Carta de guia de casados/A espôsa

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A espôsa


Meu ânimo (segundo já deixo dito) não foi aconselhar como deve casar-se ; que o acêrto de v. m. me livrou dêsse trabalho ; podendo por êsse exemplo aconselhar a todos como era bem que casassem ; se forem tão venturosos que assim possam.

Para o que já casou, e supomos bem casado, é que ajuntamos aqui estas advertências.

Perguntou alguém, algumas vezes, se seria lícito deixar usar a mulher própria daquelas bôas partes de que a dotou a natureza ; como o cantar, o dançar, e ainda o fazer versos, e outras semelhantes prerrogativas, que em algumas se acham, e em muitas pudera haver, se o receio as não suprimisse.

Certamente, que se v. m. me fizera esta pergunta, me vira eu em grande enleio ; porque o aniquilar em qualquer pessoa as perfeições que Deus lhe deu, impiedade parece ; fazer-lhas exercitar naqueles limites que a prudência requer, parece impossível.

Dizia a êste propósito a princesa de Roca-Sorion em França, que foi discretíssima, e não bem casada : Que das três potências com que entrára em poder de seu marido, duas lhe tomara êle, e lhe deixára uma só, que ela lhe dera bem fàcilmente. Porque nem a potência do entender, nem a do querer tinha já ; e só lhe ficara a memória de que as tivera em algum tempo, para sentir mais a pena de se vêr agora sem entendimento, nem vontade.

De tôdas as graças das mulheres, a graça é a que tenho por mais perigosa ; porque para se usar dela, necessita de menos aparelhos ; sendo, a meu juízo, esta graça a mais perigosa desgraça.

Cantar a mulher a seu marido, e filhos, se os tem, cousa parece lícita, e o seria o dançar alguma hora na sua câmara, enquanto a idade lhe permitisse essa alegria. Não louvo o trazer castanhetas na algibeira, o saber jácaras, e entender de mudanças do sarambeque, por serem indícios de desenvoltura.

Mas, aquilo de ser engraçada, e aguda na visita, na Igreja, no côche e no paço, traz grandes inconvenientes consigo, e dificilíssimos de atalhar ; porque das cousas a que se segue aplauso, bem ou mal ganhado, ninguém se arrepende.

Vele-se disso seu marido ; e, se com ela acabar a emenda, creia que fez muito ; porque dêste mal nunca vi a nenhum doente convalecido.