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Brincar com fogo/II

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Como se visitavam a miúdo, e passavam dias e dias uma em casa da outra, aconteceu que pela Páscoa do ano de 1868 estavam ambas à janela da casa de Lúcia, quando viram ao longe uma cara nova. Cara nova quer dizer petimetre novo, ainda não explorador daquele bairro.

Efetivamente era a primeira vez que o sr. João dos Passos penetrava naquela região, conquanto nutrisse há muito tempo esse desejo. Naquele dia, ao almoço resolveu que iria aos Cajueiros. A ocasião não podia ser mais própria. Recebera do alfaiate a primeira calça da última moda, fazenda finíssima, e comprara na antevéspera um chapéu fabricado em Paris. tava no trinque. Tinha certeza de causar sensação.

Era João dos Passos um rapaz de vinte e tantos anos, estatura regular, bigode raro e barba rapada. Não era bonito nem feio; era assim. Tinha alguma elegância natural, que ele exagerava com uns meneios e jeito que dava ao corpo na idéia de que ficaria melhor. Era ilusão, porque ficava péssimo. A natureza tinha-lhe dado uma vista agudíssima; a imitação deu-lhe uma luneta de um vidro só, que ele trazia pendente de uma fita larga ao pescoço. Fincava-a de quando em quando no olho esquerdo, sobretudo quando havia moças à janela.

Tal foi a cara nova que as duas amigas lobrigaram ao longe.

— Há de ser meu! dizia uma rindo.

— Não, senhora, aquele vem destinado à minha pessoa, reclamava a outra.

— Fique-se lá com o Abreu!

— E você, porque não se fica com o Antonico?

— Pois seja à sorte!

— Não, há de ser a que ele preferir.

— Caluda!

João dos Passos aproximava-se. Vinha pela calçada oposta, com a luneta assestada na janela em que as duas moças estavam. Quando viu que não eram desagradáveis, antes mui simpáticas e galantes, aperfeiçoou o jeitinho que dava ao corpo e entrou a fazer com a bengala de junco passagens difíceis e divertidas.

— Bravíssimo! dizia Mariquinhas à amiga.

— Que tal? perguntava Lúcia.

E ambas cravavam os olhos em João dos Passos, que, pela sua parte, tendo o olho direito desimpedido[1] da luneta, podia ver claramente que as duas belas olhavam para a sua pessoa.

Foi passando e olhando sem que elas tirassem dele os olhos, o que sobremaneira comoveu o petimetre a ponto que o obrigou a voltar a cabeça cinco ou seis vezes. Na primeira esquina, que ficava um pouco distante, João dos Passos parou, tirou o lenço e enxugou a cara. Não havia necessidade disso, mas era conveniente dizer uma espécie de adeus com o lenço, quando o fosse guardar na algibeira. Feito isso, continuou João dos Passos o seu caminho.

— É comigo! dizia Mariquinhas a Lúcia.

Lúcia reclamava:

— Boas! Aquilo é comigo. Eu bem vi que ele não tirava os olhos de mim. É um bonito rapaz...

— Talvez seja...

— Um pouco tolo?

— Não te parece?

— Talvez... Mas bonito é.

— Escusa[2] de estar dizendo isso, porque ele é meu...

— Não senhora, é meu.

E as duas amigas reclamavam com ardor, e a rir, a pessoa do adventício gamenho, cuja preferência ainda estava por declarar. Nesse debate gastaram cerca de vinte minutos quando viram apontar ao longe a figura de João dos Passos.

— Lá vem ele!

— Está filado!

João dos Passos vinha outra vez pelo lado oposto; a meio caminho porém atravessou a rua, com o fim evidente de contemplar de perto as duas belas que teriam ao mesmo tempo ocasião de o examinar melhor. Atrevo-me a dizer isto, porque João dos Passos não duvidava[3] da sua influência pessoal.

— Agora veremos com quem é a coisa, disse Lúcia.

— Veremos, assentiu Mariquinhas.

João dos Passos aproximava-se com os olhos na janela e bengala no ar. As duas moças não tiravam os olhos dele. O momento era decisivo. Cada uma delas buscava chamar exclusivamente a atenção do rapaz, mas a verdade é que ele olhava ora para uma, ora para outra, com a mesma expressão.

Na ocasião, porém, em que ele passava justamente por baixo das janelas da casa, que era assobradada, Mariquinhas com o ar sonso das namoradeiras de profissão, perguntou à outra:

— Você amanhã há de ir lá passar o dia na Rua do Príncipe; sim?

A resposta de Lúcia foi dar-lhe um beliscão, sem que uma nem outra desviassem os olhos de João dos Passos, o qual, chegando a dez passos de distância, deixou cair a bengala, para ter ocasião de olhar ainda uma vez para as duas moças. Na próxima esquina, lencinho fora, adeus disfarçado, e movimento giratório de bengala, até que de todo desapareceu no horizonte.