Calvario de Mulher/Calvario de Mulher

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Calvario de Mulher
 

 


Oambem
eu vou contar uma historia. E' triste. E' vulgar. Mas é na sua vulgaridade que está a sua importancia. Porque é nas coisas mais simples que ás vezes se encontra a solução das coisas mais graves.

A minha historia não é um romance de lances tragicos que produzem os dissolventes frissons na multidão.

Não é uma novela de amores e aventuras filigranadas em arabescos de arte voluptuosa e ligeira.

Não é tambem uma tese scientifica, baseada nos dados da matematica que dirige os olhos dos sabios para o vago e oscilante misterio dos astros para surpreender os enigmas da genese e da evolução.

Quando, afinal, o fio do maior enigma parece residir nas entranhas da terra. Sob a fórma quasi incorporea, invisivel, o seio d'essa terra, inexplorada e humilde, oferece á surpresa da sciencia a fulguração maravilhosa do radium. Da penumbra, da obscuridade, n'uma irradiação que é quasi um misterio, surge esse fluido imperceptivel, essa surpreendente e nova revelação quimica que vem suplantar todas as bases antigas da sciencia extraídas da quimica e da fisica classica.

E' o radium triunfante.

¿Que poder oculto que a intuição de M. Curie tem penetrado, o revelou para revelar a verdade? ¿Não será ele o predominio dos principios naturais? ¿Não representará o positivo vencendo o negativo? ¿Não será esse mesmo fluido radio-activo o poder supremo da natureza dirigindo certos instintos que vão surpreender no coração da vida, intensamente vivida, a revelação de verdades que demonstram a negação de principios gerados na men- tira?

¿Não será essa a força oculta, que elege certos sêres de que faz os mediuns da sua onipotente e intangivel creação, demonstradora dos erros preconcebidos no erro?

A minha historia resume uma vida de mulher.

Ha n'essa vida o que ha em muitas. Muita injustiça, muito egoismo veneendo a razão sob fórma de direito.

¡Parece tão natural, esse direito !... ¡E afinal é tão deshumano! Os incidentes que vou relatar, são tudo quanto ha de mais normal segundo o criterio dominante. Mas é aí que está o fio do enigma, a importancia da minha tese.

Um caso, não representa uma generalidade, dirão.

¡Que importa! A causa do efeito, reside n'uma causa comum. Que ela determine factos com variantes e aspectos diferentes, é um caso secundario, desde que, em conjunto, as consequencias agravam a vida social.

E essa consequencia dá-se fundada sempre na mesma origem,—a desarmonia dos sexos. Ela estende a sua garra funesta por toda a superficie da vida Universal.

Ela existe, alastra, dissolve, infelicita, eulouquece, aniquila e mata.

¡Mata, sim! Estrangula os elementos da felicidade, gera a discordia e o desmembramento da familia e da sociedade.

¿Podem porventura existir todas as demonstrações d'este facto dentro de uma vida de mulher ? Podem, desde que essa vida é por assim dizer un fenomeno destinado a concentrar em si uma soma de provas para depois as projectar com o mesmo privilegio da radio-actividade concentrando e projectando as energias da quimica natural. D'aí a demonstração positiva e clara da verdade ligando o fio das conclusões psicologicas.

E, evidentemente, elas comprovam o reflexo que teem nas perturbações gerais as injustiças, os sofrimentos, as humilhações, as erradas concepções que fazem da mulher uma vitima e uma revoltada, da familia uma tempestade, e da sociedade uma anarquia.

O episodio que relato justificará esta asserção.

 

Um dia um capricho do determinismo poz em frente de um homem irreflectido e impulsivo uma rapariga gentil, envolvida n'um véu de ingenua e inexperiente adolescencia.

Era uma criança de quinze anos in- completos. Tinha trinta, o homem que d'ela se enamorou n'um singular coup de foudre. Dir-se-ia que o electrizára repentinamente, á distancia de uma plateia para um camarote, um fluido magnetico irradiando atracção, d'essa natureza vibratil, destinada á humana missão do sacrificio.

Dentro de algumas horas era solicitada a sua vida para partilhar a vida do homem que tão ligeiramente pensára constituir familia.

¿Fôra este original incidente uma obra do acaso?

Não, não era. O misterioso comando da natureza, que tudo regula, aproximára elementos opostos para que do seu choque iminente brotassem faiscas de luz tão precisas para iluminar as trevas con- vencionais. Este episodio era a continua- ção de um simbolismo que começava nas influencias ancestrais originadas na ilegalidade de direitos do homem, e seguia nos efeitos de uma educação conventual, impropria, contraria á natureza de certos sêres, para continuar nas condições em que se ia iniciar una desastrada união conjugal.

Ao receber a noticia da inesperada solicitação, foi de surpresa a impressão que espavoriu a alma candida da pobre rapariga. Um vago presentimento a agitou intensamente. Mas era tão imprecisa e confusa a força de seu raciocinio!...

A vida era para ela, como para quasi todas as raparigas da sua idade, a superficie de um oceano ondulando em leves cuidados, e de que se desconhece a agitação, a profundeza imensa e traiçoeira. Assim, interesses de familia, su- gestões diversas, anceios de uma vida larga, bemfazeja menos reprimida menos claustral fóra do ambiente familiar, certas reacções sentimentais que provocavam o desejo de abnegação, venceram todas as hesitações. Casaram. Segundo os velhos costumes provincianos o casamento realizou-se á meia noite na nave sombria e escura de um templo antigo, á luz sinistra e tremula de cirios a lembrarem a luz que acompanha a morte. E, morte era afinal a d'aquela mocidade cheia de seivas que ali prendia o seu des- tino á cruz de futuro calvario.

¡Como tudo aquilo era lugubre, som- brio, e fazia tiritar de intima e disfarçada tristeza a alma sonhadora e infantilissima da noiva da desdita! Porque tão sombrio era aquele aparato, como é densa a treva do obscurantismo, conservando habitos que fazem procurar a sombra da noite para esconder a realização de um acto que devia celebrar-se em pleno dia, em plena aleluia da natureza, que indica na sua harmoniosa criação, a união dos sexos como perpetuação da vida e do amor, base eterna da felicidade e da existencia.

 

E' certo que não era o verdadeiro amor que ligava aquelas duas existencias. Da parte do homem existia o momentaneo efeito de uma galvanização material que o atraía para um corpo moço e gracil. Do lado da mulher dava-se um con- junto de circunstancias bem longe do amor que corresponde á atracção simultanea de corpo e alma, sem a qual nenhuma ligação pode ser feliz. E foi assim que uma criança sensivel e inexperiente, entrou na grave situação conjugal.

¿Que preparação levava para tão dificil missão, que garantisse felicidade? Nenhuma . Era uma ceguinha. Partiu do desconhecido para um desconhecido. Jogou infantilmente a sorte e a liberdade. Lançou o coração e a vida ao acaso. ¿Quem lhe estudára a psicologia de emotiva e intensa, feita de contrastes e manifestações anormais? ¿Quem lhe robustecêra o organismo fragil? ¿Quem lhe preparára uma razão solida? ¿Quem The formára um caracter energico ¿Quem The fortalecêra o espirito impressionista e vivissimo na ginastica de pensamentos reflexivos, graves e profundos? ¿Quem a instruíra, enfim, na sciencia da vida e nas melindrosas responsabilidades da familia e do lar? Ninguem. Porque, em- bora filha de Paes moral e intelectualmente superiores, a rotina prevalece no seio das familias. E aquilo a que se chama educação primorosa, sem noções de psicologia sobre a vida e a natureza dos sêres, não prepara as raparigas senão para serem mulheres infelizes, inconscientes, alheias á sua missão, vivendo á tona da vida, hastes morbidas e frageis de onde só brotam rebentos imperfeitos, forças depauperadas que degeneram em agentes de dor e desgraça.