Saltar para o conteúdo

Caramuru/II

Wikisource, a biblioteca livre
I

Era a hora em que o sol na grã-carreira
De tórrido zênite vibra igualmente,
E que a sombra dos corpos companheira
Na terra extingue com o raio ardente,
Quando, ao partir a turba carniceira,
Se viu Diogo só na praia ingente,
Entre mil pensamentos, mil terrores,
Que a dor fez grandes e o temor maiores.

II

Parecia-lhe ver de gente insana
O bárbaro furor, a fome crua,
A agonia dos seus na ação tirana,
E, temendo a dos mais, presume a sua.
Quisera opor-se à empresa desumana,
Pensa em arbítrios mil com que o conclua.
Se fugirá? mas donde? se os invada?
Porém, enfermo e só, não vale a nada.


III

"Oh! mil vezes (dizia) afortunados
Os que entregues à fúria do elemento
Acabaram seus dias sossegados,
Nem viram tanta dor, como experimento!
Que estavam finalmente a mim guardados
Este espanto, este horror, este tormento!
Que escapei (Santos Céus!) desse mar vasto
Para a feras servir de horrível pasto!

IV

E hei de agora (infeliz!) ver fraco e inerme
Que dos meus vá fazer um pasto horrendo
Essa patrulha vil, que agora enferme!
Que me veja sem força em febre ardendo!
Ah! Se pudera em meu vigor já ver-me!
Que ardor sinto em meu peito de ir rompendo
E turba vil fazendo em mil pedaços,
Truncar pescoços, mãos, cabeças, braços!

V

Não pode (é certo) a débil natureza;
Porém que esperas mais, mísero Diogo?
Que pode resultar da forte empresa?
Será mal morrer já, se há de ser logo?
Faltam-me as forças; sim, sinto a fraqueza;
Mas o espírito o supre e neste afogo
Tira forças ocultas da nossa alma,
Que ela não mostra ter, vivendo em calma.


VI

E como quer enfim que o mande a sorte,
Morra-se, que talvez se não desuna
O sucesso feliz uma ação forte,
Que acaso um temerário achou fortuna;
E quando irado o céu me envie a morte,
E que a mão do Senhor meus erros puna,
Recebo o golpe, que me for mandado,
Morrerei, assim é, porém vingado.

VII

Nem deixo de esperar que a gente bruta,
Vendo o estrago da espada e do mosquete,
Não se encha de pavor na estranha luta
E força maior creia que a acomete:
Se tomo as armas, que salvei na gruta,
Escudo, cota, malha e capacete,
Posso esperar que um só me não resista,
E, antes que o ferro, mos someta a vista."

VIII

Disse; e, entrando na sólita caverna,
Cobre de ferro a valorosa fronte;
Um peito de aço de firmeza eterna
E o escudo, onde a frecha se desponte,
Dispõe de modo em forma tal governa,
Que nada teme já que em campo o afronte
Nas mãos de ferro tinha uma alabarda,
A espada à cinta, aos ombros a espingarda;


IX

Saía assim da gruta, quando o monte
Coberto vê da bárbara caterva;
E no que infere da turbada fronte,
Sinais de fuga de derrota observa.
A algum obriga o medo a que transmonte,
Outros se escondem pelo mato ou erva,
Muitos fugindo vêem com medo à morte,
Crendo achar na caverna um lugar forte.

X

Mas o prudente Diogo, que entendia
Não pouca parte do idioma escuro,
Por alguns meses em que atento o ouvia,
Elege um posto a combater seguro.
Atento a toda voz que ouvir podia,
Por escutar dos seus o caso duro,
Entre esperanças e receio intenso,
Sem susto estava, sim, porém suspenso.

XI

Gupeva então, que os mais se adiantava,
Vendo das armas o medonho vulto,
Incerto do que vê, suspenso estava,
Nem mais se lembra do inimigo insulto
Alguns dos anhangás imaginava
Que dentro o grão-fantasma vinha oculto,
E à vista do espetáculo estupendo,
Caiu por terra o mísero tremendo.


XII

Caiu com ele junta a brutal gente;
Nem sabe o que imagine da figura,
Vendo-a brandir com a alabarda ingente
E olhando ao morrião, que o transfigura.
Ouve-se um rouco tom de voz fremente,
Com que espantá-los mais o herói procura;
E porque temem da maior ruína,
Faz-lhe a voz mais horrenda uma buzina.

XIII

Entanto a gente bárbara, prostrada,
Tão fora de si está por cobardia,
Que sem sentido, estúpida, assombrada,
Só mostra viva estar porque tremia.
Quais verdes varas de árvore copada,
Se assopra a viração do meio-dia,
De uma parte à outra parte se meneiam,
Assim de medo os vis no chão perneiam.

XIV

Mas Diogo naqueles intervalos,
Suspendendo o furor do duro Marte,
Esperança concebe de amansá-los
Uma vez com terror, outra com arte.
A viseira levanta e vai buscá-los,
Mostrando-se risonho em toda a parte:
"Levantai-vos" (lhes diz), e, assim dizendo,
Ia-os co’a própria mão na terra erguendo.


XV

Gupeva, que no trajo mais distinto
Parecia na turba do seu povo,
O principal no mando, meio extinto
Pelo horror do espetáculo tão novo,
Tremendo em pé ficou, sem voz e instinto.
E caíra sem dúvida de novo,
Se nos braços Diogo o não tomara
E de água ali corrente o borrifara.

XVI

"Não temas (disse afável), cobra alento."
E, suprindo-lhe acenos o idioma,
Dá-lhe a entender que todo esse armamento
Protege amigos, se inimigos doma;
Que os não ofende o bélico instrumento,
Quando de humana carne algum não coma.
"- Que, se a comerdes, tudo em cinza ponho..."
E, isto dizendo, bate o pé, medonho.

XVII

"Toma nas mãos (lhe diz), verás que nada
Te hão de fazer de mal." E, assim falando,
Põe-lhe na mão a partasana e espada,
E vai-lhe à frente o morrião lançando.
Diminui-se o horror na alma assombrada
E vai-se pouco a pouco recobrando.
Até que a si tornando reconhece
Donde está, com quem fala e o que lhe of’rece.


XVIII

"Se dalém das montanhas cá te envia
O grão-Tupá (lhe diz), que em nuvem negra
Escurece com sobra o claro dia,
E manda o claro sol, que o mundo alegra;
Se vens donde o sol dorme e se à Bahia
De alguma nova lei trazes a regra,
Acharás, se gostares, na cabana
Mulheres, caça, peixe e carne humana."

XIX

"- A carne humana! (replicou Diogo,
E como pode, explica em voz e aceno).
Se vir que come algum, botarei fogo,
Farei que inunde em sangue esse terreno;
"- Pois, se os bichos nos devem comer logo,
(O bárbaro lhe opõe com desempeno)
A nós faz-nos horror, se eles nos comem,
E é menos triste que nos trague um homem.

XX

"O corpo humano (disse o herói prudente)
Como o brutal não é: desde que nasce,
É morada do espírito eminente,
Em quem do grão-Tupá se imita a face.
Sepulta-se na terra, qual semente
Que, se não apodrece, não renasce.
Tempo virá, que aos corpos reunida,
Torne a noss'alma a respirar com vida.


XXI

O lume da razão condena a empresa;
Pois, se o infando apetite o gosto adula,
Para extinguir a humana natureza,
Sem mais contrários, bastaria a gula.
Que se a malícia em vós ou se a rudeza
O instinto universal de todo anula,
É contudo entre os mais coisa temida
Que outrem, por vos conter, vos tire a vida."

XXII

Disse Diogo, e conduzia à gruta
O principal da bárbara caterva,
Que ali seguido pela gente bruta,
O lugar conhecido atento observa.
Gupeva a tudo atende e tudo escuta,
Mas sempre o horror, que concebeu, conserva;
E, olhando às armas, sem que a mais se arroje,
Chega com mão furtiva, apalpa e foge.

XXIII

Vinha a noite já então seu negro manto
Despregando na lúcida atmosfera,
Quando buscam sossego ao seu quebranto
No ninho as aves e na toca a fera,
E quando o sono com suave encanto,
Aos míseros mortais a dor modera;
Mas não modere em Diogo a mordaz cura
De amansar o furor da gente dura.


XXIV

Por dissipar na gruta a sombra fria,
Toma o férreo fuzil que, o fogo ateia,
E, vendo a rude gente que o acendia
E brilhar de improviso uma candeia,
Notando a pronta luz, que no óleo ardia,
Não acaba de o crer de assombro cheia.
Crêem, portanto, que o fogo do céu nasça
Ou que Diogo nas mãos nascê-lo faça.

XXV

Era o costume do selvagem rude,
Roçar um lenho noutro com tal jeito,
Que vinha por elétrica virtude,
A acender lume, mas com tardo efeito.
Mas, observando, sem que o lenho o ajude,
Em menos de um momento o fogo feito,
O menino imaginou que a Grécia creu,
Quando viu ferir fogo a Prometeu.

XXVI

Acesa a luz na lôbrega caverna,
Vê-se o que Diogo ali da nau levara:
Roupas, armas, e em parte mais interna,
A pólvora em barris, que transportara.
Tudo vão vendo à luz de uma lanterna,
Sem que o apeteça a gente nada avara,
Ouro e prata, que a inveja não lhe atiça,
Nação feliz, que ignora o que é cobiça!


XXVII

Mas entre objetos vários a que atende
Nota Gupeva extático a pintura
Que num precioso quadro, que ali pende,
Representava a Mãe da formosura:
Se seja coisa viva não entende,
Mas suspeitava bem pela figura
Digna a pessoa, de que a imagem era,
De ser mãe de Tupá, se ele a tivera.

XXVIII

"- Esta (pergunta o bárbaro) tão bela,
Tão linda face, acaso representa
Alguma formosíssima donzela,
Que esposa o grão-Tupá fazer intenta?
Ou porventura que nascesse dela
Esse que sobre os céus no sol se assenta?
Quem pode geração saber tão alta?
Mas se há mãe, que o gerasse, esta é sem falta."

XXIX

Encantado está o pio lusitano
De ouvir em rude boca tal verdade;
E adorando o mistério soberano,
" Mãe ter não pode (disse) a divindade,
Mas, sendo Deus eterno, fez-se humano;
E sem lesão da própria virgindade
A donzela o gerou, que pisa a lua,
Digna mãe de Tupá, mãe minha e tua.


XXX

Peçamos, pois que é mãe, que nos defenda,
Que te dê para ouvir dócil orelha
E contigo o teu povo recomenda."
Dizendo o herói assim, devoto ajoelha.
Gupeva o mesmo faz com fé estupenda
E pendente de Diogo, que o aconselha,
Levanta as mãos, como ele levantava,
E, vendo-o lacrimar, também chorava.

XXXI

Mas crendo rude, como então vivia,
Que fosse coisa vive a imagem santa,
Que por mãe de Tupá tudo saía,
Tendo poder conforme a glória tanta,
Repete o que ouve a Diogo com voz pia
E à mãe de Deus o coração levanta.
E encostando entre os rogos a cabeça,
Faz a noite e o desvelo que adormeça.

XXXII

Já o purpúreo, trêmulo horizonte,
Rosas parece que espalhava a aurora;
E o sol que nasce sobre o oposto monte,
A bela luz derrama criadora.
Ouvem-se as avezinhas junto à fonte,
Saudando a manhã com voz sonora;
E os mortais, já o sono desatados,
Tornavam novamente aos seus cuidados.


XXXIII

Quando Gupeva, manso e diferente
Do que antes fora na fereza bruta,
Convoca a ouvi-lo a multidão fremente,
Que à roda estava da profunda gruta.
Pasto no meio da confusa gente,
Que toda dele pende e atenta escuta:
"Valentes paiaiás (diz desta sorte)
Que herdais o brio da prosápia forte:

XXXIV

Se ontem, do vil Sergipe surprendidos,
Vimos o grão-terreiro posto a saco,
Fomos cercados sim, mas não vencidos;
Não foi vitória, foi traição de um fraco;
Sabia bem por golpes repetidos,
Com quanto esforço na peleja ataco
E como sem traição faria nada,
Não tendo eu armas, vêm com mão armada.

XXXV

Sombra do grão-Tatu, de quem me ferve
Nestas veias o sangue, de quem trago
A invicta geração, que em guerra serve
De espanto a todos, de terror, de estrago;
Por que a glória a teu nome se conserve
E por que a cante da Bahia o lago,
Mandas de lá de donde o mundo acaba
Para o nosso socorro este Imboaba.


XXXVI

Tu lhe mudaste em ferro a carne branda,
Tu fazes que na mão se acenda e lhe arda
A viva chama que Tupá nos manda,
Tupá, que rege o céu, que o mundo guarda.
Com ele hei de vencer por qualquer banda,
Com ele em campo armado, já me tarda
O cobarde inimigo, que a encontrá-lo
Vivo, vivo me animo a devorá-lo.

XXXVII

Sabeis, tapuias meus, como morrendo
Nossos irmãos e pais, que eles matavam,
Postos debaixo já o golpe horrendo,
Vosso nome a os vingar tristes chamavam;
Também vistes na guerra combatendo
Que estrago neles estas mãos causavam;
E as vezes que vos dei no campo vasto
Mil e mil deles por sab'roso pasto.

XXXVIII

Mas não come o estrangeiro, nem consente
Comer-se carne humana; e só teria
Outra carne qualquer por inocente,
Aves, feras, tatus, paca ou cotia.
Receba, pois, de nós grato presente
De quanto houver nos matos da Bahia:
Saia-se à caça; e, como lhe compete,
Prepare-se a hospedagem de um banquete."


XXXIX

Separa-se o congresso em breve espaço,
Dispõe-se em alas numerosa tropa:
Quem com taquaras donde pende o laço
Onde a avezinha cai, se incauta o topa;
Quem dos ombros suspende e quem do braço
Armadilhas diferentes; outro ensopa
Em visgo as longes ramas do palmito,
Onde impróvido caia o periquito.

XL

Os mais com frechas vão, que a um tempo seja
Tiro, que ofenda a fugitiva caça,
Ou armas (se ocorresse) na peleja,
Quando o inimigo de emboscada a faça.
E porque aos mais presida e tudo veja,
À frente do esquadrão Gupeva passa;
Nem fica Diogo só, que tudo via,
Mas segue armado a forte companhia.

XLI

Mais arma não levou que uma espingarda;
E, posto ao lado de Gupeva amigo,
Pronto a todo o acidente e posto em guarda,
Traz na cautela o escudo ao seu perigo.
Entanto a destra gente a caça aguarda,
E algum se afoita a penetrar no abrigo
Onde esconde a pantera os seus cachorros,
Outro a segue por brenhas e por morros;


XLII

Até que de Gupeva comandada,
Em círculo se forma a linha unido,
Onde quanto há de caça já espantada
Fique no meio de um cordão cingido.
A rês ali, do estrondo amedrontada,
Num centro está de espaço reduzido;
À mão mesmo se colhe: coisa bela!
Que dá mais gosto ver, do que comê-la.

XLIII

Não era assim nas aves fugitivas,
Que umas frechava no ar, e outras em laços
Com arte o caçador tomava vivas;
Uma, porém, nos líquidos espaços
Faz com a pluma as setas pouco ativas,
Deixando a lisa pena os golpes laços,
Toma-a de mira Diogo e o ponto aguarda:
Dá-lhe um tiro e derriba-a coa espingarda.

XLIV

Estando a turba longe de cuidá-lo,
Fica o bárbaro ao golpe estremecido,
E cai por terra no tremendo abalo
Da chama do fracasso e do estampido;
Qual do hórrido trovão com raio e estalo
Algum junto aquém cai, fica aturdido,
Tal Gupeva ficou, crendo formada
Nu arcabuz de Diogo uma trovoada.


XLV

Toda em terra prostrada, exclama a grita
A turba rude em mísero desmaio,
E faz o horror que estúpida repita
Tupá Caramuru! temendo um raio.
Pretendem ter por Deus, quando o permita
O que estão vendo em pavoroso ensaio,
Entre horríveis trovões do márcio jogo,
Vomitar chamas a abrasar com fogo.

XLVI

Desde esse dia, é fama que por nome
Do grão Caramuru foi celebrado
O forte Diogo; e que escutado dome
Este apelido o bárbaro espantado.
Indicava o Brasil no sobrenome,
Que era um dragão dos mares vomitado:
Nem doutra arte entre nós a antiga idade
Tem Jove, Apolo e Marte por deidade.

XLVII

Foram qual hoje o rude Americano,
O valente romano, o sábio argivo;
Nem foi de Salmoneu mais torpe o engano,
Do que outro rei fizera em Creta altivo.
Nós que zombamos deste povo insano,
Se bem cavarmos no solar nativo,
Dos antigos heróis dentro às imagens
Não acharemos mais que outros selvagens.


XLVIII

E fácil propensão na brutal gente,
Quando em vida ferina admira uma arte,
Chamar um fabro a Deus da forja ingente,
Dar ao guerreiro a fama de um deus Marte.
Ou talvez por sulfúreo fogo ardente,
Tanto Jove se ouviu por toda a parte,
Hércules e Teseus, Jasões no Ponto
Seriam coisas tais, como as que eu conto.

XLIX

Quanto merece mais que em douta lira
Se canto por herói quem, pio e justo,
Onde a cega nação tanto delira,
Reduz à humanidade uni povo injusto?
Se por herói no mundo só se admira
Quem tirano ganhava um nome Augusto,
Quando o será maior que o vil tirano,
Quem nas feras infunde um peito humano?

L

Tal pensamento então n'alma volvia
O grão Caramuru, vendo prostrada
A rude multidão, que Deus o cria
E que espera desta arte achar domada.
Política infeliz da idolatria,
Donde a antiga cegueira foi causada;
Mas Diogo, que abomina o feio insulto,
Quando aumenta o terror, recusa o culto.


LI

"De Tupá sou (lhe disse) onipotente
Humilde escravo e como vós me humilho;
Mas do horrendo trovão, que arrojo ardente,
Este raio vos mostra que eu sou filho.
(Disse e outra vez dispara incontinente)
"- Do meio do relâmpago, em que brilho,
Abrasarei qualquer que ainda se atreva
A negar a obediência ao grão Gupeva."

LII

Deu logo a amiga mão com grato aspecto
Ao mísero Gupeva, que, convulso
No horror daquele ignívomo prospeto,
Jazia sem sentido e já sem pulso.
" Não temas (diz-lhe), amigo, que eu prometo
Que do meu braço se não mova impulso
Senão contra quem for tão temerário
Que sendo-te eu amigo, é teu contrário."

LIII

Recebera o bom Gupeva um novo alento,
Sentindo a grata mão que à vida o chama;
Nem pode duvidar pelo exprimento
De quando Diogo com fineza o ama.
Mas, sempre com receio do instrumento,
Teme que outra vez lance, a horrível chama;
E deixa-o no erro Diogo, a fim que incerto,
Nenhum pelo pavor se chegue ao perto.


LIV

Mas, por deixar incerta a gente infida,
Dá-lhe astuto o arcabuz que não tem carga:
" E quem (diz) é fiel pode com vida
Tê-lo na mão sem hórrida descarga;
Porém, se algum faltasse à fé devida,
Sentirá da traição por pena amarga,
Com próprio dano seu, cola mortal risco,
Relâmpago e trovão, fogo e corisco.

LV

Que eu, acordado esteja ou que adormeça,
Vigia em guarda minha o fogo oculto,
E a traição pagará com a cabeça
Quem tentasse fazer-me um leve insulto;
Porém, se eu mal não quero que aconteça,
Pode um menino, como pode o adulto,
E o mais fraco que houver na vossa gente,
Ter o trovão nas mãos sem que arrebente.

LVI

Porém guardai-vos, vós, que só no peito,
Só n'alma que tenhais tenção malina,
Vereis que trovão faz por meu respeito
E que vem no estampido a vossa ruína."
Treme Gupeva, ouvindo este conceito,
E humilde a fronte ao grão Diogo inclina,
Certo de não faltar na fé que rende,
Donde o raio e trovão crê que depende.


LVII

Convoca entanto o principal temido
As esquadras da turba, então dispersa,
E ao grão Caramuru pede rendido
Que eleja casa no país diversa,
E que a gruta deixando, suba unido
Onde em vasta cabana o povo versa;
Nem duvide que a gente fera e brava
O sirva humilde e se sujeite escrava.

LVIII

Do recôncavo ameno um posto havia,
De troncos imortais cercado à roda,
Trincheira natural, com que impedia
A quem quer penetrá-lo a entrada toda;
Um plano vasto no seu centro abria
Aonde, edificando à pátria moda,
De troncos, varas, ramos, vimes, canas
Formaram, como em quadro, oito cabanas.

LIX

Qualquer delas com mole volumosa
Corre direita em linhas paralelas;
E mais comprida aos lados que espaçosa,
Não tem paredes ou colunas belas.
Um ângulo no cume a faz vistosa,
E coberta de palmas amarelas,
Sobre árvores se estriba, altas e boas,
De seiscentas capaz ou mil pessoas.


LX

Qual o velho Noé na imensa barca,
Que a bárbara cabana em tudo imita,
Ferozes animais próvido embarca,
Onde a turba brutal tranqüila habita,
Tal o rude tapuia na grande arca;
Ali dorme, ali come, ali medita,
Ali se faz humano e, de amor mole,
Alimenta a mulher e afaga a prole.

LXI

Dentro da grã-choupana a cada passo
Pende de lenho a lenho a rede extensa;
Ali descanso toma o corpo lasso,
Ali se esconde a marital licença.
Repousa a filha no materno abraço
Em rede especial que tem suspensa,
Nenhum se vê (que é raro) em tal vivenda
Que a mulher de outrem nem que a filha ofenda.

LXII

Ali chegando a esposa fecundada
A termo já feliz, nunca se omite
De pôr na rede o pai a prole amada,
Onde o amigo e parente o felicite;
E, como se a mulher sofrera nada,
Tudo ao pai reclinado então se admite,
Qual fora tendo sido em modo sério
Seu próprio, e não das mães, o puerpério.


LXII

Quando na rede encosta o tenro infante,
Pinta-o de negro todo e de vermelho;
Um pequeno arco põe, frecha volante,
E um bom cutelo ao lado; e em tom de velho,
Com discurso patético e zelante,
Vai-lhe inspirando o paternal conselho:
Que seja forte, diz, (como se o ouvisse)
Que se saiba vingar, que não fugisse.

LXIV

Dá-lhe depois o nome, que apropria,
Por semelhança que ao infante iguala,
Ou com que o espera célebre algum dia,
Senão é por defeito que o assinala.
A algum na fronte o nome se imprimia,
Ou pintam no verniz, que tem por gala;
E, segundo a figura se lhe observa,
Dão-lhe o nome de fera, fruto ou erva.

LXV

Trabalho entanto a mãe sem nova cura,
Quando o parto conclui e em tempo breve,
Sem mais arte que a próvida natura,
Sente-se lesta e sã, robusta e leve:
Feliz gente, se unisse com fé pura
A sóbria educação que simples teve!
Que o que a nós nos faz fracos sempre estimo,
Que é mais que pena ou dor, melindre e mimo.


LXVI

Vai com o adulto filho a caça ou pesca
O solícito pai pelo alimento;
O peixe à mulher traz e a carne fresca
E à tenra prole a fruta por sustento.
A nova provisão sempre refresca
E dá nesta fadiga um documento,
Que quem nega o sustento a quem deu vida,
Quis ser pai, por fazer-se um parricida.

LXVII

Que se acontece que a enfermar se venha,
Concorre com piedade a turba amiga,
E por dar-lhe um remédio que convenha,
Consultam-no entre si com gente antiga;
Buscam quem de erva saiba ou cura tenha,
Que possa dar alívio ao que periga
Ou talvez sangram numa febre ardente,
Servindo de lanceta um fino dente.

LXVIII

Mas, vendo-se o mortal já na agonia,
Sem ter para o remédio outra esperança,
Estima a bruta gente ação mui pia,
Tirar-lhe a vida com a maça ou lança.
Se morre o tenro filho, a mãe seria
Estimada cruel quando a criança,
Que pouco antes ao mundo dela veio,
Não torna ao seu lugar no próprio seio.


LXIX

Tal era o povo rude, e tal usança
Se lhe vê praticar no vício iluso:
Tudo nota Diogo, na esperança
De corrigir por fim tão cego abuso.
No lugar da cabana, em que descansa
Menos da gente e multidão confuso,
Põe-lhe a rede Gupeva que o convida
De rica e mole pluma entretecida.

LXX

Mas eis que um grande número o rodeia
De emplumados, feíssimos selvagens;
Ouve-se a casa de clamores cheia,
Costume antigo seu nas hospedagens.
Qualquer chegar-se a Diogo ainda receia,
Por ter visto as horríficas passagens;
Mas mair ma apadu de longe explicam,
E Bem vindo o estrangeiro! significam.

LXXI

Por costumado obséquio os mais luzidos
Tomam Diogo nos braços, e no peito
A frente lhe apertavam comedidos,
Sinal entre eles do hospital respeito.
Tiram-lhe em pressa as roupas e vestidos,
E, pondo-o sobre a rede, como em leito,
Sem mais dizer-lhe nada e sem ouvi-lo,
Tudo se afasta e deixam-no tranqüilo.


LXXII

Com maior cerimônia outra visita
Festiva celebrava o seu cortejo;
Femínea turba, que o costume incita
A oferecer-se honesta ao seu desejo.
Senta-se sobre os pés e felicita,
Cobrindo o rosto a mão, como por pejo;
Vestidas vêm de folhas tão brilhantes,
Que o que falta ao valor têm de galantes.

LXXIII

Parece ser da mesa o despenseiro
Um selvagem, que o nome lhe pergunta:
Se tem fome, lhe diz; ou se primeiro
Quereria beber? e logo ajunta,
Sem mais resposta ouvir, sobre o terreiro
A comida que trouxe em cópia munta:
Põe-se-lhe uiçu de peixe e carne crua
E o mimoso cauim, que é paixão sua.

LXXIV

Todos com gula comem furiosa,
Sem olhar, sem falar, nem distrair-se;
Tanto se observem na paixão gulosa,
Que mal pudera ao vê-los distinguir-se
Se são feras ou homens. Vergonhosa,
Triste miséria humana! confundir-se
Um peito racional c’o um bruto feio
No horrendo vício donde o mal nos veio!

LXXV

Acabada a comida, a turba bruta
O Estrangeiro bem-vindo outra vez grita;
E a tropa feminina, que isto escuta,
Cobre a face com as mãos e o pranto imita.
Gupeva, pois, que o hóspede reputa
Causa do seu prazer e autor da dita,
O sacro fogo a roda lhe ateava,
Cerimônia hospital, que o povo usava.

LXXVI

Bem presumia Diogo, no que explora,
Que algum mistério se ocultava interno;
Lembra lhe a chama que o Caldeu adora,
O fogo das vestais recorda, eterno.
Nem duvidava que de origem fora
Costume da nação, rito paterno,
Trazida, se é possível que se creia,
Na dispersão das gentes, da Caldéia.

LXXVII

Perguntá-lo dos bárbaros quisera;
Mas, como o aceno e língua muito engana,
Acaso soube que a Gupeva viera
Certa dama gentil brasiliana;
Que em Taparica um dia compreendera
Boa parte da língua lusitana,
Que português escravo ali tratara,
De quem a língua, pelo ouvir, tomara.

LXXVII

Paraguassu gentil (tal nome teve),
Bem diversa de gente tão nojosa,
De cor tão alva como a branca neve,
E donde não é neve, era de rosa;
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa;
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
Quanto honesta encobriu, fez ver lhe o preço.

LXXIX

Um principal das terras do contorno
A bela americana tem por filha;
Nobre sem fasto, amável sem adorno,
Sem gala encanta e sem concerto brilha
Servia aos carijós, que tinha em torno,
Mais que de amor, de objetos a maravilha;
De um desdém tão gentil, que a quem olhava,
Se mirava imodesto, horror causava.

LXXX

Foi destinada de seus pais valentes
Esposa de Gupeva; mas a dama
Fugia de seus olhos impacientes,
Nem prenda lhe aceitou, porque o não ama.
Nada sabem de amor bárbaras gentes,
Nem arde em peito rude a amante chama;
(Gupeva, que não sente o seu despeito,
Tratava a sem amor, mas com respeito.

LXXXI

Deseja vê-lo o forte lusitano,
Por que interprete a língua que entendia,
E toma por mercê do céu sob'rano
Ter como enteada o idioma da Bahia.
Mas, quando esse prodígio avista humano,
Contempla no semblante a louçania,
Pára um, vendo o outro, mudo e quedo,
Qual junto de um penedo outro penedo.

LXXXII

Só tu, tutelar anjo, que o acompanhas,
Sabes quando a virtude ali se arrisca
E as fúrias da paixão, que acende estranhas,
Essa de insano amor doce faísca
Ânsias no coração sentiu tamanhas
(Ânsias que nem na morte o tempo risca),
Que houvera de perder-se naquel’hora,
Se não fora cristão, se herói não fora.

LXXXIII

Mas desde o céu a santa inteligência
Com doce inspiração mitiga a chama,
Onde a amante paixão ceda à prudência
E a razão pode mais que a ardente flama.
Em Deus, na natureza e na consciência
Conhece que quer mal quem assim ama,
E que fora sacrílego episódio
Chamar à culpa amor, não chamar-lhe ódio.


LXXXIV

No raio deste heróico pensamento,
Entanto Diogo refletiu consigo,
Ser para a língua um cômodo instrumento
Do céu mandado na donzela amigo.
E, por ser necessário ao santo intento,
Estuda no remédio do perigo:
"- Que pode ser? sou fraco; ela é formosa...
Eu livre... ela donzela... Será esposa."

LXXXV

"- Bela (lhe disse então), gentil menina,
(Tornando a si do pasmo, em que estivera)
Sorte humana não é, mas é divina,
Ver-me a mim, ver-te a ti na nova esfera.
Ela a frase, em que falo aqui te ensina;
Ela, se não me engana o que alma espera,
Um fogo em nos acende, que de resto
Eterno haja de arder, se arder honesto.

LXXXVI

Desde hoje se a meus olhos corresponde
O meigo olhar das lúcidas pupilas,
Se amor é... porque amor quem é que o esconde?
Se por ele essas lagrimas destilas,
Com que chamas meu peito te responde,
Com mão de esposa poderás senti-las."
Disse; estendendo a mão, ofereceu-lha;
Ela, que nada diz, sorriu-se e deu-lha.

LXXXVII

Põe-lhe de fuga os olhos, que abaixara;
E, ou de amante ou também de vergonhosa
Um tão belo rubor lhe tinge a cara,
Como quando entre os lírios nasce a rosa:
Três vezes quis falar, três se calara;
E ficou do sossobro tão formosa,
Quanto ele ficou cego; e em tal porfia,
Nem um, nem outro então de si sabia.

LXXXVIII

Mas, refletindo logo, o herói prudente,
Fixou no coração com fé segura,
Não cumprir as promessas de presente,
Antes que lhe entre n'alma a formosura.
Rende-lhe o seu amor, mas inocente;
E faz lhe prometer que com fé pura,
Enquanto se não lava e regenera,
Em continência viverão sincera.

LXXXIX

"E esta fé (diz-lhe), esposa em Deus querida,
Guardar-te hoje prometo em laço eterno,
Até banhar-te n'água prometida,
Por cândida afeição de amor fraterno.
Amor, que sobreviva à própria vida,
Amor, que preso em laço sempiterno,
Arda depois da morte em maior chama,
Que assim trata de amor quem por Deus ama."

XC

"Esposo (a bela
diz), teu nome ignoro;
Mas não teu coração, que no meu peito,
Desde o momento em que te vi, que o adoro.
Não sei se era amor já, se era respeito,
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro,
Que de dois corações um só foi feito.
Quero o batismo teu, quero a tua Igreja,
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja.

XCI

Ter-me-ás, caro, ter-me-ás sempre a teu lado;
Vigia tua, se te ocupa o sono;
Armada sairei, vendo-te armado,
Tão fiel nas prisões como num trono.
Outrem não temas que me seja amado;
Tu só serás senhor, tu só meu dono".
Tanto lhe diz Diogo, e ambos juraram,
E em fé do juramento as mãos tocaram.