Calvario de Mulher/Ludibrio de concepções

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Ludibrio de concepções
 

 


Na
ancia infinita de obter dentro da vida o baptismo da felicidade, ¿quais são os pontos em que se fixa inquietamente o olhar febril da humanidade sequiosa de realizar a sua aspiração? A riqueza, a gloria, o amor, o triunfo pleno dos seus sonhos dentro da insaciedade das maiores ambições.

O problema da felicidade tem merecido as locubrações minuciosas e profundas da sciencia. Mas parece, afinal, que se a sciencia consegue vislumbrar os tesouros da verdade entranhados na alma misteriosa da natureza, os apresenta á humanidade n'um estojo de teorias tão longe do seu obseurantismo, tão fóra do aleance do seu entendimento, tanto em contraste com as suas atavicas expressões, que, em vez da gradual e fecunda evolução, observa-se o tumulto, o abôrto das ideias, o desvairamento aniquilador e as guerras. Creio que está errada n'este ponto a solução do enigmatico problema da evolução, relativa ao exito da felicidade humana. Talvez porque filosofos e doutrinarios se desviem dos processos em que deveria florescer a cultura dos seus principios. O exclusivismo concentra-os demais na sua esfera, abstraidos do meio em que vegetamos. A sua percepção ideologica e investigadora investe-os realmente da missão de arautos do futurismo. Mas, se lançarem sobre a charneca inculta do tradicionalismo enraizado e pêeo a semente do seu vidente racionalismo, alheiam-se da infinita contingencia de desequilibrios que marea muralhas de diferença e de quilate entre a consciencia esclarecida do sabio, a sua concepção educada, e a ignorancia, a inepcia de multidões mergulhadas n'um embrutecimento quasi irracional.

Assim, por exemplo, os livres pensadores proclamam a livre consciencia, o estado de perfeição do homem, obedecendo apenas á voz interior do dever e da razão sem outra religião, senão a do bem dentro da natureza, sem outro dominio senão o do entendimento esclarecido, comandado mandado pelas leis do amor, que é lei suprema da verdade, da razão, da justiça e da harmonia. Ora se estes principios nem sempre são observados por esses espiritos, educados, embora, mas sujeitos ás influencias ancestrais e aos influxos perniciosos do meio, como podem obter resultado da sua obra revolucionaria impondo-a a uma sociedade ignara, fragil de consciencia, cheia de mazelas fisiologicas e psicologicas, exposta á tentação, ao vicio, ao crime, que produz condutas imperfeitas? Claro que teem de ser guiadas gradualmente ou por uma influencia inconsciente que impõe o te mor de um Deus para sofrear o delito, ou ministra o balsamo do confôrto na ingenuidade da crença alimentada pela religião.

Os livres pensadores, não deveriam blasfemar violentamente contra a religião e a Igreja. Porque durante muito tempo elas constituiram uma necessidade psicologica de raças saturadas de misticismo, eivadas de preconceitos, mergulhadas no misterio do infinito. Antes insinuassem brandamente as suas teorias por meio de razões sugestivas e dissessem ao Povo perpetuando a voz doce, clarividente, do Cristo, o inspirador imortal da felicidade humana.

«As religiões constituiram, na vida primitiva, uma fórma de regulamentar a anarquia selvagem dos espiritos incultos e dos Povos barbaros.

Mas á medida que os espiritos passarem pelo filtro da verdade, explorada pelos dados da sciencia; quando o homem, fortalecido de corpo e alma, atingir a preparação para ser perfeito sómente pela consciencia do dever e pela razão educada, então os dogmas das religiões antigas creadas pelo homem e sofismadas pelo tempo, serão desnecessarias para o funcionamento de uma sociedade harmonica. Por emquanto, porém, a religião melhorada tem de servir de roda transmissora. O homem de hoje é uma natureza fragil, é vitima de ancestralidades, de assaltos pecaminosos que o meio ambiente predispõe. Desconhece em maioria a religião do bem, escudada no dever; a religião pura, espontanea, que sem interpretes de uma fé que não seja a propria fé, nos im- põe as maximas que sairam dos labios maviosos de Cristo, dizendo aos apostolos: «Amai-vos uns outros como a vós mesmos», dizendo ao Pai: «Perdoa-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem», dizendo ás multidões egoistas: «Não faças a outrem o que não quizeres que te façam a ti», e dizendo aos fariseus que insultavam aquela sublime pecadora que a sua alma feita de amor ungia de perdão: «Aquele que de vós não pecar, atire-lhe a primeira pedra».

Dois mil anos são passados depois que estas sublimes doutrinas se repercutiram em ecos de suavissima harmonia nos vales floridos da Galileia. Dois mil anos tem devorado a marcha inquieta e constante do tempo depois que o injuriado e crucificado simbolo da redenção expiou amarrado á cruz do martirio o crime do seu amor imenso e sublime pela humanidade.

Subsiste a essencia dos seus mandamentos; quer se lhe chame religião catolica ou consciencia livre, socialismo ou anarquismo. O fundo da ideia é sempre o mesmo. A composição e a execução do principio é que lhe distrai o efeito. Porquê? Porque se combatem erros de tradição com erros de violencia. Tiranias sectarias com despotismos demagogicos. Jesuitismo inquisitorial com jesuitismo politico disfarçado em fórmulas de quimica diversa, mas tão corrosiva como a antecedente. ¿O que afinal transparece d'esse aspecto embaciado de decadencia e desgraça? E' que acima de todo o esforço de redenção, sobresai no nosso barro fragil, os microbios que provocam a infelicidade dos Povos na sobrevivencia do egoismo, da vaidade, gerados da maldade e da ambição.

Chamem-lhe o direito das nações; chamem-lhe heroismo dos homens; chamem-lhe a grandeza dos Povos; a defeza da Patria; tudo emfim quanto póde cobrir de aspectos atenuantes o efeito que tem origem nas paixões deshumanas e sofregas das creaturas. No fundo ha só egoismo, ha só vaidade, ha só interesse; quer seja o egoismo de um rei, imperador, general ou chefe republicano, subordinando ao seu dominio o egoismo dos que lhe obedecem por egoismo; quer seja o egoismo de um Povo que tem a ambição de absorver outro Povo; emfim, quer seja a vaidade e o interesse de um grupo absorvente, envolvendo a vaidade e o interesse de muitos, sugestionando a violencia e aniquilando pelo devaste. E chamem os Povos vencer á conquista que alargou o seu territorio, mas mutilou e disseminou barbaramente a sua população, dissolvendo a sua riqueza artistica, argentaria, industrial ou rural, tudo o que emfim representa grandeza e que só em esforço de seculos voltará a ser reconstruido. E sobretudo, que triste conquista a que faz recuar a obra da civilização reavivando a barbaridade, preparando pela dôr, pela agitação de sentimentos angustiosos ou maus, pela inquietação, os tormentos e as privações, gerações decadentes, crueis, sequiosas de novas vinganças.

¡E era tão simples, a harmonia! Mas é tão dificil, afinal!

Bastava que cultivassemos as quatro maximas morais que apontei. Bastava que essas profecias de Pacifismo, esculpidas em traços imortais na rigidez da grande muralha de egoismos que avassala o mundo e as consciencias, —disfarçada em razão, suplantando o amor em simulacro de amor, — diluissem em raios quentes, dulcificadores, a congelação brutal d'esse bloco de egoismo que petrifica a vida universal. Bastaria ainda que cada criatura incrustasse na sua consciencia a legenda inscrita no templo de Delphos: «Homem, conhece-te a ti mesmo para teres a chave da felicidade. E depois, somando as nossas imperfeições, maiores ou menores consoante as condições, o atavismo e o grau de vida, todos trabalhariamos unificadamente pelo triunfo do nosso eu. E d'aí nos viria a devoção pela obra do aperfeiçoamento fisico e moral de organismos doentes, vegetando n'uma atmosfera viciada de hipocrisia, de degenerescencia e mentira. Diminuiria o egoismo, a tirania, a ambição, o exclusivismo que destroe tantos elementos de progresso.

O sabio, o reformador, não se esterilizaria no exclusivismo do seu principio, desdenhando a multidão que ainda está tão longe do seu visionalismo e que, portanto, ele mais afasta da perfeição, quanto mais a afasta de si. Era assim que Nietzche tapava o nariz á culinaria torpe do altruismo, desdenhando as massas que o exerciam como forma de aperfeiçoamento.

¿ Não seria mais humano aproveitar essas forças imperfeitas, melhoradas, ascencionalmente, gradualmente, para dentro d'elas ir semeando novos principios?

Talvez. E na sciencia como nas artes , o exclusivismo destroe mil agentes de progresso.

Por vezes o fanatismo, exclusivista, o espirito de contradição que é quasi sempre egoismo ou snobismo, esteriliza o ingresso de ideias uteis. Uns porque se fanatizam até só verem as aguias que pairam alto, na esfera da arte; outros porque não vêem nada, julgando vêr muito. Surge uma ideia, um esforço, um livro, uma doutrina de intuitos moralizadores, generosos. ¿Não tem revestiduras de arte suprema? ¿Não fala á caprichosa e ligeira reflexão d'espiritos leves? ¿Não a circunda a auréola fulgente da fama? Inutiliza-se, condena-se. Desvaloriza-se o engenho que sobe do coração ao espirito, vivificado pela chama ardente da fé e que nos impõe o dever de aproveitar todas as forças, todas as vontades, todas as iniciativas extraindo-lhe o que tem de bom, fazendo-as realçar e frutificar. Porque são poucas, são urgentes, todas, todas, as energias que, pela razão e pelo sentimento, possam actuar beneficamente n'este cáos de anarquia, de confusos delirios passionais que provocam a miseria e a desgraça.

¿Será utopia o meu prisma? ¿Não terá tudo quanto aqui digo o cunho da razão scientifica? ¿Não será profundo? Não será, não, mas é humano. ¿ A filosofia é incompativel com o lirismo? ¿O seu dogma é a evolução que se precipita em movimentos bruscos, determinados por uma logica fria e arida? ¡Mas então aí temos a obra d'essa razão a desenrolar-se em ondas de sangue e tirania!

E' que talvez por ter imperado demais a frieza da razão filosofica, fóra da chama fluente e dôce do sentimento, é que o sôpro glacial do egoismo pessimista congela os espiritos e as consciencias.

E' talvez por isso mesmo que, em vez de se ensaiarem os acordes da emoção, que harmonizaria o côro da bondade e da Paz, sôam os clarins sangrentos da guerra que proclamam o triunfo legendario e barbaro da tirania.

E' o lirismo que tem de ser o perfume, a graça, o sorriso da filosofia, para fazer d'ela a luz, o calor que ha-de desabrochar em rosas de amor, no tronco muti- lado da verdade.

Dentro d'estas expressões da alma que ao correr da pena vou transmitindo ao papel, talvez algum espirito de eleição surpreenda essa mesma verdade. Talvez a surpreenda e realce. Talvez, através d'ela, desdobrem vôos mais grandiosos, as azas do genio fluentemente viril e impressivamente lirico. Lirico, sim, d'esse lirismo que perfuma as almas com a rescendencia do seu sentimento, que amacia os instintos com o sôpro ideal da sua poesia, e que converte rebeldias de pensamento com a sugestão galvanizante do seu fluido comunicativo. Entre a flor de talento que germina no seio generoso da minha linda terra, algum artista, algum poeta, algum sonhador ardente e libertario haverá que se interesse por essa verdade, ampliando-a em faiscas de espirito que fazem da pena um chuveiro de astros e de lirios. Que ele diga á filosofia e á tradição que todas as ideias sossobrarão emquanto as não elaborarem em comunhão com uma alma de mulher.

Decerto algum dos tres artistas que de mais perto conheço, se fará eco da voz que pugna pela emancipação humana suspensa da harmonia dos sexos. Mayer Garção, o libertario poeta do amor e da beleza. Antero de Figueiredo, o scintilante esteta psicologo. Sousa Costa, o romancista de brilho e emoção. Que eles o digam, porque o sentem e compreendem, que a mulher representa o exito da con- fraternização e do progresso social quer seja uma madame Curie, fio condutor da radio-actividade, uma Jeanne d'Arc que é um clarão de fé, uma madame Roland toda liberdade, justiça e amor, e guilhotinada em nome d'essa liberdade. Emfim, evangelizadora, libertaria, inspiradora, educa- dora, camarada, mãe, irmã, noiva ou amante, é o seu lirismo educado, a sua acuidade de pensamento bem dirigida, a sua alma engrandecida e mimosa, que falta na obra estacionaria da redenção. Foi o mais assombroso filosofo e o mais emotivo lirico que na epopêa do cristianismo preparou o seu advento. Talvez por- que incarnava em si, n'uma dualidade singular, de precursor, a feição sentimental da alma feminina que ha-de retemperar a razão do filosofo e a razão do filosofo que ha-de fortalecer a sensitividade da mulher para realizarem a harmonia do conjunto. Ele o poeta, o vidente, o doce, o humilde, o sonhador, o libertario, o filosofo, revive cada vez mais na verdade imortal, quanto mais a luta e a decadencia da humanidade demonstra a luz clarividente dos seus pensamentos. Não emmudecerá a sua voz repercutida á distancia de seculos na alma da mulher, na alma dos poetas, na alma de todos os baptizados pelo privilegio da bondade e da emoção para explorarem o filão da verdade.

Como o doce murmurio de uma limpida nascente que se depara á sêde re- queimante do viajeiro errante e solitario, assim o eco sonoro d'essa voz nos enleva como uma sinfonia de esperança que irradia acima da chamejante fuzilaria das infernais invenções de guerra. E' ela, essa esperança, que cristaliza em fé, em emoção, cantando na lira dos poetas em versos que faz bem repetir e imortalizar, divinizando poetas como Gomes Leal:

«Ó suaves mulheres que ides cantando
Através das searas e das vinhas,
Vinde ouvir uma historia em verso brando
Que hei-de ensinar a lêr ás andorinhas.»