Carta de guia de casados/Advertência

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ADVERTÊNCIA
 

Possuo e li as mais notáveis edições da Carta de Guia de Casados.

A primeira é de 1651 ; a segunda de 1665.

O autor estava em Lisbôa no penúltimo ano de sua vida, quando se publicou a segunda. Com certeza a reviu ; mas apenas a alterou na Carta a D. Francisco de Melo, a quem dedica o livro. Por esta alteração não deram os editores subseqüentes, que provàvelmente se serviram da primeira, reputando-a mais correcta ou mais respeitável pela primazia da antiguidade. A alteração está no nome do impressor. Na primeira, escrevia D. Francisco : Agora ma avisa Paulo Craesbeek que na sua oficina está impressa a minha Carta de Guia de Casados, etc. Na segunda edição, altera : Agora me avisa Antonio Craesbeek que na sua oficina, etc. A natural explicação da mudança é que, ao tempo da segunda edição, era já falecido Paulo, e sucedera na ofieina seu filho António.

Escolhi das várias edições a melhormente ortografada ao uso moderno, e desbastei nessa mesma o que me pareceu destoar das outras emendas bem aconselhadas. Como a doutrina dêste livrinho é aplicada e bem cabida, em geral, nos costumes de hoje em dia, entendi que o devia despir dos trajos antigos, e pelo tanto dissaboridos para quem se não regosija em comparações filológicas.

A Carta de Guia saiu de um fôlego da abundante veia do autor. Não tem paragens, nem divisões de matérias, bem que as haja abundantíssimas. Por isso reparti o assunto geral em capítulos, cada um com seu título, podendo assim o leitor achar no Índice a matéria que deseja relêr ou consultar.

Pode haver alguém que por muito amartelado de antiguidade, na frase de D. Francisco Manuel de Melo, me acoime de irreverência ao grande escritor, à conta destas superfetações em obra que dois séculos respeitaram na sua primitiva maneira. A minha veneração aos antigos é menos acrizolada, se as suas obras merecem andar na circulação da renovada economia social. Raras são as que o merecem, e dessas poucas haverá que a geração nova perfilhe, se lhas não amaneirarmos, em bôa consonância com o gôsto, por maneira que a instrução senão descaze do recreio.

Uns livros são monumentos literários, padrões de um ciclo do espírito humano, marcos que apontam para o passado, e não preluziram o itinerário do futuro. Êsses, a meu juízo, devem subsistir inviolados, íntegros, e intactos das renovações que lhes não dariam cunho de moeda correntia.

Outros livros, tirados da sciência e experiência da vida, sempre nova e vélha a um tempo, devem amoldar-se às evoluções estéticas, quanto couber no possível, sem desfiguração do substancial. A Carta de Guia pertence à pequena colecção dêsses livros de filosofia, que nunca descáem de sua virilidade, e vão de par, pelos séculos dentro, com as renovadas gerações, reflorindo perpétua mocidade.

Alterar a locução arrevezada e semi-bárbara do Cancioneiro do colégio dos Nobres seria destruir êsse monumento que é, assim qual está, o deleite dos que professam a sciência filológica. Guardar intacta a prosódia incorrecta dos livros acondicionados a recrearem e instruirem sempre, não me parece razão que mereça refutada.

Fiz o que se me figurou razoável e útil a quem lêr esta nova edição da Carta de Guia de Casados.