Brincar com fogo/III
Lúcia disse coisas muito feias a Mariquinhas, por causa da habilidade com que esta indicara ao rapaz a rua em que morava. Mariquinhas repeliu dignamente as censuras de Lúcia, e ambas ficaram de acordo em que João dos Passos era pouco menos que desfrutável.
— Se a coisa for comigo, dizia Mariquinhas, eu prometo trazê-lo de canto chorado.
— E eu também, se a coisa for comigo, acudiu Lúcia.
Ficou assentado esse plano.
No dia seguinte Mariquinhas voltou para casa, mas nem na Rua do Príncipe nem na da Princesa, apareceu a figura de João dos Passos. Aconteceu o mesmo nos outros dias, e já uma e outra das duas amigas tinham perdido a esperança de o tornarem a ver, quando no domingo próximo surgiu ele na Rua do Príncipe. Só Lúcia estava à janela, mas nem por isso deixou de haver o cerimonial do domingo anterior.
— É comigo, pensou Lúcia.
E não se demorou em dar conta do ocorrido a Mariquinhas num bilhete que às pressas lhe escreveu e remeteu por uma negrinha. A negrinha partiu, e mal teria tempo de chegar à casa de Mariquinhas, quando um moleque da casa desta entregava a Lúcia uma cartinha da sinhá-moça.
Dizia assim:
A coisa é comigo! Passou agora mesmo, e... não te digo mais nada.
A carta de Lúcia dizia pouco mais ou menos a mesma coisa. Imagina-se facilmente o efeito deste caso; e sabido o caráter galhofeiro das duas amigas facilmente se acreditará que na primeira ocasião assentassem de caçoar com o petimetre, até então anônimo para elas.
Assim foi.
Na forma dos anteriores namoros ficou assentado que as duas comunicariam uma à outra o que se fosse passando com o namorado. Desta vez era a coisa ainda mais picante; a comparação das cartas apaixonadas do mesmo homem devia ser coisa muito para divertir as duas amigas.
A primeira carta de João dos Passos às duas moças começava assim: "Desde o afortunado instante em que os meus olhos vos encontraram, logo senti que o meu coração ficava eternamente cativo da vossa beleza". Falava-lhes da cor dos cabelos, única parte em que a carta sofreu modificação. Quanto à idéia de matrimônio, havia um período em que alguma coisa transluzia, sendo a linguagem a mesma, e igualmente apaixonada.
A primeira idéia de Mariquinhas e Lúcia foi dar idêntica resposta ao novo namorado; mas a consideração de que semelhante recurso o desviaria, fez com que repelissem a idéia, limitando-se ambas a declarar a João dos Passos que alguma coisa sentiam por ele, e animando-o a persistir na campanha.
João dos Passos não era homem de recusar namoro. A facilidade que encontrara nas duas moças foi para ele uma grande animação. Começou então um verdadeiro entrudo epistolar. João dos Passos respondia pontualmente às namoradas; às vezes não se contentava com uma só resposta, e mal despedira uma carta, logo carregava e disparava outra, todas elas fulminantes e mortais. Nem por isso as moças deixavam de gozar perfeita saúde.
Um dia — duas semanas depois da inauguração do namoro —, João dos Passos a si mesmo perguntou se não era arriscado escrever com a mesma letra às duas namoradas. Sendo amigas íntimas era natural que mostrassem as cartas uma à outra. Refletiu porém que se já houvessem mostrado as cartas teriam descoberto o estratagema. Logo, não eram tão íntimas como pareciam.
E se até agora não mostraram as cartas, continuou João dos Passos, é provável que nunca mais as mostrem.
Qual era o fim de João dos Passos entretendo este namoro? perguntará naturalmente o leitor.
Casar?
Passar tempo?
Uma e outra coisa.
Se dali surdisse um casamento, João dos Passos o aceitaria de boa vontade, apesar de não lhe dar muito o emprego que tinha na Casa da Misericórdia.
Se não surdisse casamento ficava ele ao menos com a satisfação de haver passado alegremente o tempo.