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Camões (Machado de Assis)

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CAMÕES


I


Tu quem és? Sou o seculo que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A gloria resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou elle? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lyra alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penuria, ermo, desgraça.

Nobremente soffreu? Como homem forte.
Esta immensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A gloria appetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis á morte.
Elle, que é morto?... Vive a eterna vida.


II


Quando, transposta a lugubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
Á região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,

A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquelle olhar ethereo e cristallino
Rompe agora da palpebra sagrada.

Tu, que tambem o Purgatorio andaste,
Tu, que rompeste os circulos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,

Ora o tens, como um guia alto e superno
Que a Natercia da vida que choraste
Chama-se Gloria e tem o amor eterno.

III


Quando, torcendo a chave mysteriosa
Que os cancellos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,

Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a acção famosa
Aos ouvidos da própria e extranha gente.

E disse: «Se já n’outra, antiga edade,
«Troya bastou aos homens, ora quero
«Mostrar que é mais humana a humanidade.

«Pois não serás heroe de um canto fero,
«Mas vencerás o tempo e a immensidade
«Na voz de outro moderno e brando Homero.»


IV


Um dia, junto á foz de brando e amigo
Rio de extranhas gentes habitado,
Pelos mares asperrimos levado,
Salvaste o livro que viveu comtigo.

E esse que foi ás ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca immortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.

Assim, um homem só, naquelle dia,
Naquelle escasso ponto do universo,
Lingua, historia, nação, armas, poesia,

Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquillo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.