
De fato, ao perpendicularismo de nossos caminhos de acesso arremetentes em cheio com a orla limítrofe, que entalham — contrapõe-se o paralelismo dela com as duas enormes caudais que a envolvem ou se lhe ajustam.
Daí esse corolário: os pontos obrigados daquelas lindes remotas, que para nós se erigem em objetivos lingínquos no termo da navegação dos rios — serão para os adversários os próprios pontos determinantes de suas linhas de operações. Para garantirmos um número limitado de posições precisamos de igual número de unidades combatentes e de outras tantas viagens; eles, com algumas lanchas ligeiras e de calado exíguo, defendem todas as entradas.
No caso de um reencontro feliz, a nossa vitória resumir-se-á na conquista do campo do combate; para eles será o alastramento do triunfo. Vencidos em qualquer daqueles pontos isolados, sem ligações transversais com os restantes, resta-nos o recurso único do recuo, deixando a entrada franca à invasão; o antagonista, batido e refluindo ao Pachiteá, pelo Ucayali, ou ao Inambari pelo Madre de Dios, pode refazer-se em mobilizações vertiginosas.
São deduções seguras. Completa-se outra, preexcelente, enfeixando-as: excluída a hipótese de uma ofensiva temerária, buscando o território estranho, as forças expedicionárias, no Juruá, no Purus e no Acre, predestinam-se à imobilidade, depois de chegarem aos seus objetivos remotos; expectantes, sem poderem fiscalizar os estirões de matas que as separam; ao passo que o Ucayali e o Madre de Dios, de Nauta ao istmo de Fiscarrald e deste à embocadura do Beni, são caminhos desimpedidos para as rondas permanentes de uma fiscalização generalizada.
Não se comparam sequer recursos tão diversos. Os dois últimos rios são uma estrada militar incomparável — no ligar rapidamente todos os elementos de resistência e no facilitar as mais complexas mobilizações.
Ora, a linha férrea do Cruzeiro ao Acre balancear-lhe-á o valor.
Dirigida segundo a corda daquela enorme circunvalação, contrapesará a sua influência, erigindo-se com os mesmos requisitos.
Não precisamos demonstrar. A imagem geográfica é de si mesma bastante sugestiva.
Além disto, o que se deve ver naquela via férrea é, sobretudo, uma grande estrada internacional de aliança civilizadora, e de paz.
Notas
[editar]- ↑ Exemplo: Recentemente ainda, o Dr. H. Schnoor, um mestre, a quem se devem 2.000km de linhas férreas, ao discutir no Clube de Engenharia as condições técnicas da Madeira-Mamoré, não vacilou em aconselhar: bitola de 0,60m, trilhos de 10k, tipo Decauville; locomotivas de 20 toneladas, declives de 5% e curvas de 20 metros de raio! E diz, textualmente: “Será necesário, a meu ver, ir assentando logo os trilhos de qualquer modo, tocando para diante de qualquer forma, fazendo pontes de madeira no lugar de todo o bueiro, de toda a obra d'arte, para construir as definitivas depois de assente a linha” (Revista do Clube de Engenharia, VII série n° 11, 1905)
- ↑ Esta grande avenida, com o seu maior desenvolvimento, terá uma superfície de 726.000m x 40m = 29.040.000m². Admitindo-se o valor exagerado de 0,50 por m² (duplo que orçou o Dr. Chrockatt de Sá para a Madeira-Mamoré) a sua abertura custará apenas a Rs. 1:452.000$000.