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Calvario de Mulher/As tradições

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As tradições
 

A verdade é o futuro. A mentira vem do passado.

O integralismo que pretende recuar ás epocas antigas de um Patriarcado primitivo, sugestionado por influencias de sobrevivencia desumana, é apenas um sonho. Encontra ambiente, talvez, porque ha espessas sombras de tradições que são nuvens denegridas acasteladas no céu da verdade impedindo o refulgir do sol creador e libertario. Mas da mesma forma que se produzem as transformações cosmicas que dissipam as nuvens, assim avançará a evolução social que dissolverá os erros.

Tudo é instavel e relativo, nos dados da consciencia humana. Essas tradições que subsistem, saturando de erros e infortunio o ambiente que respiramos, hão de pouco a pouco ser derrubadas á força da tenacidade dos espiritos a quem compete fazer a analise da sua genese e pro- var o nefasto efeito da sua existencia.

A rotina arrasta a humanidade em habitos e concepções eticas que se julgam logicamente fundadas e propicias ao bem estar comum ou parcial.

E' dos seus erros que ha-de germinar o remedio. Esse erro faz os martires. E esse martirio transforma-se em claridade redentora.

 

A humanidade sofre. Vive apenas no anceio de uma felicidade de que tanto se desvia quanto mais julga alcançá-la. Consomem-se energias sem conta no estudo do complicado problema da emancipação humana. E é tão escasso, tão instavel e negativo, afinal, o resultado das evoluções e das locubrações metafisicas!... Gravitam em torno do movimento rotativo d'essa evolução, mil satelites de magna grandeza scientifica e literaria que constroem monumentos de investigação arcaica e futurista. Politicos, economistas, moralistas, apostolos, filosofos e poetas, todos julgam gastar o combustivel das suas energias sentimentais, reformadoras e pensantes, na construção do alicerce em que assentará o edificio de uma nova civilização. Mas a materia prima que solidificará a resistencia do novo edificio, entra em dóse insuficiente n'essa obra de reconstrução. ¿Em que consiste essa materia prima? No estudo profundo, consciencioso, humano, do prejuizo que divide, que infelicita e oprime os sexos em desproveito de ambos, vitimas e vitimados e portanto da humanidade em geral.

Os verdadeiros obreiros da civilização são afinal aqueles que encaram o ponto mais grave da questão social, através da analise scientifica e psicologica do problema feminista.

Porque n'essa grave e flagrantissima questão, de que dependem muitas outras, é que está a chave do enigma relativo ao harmonico equilibrio das sociedades. A corrente das opiniões salta, em maioría, por sobre este assunto tão grave, com a mesma leveza infantilissima de criterio com que uma criança se expõe a perigos que desconhece.

D'aí a contestação maquinal das conclusões que se deduzem perante o estado decadente e revoltoso das sociedades movidas por uma engrenagem falsa e impropria de um funcionamento regular. As provas vão, porém, surgindo seguras e concretas de todos os lados onde entra a compreensão elevada da vida. E a cegueira em que se agitam consciencias abstractas amarradas aos velhos principios como mariscos colados a rochas de granito, vai principiando a iluminar-se fixando um facto de tanto alcance para a historia da evolução.

E' uma empreza rebelde trazer á luz. do tablado convencional, a flor viçosa da justiça collida do tronco vigoroso da verdade. Mas não ha triunfo que não represente um grande esforço. Embora vagarosamente, o homem, á força de cultura, de reflexão e de sofrimento, irá percebendo como é vitima dos erros de concepção que desdenham o valor da sua companheira. Porque o estado de inferioridade da mulher, repito, reflecte-se na vida dos dois sexos.

A questão feminista é positivamente uma questão comum. ¿Porventura a opressão, o descontentamento, o sacrificio que é na maior parte dos casos imposto á mulher, não reflecte os seus efeitos perniciosos no homem gerado nas suas entranhas, e alimentado ao seu seio perturbado de inquietações?

E a par d'esta face importantissima da questão feminista, ¡quantos outros aspectos provam a sua melindrosa impor- tancia! Ao lado do prejuizo fisico, complicando a degenerescencia das raças, está o prejuizo moral, o prejuizo economico, o prejuizo politico, nacional e internacional. Podem as multidões conservadoras, alheadas do assunto, responder a este argumento com um gesto de sceptico desdem, de hostilidade ou desumana indiferença. Contra provas não valem argumentos, e a verdade tarde ou cedo é revelada.

O homem ― e dizendo homem digo a sociedade, visto que o dominio social é por emquanto quasi exclusivo do seu arbitrio ― é por conseguinte vitima dos erros que uma imperfeita constituição social alimenta.

A opressão da mulher representa infelicidade para ambos. Qualquer dos prejnizos, mencionados, quer na ordem moral ou material, individualista ou sociologica, constituem lesão de interesses que afectam inteiramente o organismo social em todas as suas arterias, em todo o seu funcionamento. Nas diversas expressões da vida social e moral, superior e bem compreendida, a mulher é um sêr apagado, imperceptivel.

¿Não está apta para a exercer? Sem duvida. ¿Mas por quê? Porque a sua situação inferior a reduziu a um estado de imperfeição. Legalizem-se os seus direitos, liberte-se a sua situação, reconheçam-se os seus dotes naturais, aproveitem-se os seus valores de sentimento, rebusteça-se o seu organismo, eduque-se-lhe o espirito, forme-se-lhe um caracter nobre, e surgirá a criatura cheia de meritos espirituais e afectivos urgentemente reclamados para o resgate das sociedades. Em tais casos ela completará o bo- mem, e o aperfeiçoará, adoçando-lhe o caracter e iluminando-lhe a razão, para cumprirem ambos a função de harmonia, de amor e engrandecimento a que a natureza os destinou.

Os defeitos da mulher não são mais do que uma derivante dos primitivos defeitos da legislação social. E esses defeitos infelicitam ambos os sexos. D'aí a necessidade de homem e mulher se reconhecerem ambos imperfeitos, escravos de si proprios e da constituição social, desde que alimentem as causas que os desarmonizam e degradam.

Na reduzida capacidade descritiva de um pequeno livro, não é possivel senão abordar ligeiramente os pontos graves da questão feminista no sentido do seu efeito perturbador de caracter moral e economico.

Cada um d'esses pontos é, por assim dizer, uma vasta tese que eu tenciono estudar profundamente no seu aspecto pratico e teorico. Porque só assim se podem conglobar provas concludentes que dêem ás afirmações uma expressão de verdade convincente que se transforme em corrente de convicções de onde nascerão os frutos de uma consciencia nova. Muitos economistas insistem na afirmação de que a questão economica é o ponto essencial do problema feminista. E concentrando-se no exclusivismo da sua opinião, acham secundaria a reabilitação moral que julgam dependente da primeira. Assim, permanecem indiferentes ao esforço que pretende preparar o terreno da autonomia feminina pela propaganda da ideia. Tenho sobre este assunto uma opinião pessoal que baseio na observação filha da experiencia e me dá este desideratum. O aperfeiçoamento moral, relacionado com o reconhecimento de valor feminino, póde converter-se em elemento de prosperidade economica. Enquanto que a independencia economica sem a educação moral, não comporta as bases de um relativo ben estar, antes precipita a ruina dos haveres materiais.

De forma que a solução tão grave do grande enigma social que preocupa os mais autorizados sociologos, deve manter em paralelo os ponteiros da sua regula- mentação, fixando simultaneamente as bases do progresso moral e economico dependentes um do outro. A educação dos costumes, das ideias, das aspirações, representa progresso, póde converter-se em fonte de riqueza material.

Desenvolver inteligencias é explorar filões de seivas creadoras. E pôr em acção a inteligencia e o sentimento da mulher, o seu espirito organizador e activo, é preparar uma receita economica, é fundar um capital de energias que devem ser moeda corrente na industria dos interesses colectivos.

Preparar portanto o levantamento moral da mulher, é condição essencial para traçar a face nova de uma vida de utilidade, de amor e trabalho, é fomentar riqueza, é garantir proveitos, é estabelecer um agio de civilização impulsionando a consideração que merece o esforço e as faculdades desdenhadas do sexo feminino.