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Brincar com fogo/V

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João dos Passos, entretanto, fazia consigo a reflexão seguinte:

— Onde irá isto parar? Ambas gostam de mim, e eu, por ora, gosto de ambas. Como só me devo casar com uma delas, tenho de escolher a melhor, e aqui começa a dificuldade.

O petimetre comparou em seguida as qualidades das duas namoradas.

O tipo de Lúcia era para ele excelente; gostava das mulheres claras e de estatura regular. Mas o tipo de Mariquinhas dominava igualmente em seu coração, porque amara a muitas baixinhas e moreninhas.

Vacilava na escolha.

E por isso mesmo que vacilava na escolha, é que não amava verdadeiramente a nenhuma delas, e não amando verdadeiramente a nenhuma delas, era natural adiar a escolha para as calendas gregas.

As cartas continuavam a ser apaixonadíssimas, o que lisonjeava extremamente a João dos Passos.

O pai de Lúcia e a mãe de Mariquinhas, que até agora não entraram no conto, nem entrarão daqui em diante, por não serem precisos, admiravam-se da mudança que notavam nas filhas. Ambas estavam mais sérias do que nunca. Há namoro, concluíram eles, e cada um por sua parte procurou sondar o coração que lhe dizia respeito.

As duas moças confessaram que efetivamente amavam a um mancebo dotado de eminentes qualidades e merecedor de entrar na família. Obtiveram consentimento para fazer com que o mancebo de eminentes qualidades chegasse à fala.

Imagine o leitor o grau de contentamento das duas moças. Logo nesse dia cada uma delas tratou de escrever a João dos Passos dizendo que podia ir pedi-la em casamento.

Tenha paciência o leitor e continue a imaginar a surpresa de João dos Passos quando recebeu as duas cartas contendo a mesma coisa. Um homem que, ao partir um ovo cozido visse sair de dentro um elefante, não ficaria mais assombrado do que o nosso João dos Passos.

Sua primeira idéia foi uma suspeita. Desconfiou que ambas lhe armassem uma cilada, de acordo com as famílias. Repeliu porém a suspeita, refletindo que em nenhum caso, o pai de uma e a mãe de outra consentiriam no meio empregado. Compreendeu que era amado igualmente de uma e outra, explicação que o espelho confirmou eloqüentemente quando ele lhe lançou um olhar interrogativo.

Que faria ele em tal situação?

Era a ocasião da escolha.

João dos Passos considerou o assunto por todos os lados. As duas moças eram as mais belas do bairro. Não tinham dinheiro, mas essa consideração desaparecia desde que ele pudesse meter inveja a meio mundo. A questão era saber a qual delas daria a preferência.

A Lúcia?

A Mariquinhas?

Resolveu estudar o caso mais detidamente; mas como era necessário mandar imediata resposta, escreveu duas cartas, uma para Mariquinhas, outra para Lúcia, pretextando uma demora indispensável.

As cartas foram.

A que ele escreveu a Lúcia dizia assim:

Minha querida Lúcia.


Não imaginas o contentamento que me deste com a tua carta. Vou enfim obter a maior graça do céu, a de poder chamar-te minha esposa!

Vejo que estás mais ou menos autorizada por teu pai, esse honrado ancião, de quem serei filho amante e obediente.


Obrigado!

Devia ir hoje mesmo à tua casa e pedir-te em casamento. Uma circunstância, porém, me impede de o fazer. Apenas ela desapareça, e nunca irá além de uma semana, corro à ordem que o céu me envia pela mão de um dos seus anjos.

Ama-me como eu te amo.

Adeus!

Teu, etc.

A carta dirigida a Mariquinhas era deste teor:

Minha Mariquinhas do meu coração.


Faltam-me palavras para dizer o júbilo que me deu a tua carta. Eu era um desgraçado até há poucos meses. Repentinamente a felicidade começou a sorrir-me, e agora (oh! céus!) lá me acena com a maior ventura da terra, a de ser teu esposo.

Estou certo de que a tua respeitável mãe de algum modo te insinuou o passo que deste. Boa e santa senhora! Anseio por chamá-la mãe, por adorá-la de joelhos!


Não posso, como devia, ir hoje mesmo à tua casa.

Há uma razão que mo impede.

Descansa, que é razão passageira. Antes de oito dias lá estarei, e se Deus nos não tolher o passo, dentro de dois meses estaremos esposos.

Oh! Mariquinhas, que felicidade!

Adeus!

Teu, etc.

Ambas estas cartas traziam um post-scriptum, marcando a hora em que nessa noite ele passaria pela casa delas. A hora de Lúcia era às sete, a de Mariquinhas às oito.

As cartas foram entregues ao portador e levadas ao seu destino.