Calvario de Mulher/Subalternidade feminina
Prova-se perante a historia dos factos, que a situação da mulher tem sido, através de todos os tempos, muito mais martirizante do que a do homem. Mas as investigações da hereditariedade comprovam que as influencias que abalam o sistema nervoso da mulher no periodo maternal recáem no sêr em gestação. Assim como se cruzam todas as condições fisiologicas, e todos os detalhes psicologicos de ambos, a ponto de não existir exclusivo que determine os defeitos ou as qualidades dos dois sexos.
Os mais recentes estudos biologicos provam até quanto são erradas certas conclusões psicologicas que se atribuem á disposição organica da mulher. Cáem, pois, pela base, quasi todas as formulas que até hoje véem sustentando um errado criterio sob as suas funções, qualida- des e imperfeições. E são de tal sorte decadentes os estragos que véem fazendo tais ludibrios, que a reacção de concepções é uma consequencia logica e determinista que reivindicará naturalmente a razão.
Os destinos de ambos os sexos, e portanto os destinos da colectividade, são alvejados por esses erros. Forçoso é que ambos os sexos, responsaveis por eles em prejuizo da especie, se unam n'um pacto de confraternização que os eleve em comum á ascensão do aperfeiçoamento, para atingirem a harmonia e a felicidade a que ambos aspiram e que ao presente é efemera e fragil.
Já demonstrei que a felicidade é a expansão individual, a alegria de viver, de criar, de produzir em proveito proprio e comum, de sentir e de agir segundo as inclinações nativas ou as exigencias de aspirações superiores. E' esta a balisa de felicidade das sociedades futuras em contraste com as leis antigas assentes só em condições que representam a compressão total da individualidade fisica e moral.
¿Realiza a mulher estas condições? Bem longe d'isso anda o seu destino de renegada. E emquanto que a mulher for martir, o homem é e será um eterno condenado. Já me referi á escassez de garantias morais que deviam patrocinar a influencia da mulher em paralelo com a atenção pela sua condição economica.
¿Que direi sobre o predominio material senão que é tudo quanto ha de mais banal, instavel e degradante? Fragil predominio aquele que se firma só n'uma curva plastica que o saciamento rejeita, que os caprichos voluptuosos aborrecem, e que o tempo deforma e enruga. Ou efemera soberania a dos atavios, da coqueterie, da mentira, da cubiça que esses petits riens acendem no animo do homem inferiormente materializado, e, tão longe de conhecer o verdadeiro amor, como perto está da degenerescencia que requer estimulantes falsos para agitar naturezas morbidas. Os laços que ao presente ligam os dois sexos são tecidos de frivolidade, de contingencias falsas, dissolventes, acentuadamente imorais.
Ha-de fatalmente despedaça-los a evolução etica que se firmará em bases solidas de beleza moral superior.
Passarão seculos talvez antes que a luz se faça.
A humanidade continuará a ser o Jeremias queixoso de males que inconscientemente cultiva, desprezando o remedio que será inspirado pelo coração martirizado da mulher. O homem, desviado do ponto que fixa a universidade reguladora das coisas, defenderá por largo tempo os direitos ilegais do egoismo, creados pelo proprio egoismo, e será refractario ás manifestações de espirito e de coração da mulher fóra das correntes materialistas que lhe exaltam os sentidos e o transformam em escravo submisso.
Essa consequencia é legitimada pela mentira, que será vencida de futuro pela verdade.
Essa verdade diz que as nações, a humanidade e os costumes agitam uma tempestade de conflitos, de desgraças, de erros e tormentas. O fantasma do exterminio surge em meio da confusão pavorosa da guerra. Atribuem-se causas de ordem economica, politica, industrial, a esse estado de desordem, de balburdia, de tirania, que arrasta a extremos de crueldade, de vinganças, de devastação, criaturas humanas vivendo em Povos que teem fóros de civilizados. E toda essa massa humana, inconsciente cooperadora da guerra, gasta as suas energias pensantes em discutir as causas secundarias que precipitam as perturbações sociais, alheada d'aquelas qne, parecendo as ultimas, devem ser as primeiras.
Uma d'elas é o antagonismo, a desconfiança, o menosprezo, a rivalidade que existe entre os sexos, ocasionando o desaproveitamento das faculdades femininas que deviam formar uma corrente de energias essenciais de perfeito funcionamento de uma sociedade regular.
Se a maquina de uma grande fabrica destinada a funcionar movida por dois eixos, for impelida por um só, serão irregulares os seus movimentos, e imperfeita a manipulação dos artefactos. Da mesma fórma o maquinismo das sociedades.
Nenhum dos seus movimentos é completo sem a colaboração integral de ambas as partes que completam a evolução natural. Nenhuma reacção de prosperidade moral, espiritual e economica dos Povos deve dispensar o concurso das faculdades femininas. Porque só elas dispõem, embora em embrião, do poder emotivo que acordará no homem as energias latentes do sentimento para retemperar-lhes o caracter, e incutir-lhe o vigor de alma e a snbtileza de espirito que reflorirão em devoção por todas as ideias de bondade. Em todas as afirmações de genios masculinos que exerceram altas influencias nos Povos, quer como artistas, pensadores, ou homens de Estado, se encontra sempre o influxo de uma alma de mulher que lhe aperfeiçoou a consciencia, e que lhe serviu de guia e estimulo não só por meio do amor, como pelos tesouros da sua experiencia e da sua intuitiva sensibilidade e argucia.
No entanto essa acção permanece quasi anonima. A gloria d'essa influencia goza-a o homem. E bem pouco serve para reconhecer o prejuizo que essa injustiça acarreta em desfalque da civilização.
Tentarei prova-lo, pondo em frente do resumo de observações praticas que tenho colhido da experiencia da vida, as razões de Jean Finot, cujo quilate profundo, vasto e cristalino, teem o condão de envolver a aridez da filosofia n'um polvilhamento de arte subtil, delicado, transcendente e sugestivo. Jean Finot é a estrutura do doutrinario privilegiado por dons especiais. Espirito engenhoso de artista rescendendo poesia e bondade, consegue extraír dos dados scientificos, as razões metafisicas relativas á felicidade humana, com a leveza graciosa, alada, encantadora, de insectos irizados explorando o nectar das flores para o converter na ambrosia dos favos que representam a abundancia e a alegria da colmeia. Reproduzo alguns periodos do seu ma- gnico livro Les Préjugés et le Problème des Sexes:
«Nós pedimos muito á vida cujos possiveis vão mais longe que os nossos sonhos audaciosos. E se ela se mostra surda aos nossos rogos, é que nós não sabemos compreendê-la nem falar-lhe. Erramos em tal caso. E n'esse erro proclamamos a autonomia do homem desprezando a da mulher. Desprezamos d'essa fórma a lei de equilibrio, querendo fazer subir muito alto uma metade da humanidade, deixando a outra metade muito em baixo. D'aí a escravidão, a negação da fortuna de exploradores e explorados. Os erros do homem sobre a fórma de sofrimento e inquietação imposta á mulher, reteem-n'o infalivelmente no terreno da desgraça. A desaparição d'essa desdita, depende da reflexão que convencerá o homem do prejuizo que provém do esquecimento da sua companheira, tendo-a a seu lado sem se aperceber do seu valor desdenhado e comprimido em desproveito de ambos.
A' cooperação social e politica da mulher deveremos no futuro a diminuição senão a desaparição total das desgraças que envenenam a vida dos Povos, dos individuos e da humanidade. E emquanto se não dissipar a convicção de que o valor do homem é superior ao da mulher; emquanto existirem entre ambos muralhas de mentiras, construidas de despeitos e rivalidades, de desconfiança e desdem, toda a marcha do progresso se encontra retida pelos seus falsos e vãos movimentos.»
N'estas considerações revive em todo o seu esplendor de justiça e harmoniosa bondade, o poema da vida Egipcia descrita por Michelet na Biblia da Humanidade. A sobrevivencia d'essa religião de amor que enflora de beleza espiritual os divinos canticos do Râmayâna, restituirá á apagada consagração de outr'ora a mulher de hoje humilhada e deprimida. Fará resurgir a capacidade amoravel, criadora, e docemente previdente da mullier amada, forte, bela e respeitada que ao lado do companheiro dilecto preparou a chama purificadora e simbolica de Agni, o men- sageiro da alegria e do conforto domestico . Agni representa a cooperação dos dois sexos na obra da criação. O seu brilho encheu de luz e calor o lar e o Universo. A brutalidade das guerras e das religiões, apagou-o.
Mas hoje que outras faiscas de novas luzes aumentam o resplendor d'essa verdade, a fulguração sublime do Râmayâna impregnada de candura e poesia projectará o seu clarão bemdito na treva da inconsciencia Universal.