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Carta de guia de casados/Prefácio biográfico

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PREFÁCIO BIOGRÁFICO
 

 

I

 

D. Francisco Manuel de Mello tem duas celebridades: a do talento e a da desgraça.

Da fama que lhe apregôa o espírito mais culto e universal do seu tempo, temos a prova perpetuada em livros numerosos, ainda hoje relidos com prazer e por estudo.

Da que lhe vem do infortúnio sabe-se pouco e nubelosamente.

Grande parte de suas obras é datada no cárcere.

O delito de que a justiça a argüiu, praticado ou aleivosamente atribuido, não o esclarecem os seus biógrafos mais esmerilhadores.

Quem mais colheu na tradição, e em documentos coevos, foi o snr. Alexandre Herculano.

Socorreu-se o eminente historiador de um manuscrito inédito que o autor da Biblioteca Lusitana tinha visto, e de que o snr. Inocêncio Francisco da Silva teve alguma notícia.

O snr. Herculano publicou dois extensos fragmentos daquele inédito, que o encaminhou em conjecturas tam judiciosamente depreendidas, quanto competia a espírito de tanta lucidez e rara intuïção. [1]

Sem embargo, a causa da prisão de D. Francisco Manuel de Melo não ficou dilucidada.

Também eu possuo o inédito, cujos fragmentos o snr. A. Herculano acompanhou de louvores tam dignos quanto honradores da memória de D. Francisco.

E, se outros documentos escritos por mão coetânea me não ilucidassem, êste bosquejo biográfico não iria adiantar nada ao que é já sabido àcêrca do grande escritor, prêso tantos anos, e não poucos desterrado.

As notícias, que encontrei, desatam tôdas as dúvidas, alumiam os pontos obscuros de vingança tam prolongada e desacostumada con fidalgos do porte de D. Francisco Manuel de Melo, ainda parente da casa de Bragança.

Posso afoitamente dizer que tenho bem travadas as scenas do drama em que tam inocente e ilustre vítima foi imolada.


II


Abstenho-me de esmiuçar os lanços mais notórios da vida do insigne soldado, diplomata e escritor.

São de sobra conhecidos das relações do abade de Sevér, de Costa e Silva, e do laborioso bíbliófilo o snr. Inocêncio Francisco da Silva, relações que muito convém ampliar com os acrescentamentos do snr. Alexandre Herculano, no citado periódico.

O meu propósito é deter-me tam sòmente na parte desconhecida ou hipotética da sua história, a causa bem esquadrinhada da sua desgraça — a prisão de dôze anos, funestamente continuados no destêrro.

Os passos mais gloriosos de sua vida, referidos por êle mesmo, devem ser lidos muito mais agradàvelmente. Relata-os a D. João IV, com a verdade usada naquele tempo com os reis. Não podia desmentir-lhos o monarca, sendo invocado a depôr na veracidade dêles. Os honrados serviços de D. Francisco Manuel de Melo tinham de si mesmos o galardão de poderem ousadamente entrar ao paço, e humilharem o rei que autorizava os afrontamentos e as vilanias.

É o que o leitor vai julgar do Memorial em parte já conhecido dos extractos do snr. A. Herculano. Dou cópia inteira dêsse honroso documento, do qual escreveu aquele perspicaz historiador…[2] é talvez o mais eloqüente arrazoado, escrito na língua portuguesa, e que nunca se imprimiu. Dêle tirámos o pedaço que acima ficou transcrito, e outro que vamos apresentar, como um modêlo de veemência, sentimento, e estilo, para que de caminho se veja quam rica e bela é esta nossa língua portuguesa, que para exprimir afectos nem carece de neologismos, nem de enredar-se de arcaismos e de torcer-se no estilo metafísico-bárbaro dos rudes escritores do 15.º século. [3]

Dêste manuscrito faz menção o snr. Inocêncio Francisco da Silva em duas partes da sua resenha das obras de D. Francisco Manuel.

Primeiramente diz: «E, se havemos de estar pelas tradições e memórias da época, nada menos verdadeiro que o delito que lhe imputavam. Além do que a êste respeito se tem dito desde muito tempo, o snr. dr. J. C. Aires de Campos acaba de comunicar-me uma nota muito curiosa, lançada por mão contemporânea em um dos interessantes livros manuscritos que o mesmo senhor possue. Dela consta explícitamente que o motivo oculto da perseguição feita a D. Francisco fôra um encontro nocturno, que êste tivera com o próprio soberano, em casa de uma dama de alta qualidade (cujo nome a decência manda calar) senhora de muito bem fazer a quem lho pedia, que um e outro requestavam; e pela qual nessa ocasião vieram ambos às mãos, desembainhando as espadas, e acutilando-se mùtuamente. Parece que a vantagem ficára então da parte de D Francisco. Mas pouco depois da noute fatal, aparecendo assassinado um criado da fidalga; a complacente Justiça tirou azo dêste sucesso para desagravar a majestade ofendida, lançando o assassinio à conta do seu atrevido competidor.»

Volta o snr. Inocêncio F. da Silva a citar o mesmo documento, quando no catálogo das obras inéditas de D. Francisco Manuel, escreve desta forma:

Justificação de suas acções ante Deus, ante Sua Majestade, e ante o mundo contra as falsas calúnias impostas dos seus inimigos. — Diz Barbosa que era um memorial, que êle viu, dirigido a el-rei D. João IV, começando pelas palavras: «Senhor: os romanos costumavam ouvir em seu senado os réus, etc.» e acabando com as seguintes: «Isto quero, isto promulgo, isto espero fazer.» Não sei se porventura será êste o mesmo de que me dá notícia o snr. dr. J. C. Aires de Campos, declarando ter dêle cópia em um dos seus volumes de miscelânias manuscritas, onde tem o título: Memorial a el-rei D. João IV, nosso Senhor. Oferece Francisco Manuel de Melo, prêso há seis anos por parte da justiça. [4]

É, com tôda a certeza, o mesmo. Também o meu manuscrito, intitulado das duas maneiras em que o tem o snr. dr. Aires de Campos, e em que o viu o autor da Biblioteca, principia e termina pelas frases citadas por Barbosa, e contém a mesma nota que o snr Inocêncio da Silva indica, no que respeita ao motivo da prisão.

Agora segue o traslado da justificação de D. Francisco Manuel de Melo.

MEMORIAL [5]
A el-rei D. João IV N. 6.
Oferece
D. Francisco Manuel de Melo

Prêso há seis anos por parte da Sua Justiça.

Justificação de suas acções, ante Deus, ante Vossa Majestade, e ante o mundo, contra as falsas calúnias impostas por seus inimigos.

Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter: qui autem depravat vias suas manifestus erit:


SENHOR

Os romanos costumavam ouvir em seu senado aos réus. Entendiam que a justificação própria de ordinário periga na pena, ou na voz alheia.

Maior documento é o de Deus, que não só ouviu as desculpas que Adão não tinha que lhe dar; mas ainda o chamou para que lhas desse.

Os príncipes cristãos que se desviaram dêsse antigo e bom costume, parece que tàcitamente prometeram usar maior piedade com aqueles que não ouviam: essa pode ser que fôsse a causa de se mudar êste costume.

Apadrinham tamanhos exemplos a ousadia que tomo em aparecer por estas letras aos Reais pés de V. Majestade.

Quanto e mais, Senhor, que aos príncipes não menos os engrandece quem lhes pede justiça, que quem lhes pede mercês; pois por ambas estas acções lhes dão ocasião de exercitarem o grande poder deDeus na terra.

É presente a V. Majestade, é notório a todos como

estou prêso há seis anos. Qual a causa, qual a prova, quais os respeitos, que tal o sofrimento, que tam esquisito o rigor com que ordenou a minha fortuna fôsse e seja tratado.

Não só no glorioso reinado de V. Majestade, mas em muitos outros antecedentes, se não tem visto ― por semelhante acusação ― prisão tam longa, sentenças tam rigorosas.

Eu fôra ditosíssimo se V. Majestade se mandasse informar desta verdade; de que poderiam avisar os tribunais, e os ministros.

E por que suposto que a minha justiça foi tantas vezes ventilada, quem poucas foi ditosa! E de tôdas seriam a V. Majestade sòmente referidos pelos juízes seus pareceres sem que apresentassem os motivos em que os fundaram. Permitta-me V. Majestade agora por princípio da clemência que invoco, represente aqui eu brevissimamente o processo da minha causa.

Pela morte de Francisco Cardoso foram os matadores achados, e condenados à morte e o mostrador dêle a galés.

Em a tal sentença se toma por fundamento cometerem aquele delito por mandado de certa pessoa, que os réus vária e injuridicamente deram a entender ser eu.

Mas a sentença por ser dada entre outras pessoas não pode resultar em meu dano conforme e resolução do Direito tam vulgar, que até eu sei está assim escrito na ordenação, Lib. 3.°, art. 81.

Com tal pretexto de réu, fui prêso pelas justiças seculares, que depois de vários incidentes, remetcram a causa ao tribunal da corôa, porque ali se determinasse o ponto a jurisdição; o qual sendo julgado a meu favor, fui remetido ao juizo dos cavaleiros.

Pedi então nêle se pronunciasse sôbre a prisão, a que ainda não estava pronunciado, e que para êste provimento, o juiz se regulasse pela devassa geral, que era só o acto legitimo donde podia, ou não, resultar-me culpa.

Suspendeu a deliberação dêsse requerimento, enquanto se ventilava a matéria do assassinio, em que aquele quis envolver sua acusação com igual falência que na de mandante.

Finalmente declarou o juiz não continha o caso assassinamento, anulando o sumário, e procedimentos dos actos, deixando porém as chamadas culpas em sua realidade.

Esta sentença se confirmou em segunda e terceira instância.

Por quais sentenças parece sem dúvida haverem usado de fundamentos contrários, porque não pode o sumário, e procedimentos do juizo secular serem nulos, sem que também o ficassem sendo as culpas, que me formavam por êles.

Assim, sendo julgada a nulidade do processo, se anulou também a validade da culpa, porque de causa notóriamente nula se não pode produzir algum efeito jurídico, e que vàlidamente prejudique: o que não só mostram as leis, mas tôda a bôa razão.

Sendo, enfim, entregue ao juiz dos cavaleiros, e havendo êle então de pronunciar sôbre a prisão (como no despacho antecedente havia prevenido) pois já se decidira o não haver assassinto — declarou — não sei por que causa, me livrasse em seu juízo da prisão em que estava.

E por que se veja a violência, que ali padeceu minha justiça, é de saber, que ainda que a sentença do juiz se confirmou, foi sòmente quanto à questão do assassinio, de que por então sòmente se tratava; e não quanto à validade das culpas e pronunciação.

Isto é claro, por que se o juiz, antes de averiguado aquele ponto, não quis deferir ao requerimento da pronunciação; ¿como podia a mesa, e a instância, adiantar-se a julgarem em mais de que se litigava de presente?

Assim, a título de réu, fui acusado pela via ordinária, pela culpa de mandante.

Pois se pelas três sentenças estava livre do assassinio, que era mandar matar por dinheiro, ou cousa que o valesse, bem se segue que também fiquei livre de o haver mandado matar.

Por que as circunstâncias que se aniquilaram e destruiram pelas três sentenças, por se presumir mandara matar por dinheiro, eram as próprias que estavam já nulas, e sem algum crédito por se presumir que mandaram matar sem êle.

E não constando de tal mandado, nem podendo ser de efeito em meu prejuizo as declarações dos réus, várias e nulas, bem se segue haver sido mal condenado pelo juiz dos cavaleiros em degrêdo perpétuo para a África, mil cruzados para a parte, duzentos para as despesas da mesa, e cento para seu juízo.

Prova-se melhor o excessivo rigor desta sentença, se o seguinte se considera.

Admitiu-me o juiz a defesa, condenou-me como indefeso: disseram contra nim os réus incerta e vâriamente: disseram em minha defesa quarenta testemunhas: êles convencidos por duas sentenças da Relação, no mesmo caso por falsários, havendo envolvido nêle outras pessoas; as testemunhas que juraram por mim tôdas de grande crédito. Nunca se deu causa contra mim desta morte. Eu provei uma tam justificada, como era vingar o matador o adultério que o morto lhe tinha feito.

Os mesmos e maiores fundamentos havia para não haver de ser pela mesa, como fuí condenado em perpétuo degrêdo para a Índia; privação da comenda, dois mil cruzados para a parte, quinhentos para as despesas do tribunal, e cento para as do juizo: cuja execução em maior parte está já feita.

Conhece-se qual seja o ódio da parte que me persegue, não por verdadeira queixa, mas com ruim vontade, pois sendo esta sentença tam notàvelmente rigorosa — como disse a voz pública — ainda apelou dela, pedindo igualmente comigo a V. Majestade 3.ª instância.

Permissão clara de Deus, que nas mãos de V. Majestade havia posto o remédio duma tam grande semrazão, para que visse o mundo, que nem ainda aquele a cujo favor se dirigia, queria nela consentir, para que de nenhuma sorte houvesse efeito.

Concedeu-me V. Majestade a 3.ª instância, consultaram a V. Majestade já os juízes; pende agora do árbitro Real a resolução.

A essa causa são os votos dêstes juízes consultivos, e não definitivos.

Êste suave estilo guardaram sempre os mestres da nossa ordem, — e das outras — e lhes foi assinado pelos Sumos Pontífices, não certo para se aterem ao parecer dos sucessores; pois a clemência do Príncipe está sôbre tôda a autoridade; mas para se justificarem com os súbditos, em qualquer acção rigorosa, quando a pedissem as qualidades do réu, e do delito.

Considere V. Majestade se com viva esperança, posso estar de que sendo V. Majestade o árbitro, o Senhor, e o Mestre, haja de emendar o êrro alheio, de que êles que tam sem causa justa criminaram minha inocência, hajam de moderar o excesso a que subiram meu castigo.

Veja-se com olhos de prudência, se do mais perdido homem da República se pode crer semelhante feito, quanto mais de um, a quem pela bondade de Deus, antes dêste, se não impôs algum outro leve desconcêrto.

Ninguém ignora a paixão de que fizeram motivo alguns dos que me julgaram, para me condenarem; cujo efeito, eu mais adivinhei, que mereci, prevenindo dêle a V. Majestade muito antes de ser julgado por que sabia, que me tinha a paixão certo do dano naquele mesmo logar, onde a razão me mandava buscar o remédio.

Não houve naquela sentença uma só clausula, que não provasse o que dela referiu o público sentimento.

Não só excede a pena à mensura da culpa, nem havida nem provada, mas ainda esquecida a lei, pela qual não há degrêdo nem um assinado para a Índia, fez como todos se lembrassem da causa, por que a lei se esquecia.

Condena em degrêdo perpétuo, pena impraticável, senão contra o hereje, de cuja presença se deve velar a república.

Manda-me pagar maior quantia do que vale quanto possuo.

Castiga com privação de comenda, cousa tam sem exemplo, como sem razão; por que jàmais se viu que por crime de qualidade não exceptuada, fôsse algum réu por algum titulo privado, nem do chapéu, nem do vestido que possue.

É a razão jurídica, por que em tais casos, a pena da condenação, sòmente pode alegar a quantidade e não o esbulho e menos a total privação que não esteja, como não está, admitida por direito expresso.

Enfim, Senhor, tais as passadas sentenças, que não receberam menos benefícios, que eu próprio na emenda delas, as consciências dalguns que me julgaram e maior ainda as almas de outros, que já podem delas estar tam arrependidos, quanto necessitados de que a justiça de V. Majestade os alivie dêste encargo.

Mas porque a experiência me tem mostrado, que com armas mais dobres, além desta acusação, que estejam contra mim meus inimigos, impondo-me diante de V. Magestade várias, e falsíssimas calúnias, lícito me deve ser, Senhor, tomando de V. Majestade a devida licença, tornar sequer esta vez por meus procedidimentos, dando minhas obras a minhas palavras tanta confiança, como razão.

Sei não se esquece V. Majestade das obrigações em que nasci, e em que vivi com a sereníssima casa de Bragança.

Depois que nela entrou e snr. Infante D. Duarte, bisavô de V. Majestade por casamento com a snr.ª Infante D. Isabel, até o dia presente, posso verificar que nenhum dos senhores desta real casa deixou nascer, e se criar nos braços de meus parentes.

Irmãos foram, primos, e sobrinhos, de meu bisavô, e pai, D. Diogo de Noronha, D. António, D. Luís, D. Afonso, e D. Cristóvão, outro D. António, D. Luís, e D. Rodrigo de Mello, D. Diogo, D. António, D. Gomes, e D. Francisco, que todos viveram e morreram no serviço da sereníssima casa de Bragança, e nela ocuparam com honra e fidelidade os maiores logares.

Primeiro e não com menos vantagens os Manueis, que com meus passados, e comigo tinham quási igual parentesco, e entraram no serviço, e debaixo da protecção dos sereníssimos principes avós de V. Majestade quando o segundo casamento do snr. duque D. Jaime, com a snr.ª duquesa D. Joana de Maiorca. Assim D. Francisco Manuel, D. Cristóvão, D. Diogo, D. Rodrigo, e outros que todos adquiriram para si, e para os seus, a honra de criados, e confidentes de sereníssima casa.

E, se estas são as causas por que entre os humanos se contrái obrigação, se produz confiança, também não são para esquecer, e basta que se não finjam, outros mais poderosos, e não menos certos principios: cuja memória só obriga a que V. Majestade tam liberalmente honre a muitos, e dêles se confie.

Sabem todos os que professam o estudo da antiguidade, era D. Maria Melo, mãe de meu bisavô D. Gomes de Melo, filha de D. Francisco de Faro, segundo filho do primeiro conde de Faro, D. Afonso, que foi irmão do 2.º serenissimo Duque D. Fernando.

Bastava por certo a honra desta lembrança, para me fazer que adorasse quanto mais que amasse a Real Pessoa, vida, e Estado de V. Majestade, e sobejamente para se ter por firme o coração de um homem, que sempre trouxe a honra diante dos olhos, como sabem amigos e inimigos.

Se o meu procedimento desmentiu a minha obrigação, eu quero ser o primeiro que o acuse. Permita-me V. Majestade lhe represente minhas acções, por ver se dalguma delas fui contra aquilo que devia.

Não deixará V. Majestade de se lembrar que no mesmo tempo em que outros lhe faltaram, faltando as grandes mercês e benefícios, eu próprio, êste mesmo caluniado e perseguido D. Francisco, só pela mercê de se lembrar V. Majestade para se servir de mim, me dispus com todo o ânimo a fazê-lo na maior, e mais importante ocasião, e negócio, que à Real casa de V. Majestade havia acontecido.

Vive António Pereira que era então agente de V. Majestade na côrte de Madrid, por cujas mãos V. Majestade foi servido dirigir-me as ordens, como me devia empregar naquela acção, quando no ano de 1637 sucederam neste Reino as alterações de Évora. Creio também é vivo um Mateus Álvares que a V. Majestade servia nestas jornadas, e as fez várias vezes à côrte, e à minha pousada, levando, e trazendo segredos, e confianças.

Não tinha V. Majestade a êsse tempo outro criado em Madrid, que António Pereira, e tinha — como é de crer — muitos émulos, muitos fiscais, e muitos olheiros para as suas acções.

Satisfiz eu segundo meu pouco cabedal, a grande honra que V. Majestade me havia feito, dando cartas e informações ao Rei, valido, e ministros; avisando a V. Majestade dos secretos e expedientes que se tomavam nas juntas e conselhos, àcêrca daquele negócio, conforme o observava, e por minha indústria podia alcançar dos ministros com quem tinha suficiente entrada; serviu-se V. Majestade agradecer-me por carta de 20… de 1637.

Nada tomou do instrumento o bom successo. E nem por eu ser inferior a tamanha causa, deixa de ser presente a V. Majestade e ao mundo, como se acertou em tudo o que convinha.

Sei que se deve à prudência com que V. Majestade o dispôs, não à diligência com que eu o solicitei. Mas nem por isto deixa de conhecer-se qual foi meu ânimo, e a minha diligência.

Pois, Senhor, ¿que prémios? ¿que vantagens? ¿que interesses me obrigaram a padecer tanto, como devia então? E agora quando incomparáveis os podia esperar das Reais mãos de V. Majestade — ¿quem fez que me desobrigasse de os merecer? ¿como depois os desmereci?

Foi mandado o conde de Linhares a Évora, e eu em sua companhia a Vila Viçosa, com aquele fim que se podia esperar pudesse ter então em seus desígnios a côrte castelhana dirigida por um ministro industrioso, e político, qual era o conde-duque.

¿E que era eu então, senão um requerente, que em tudo dependia do bom semblante de ministro tam poderoso?

Tam pouco a idade me favorecia. A honra supria por tudo.

Porventura o galardão que podia esperar de comprazer àquele ministro, os sinais que êle não dissimulava, de desejar lhe revelasse alguns segredos dos que passavam neste reino, foram bastantes para me meter nos beiços outras razões, que aquelas que me ditava a obrigação, e o amor que tinha, e guardei sempre à real pessoa de V. Majestade, e a seu estado.

Se eu o finjo, se agora vãmente o alego a V. Majestade por serviço. fale por mim o efeito.

¿Haverá, Senhor, quem pese em justa balança êste serviço e êste procedimento com os dos que mais na feliz aclamação de V. Majestade se adiantaram, que deixe de ter estas provas por muito iguais às daquela fidelidade?

¿Não se sabe que o ser católico em Inglaterra, é maior fineza, que o ser cristão em Roma? ¿Ser português entre os castelhanos, há quem diga que é menos do que ser português entre os portugueses?

Viu-se bem o efeito; porque apenas chegou a Castela a nova da aclamação felicíssima de V. Majestade quando por primeira diligência me mandou prender el-rei D. Filipe à Catalunha onde estava servindo com bom logar e aplauso.

Nenhum outro motivo teve aquele desconfiança, que as informações que poucos tempos antes eu havia dado na côrte àcêrca dos ânimos de Portugal, pois principalmente daqueles que nas ocasiões da passada suspeita me foram mandados observar.

V. Majestade sabe quais eram, e Deus sabe se mo pagaram. Quis-me Deus salvar a vida para empregar melhor os riscos dela no serviço de V. M. a quem não tardei em oferecê-la; mais que o que se tardou em me darem liberdade.

¿Quam alheios são, Senhor, êstes passos, de poder esperar por êles o cativeiro, a injúria, e a miséria daquela mesma vida?

Soltaram-me, e não sem prémio, e honra, como constou a V. Majestade, pelos despachos que pus — quando vim — nas mãos reais de V. Majestade.

¿Acaso cuidei, ou duvidei, se havia de vir logo entregar essa liberdade que gozava no império de V. Majestade? Não por certo. O primeiro fui, que rompendo dificuldades, e deixando cómodos, vim a êste reino.

Antes de chegar a êle comecei a servir a V. Majestade, pois, entrando nos estados de Holanda, fui encarregado em nome de V. Majestade pelo embaixador Tristão de Mendonça do govêrno daquela armada que êle lá prevenira para socorro dêste reino.

Governei-a, e a conduzi a Lisboa, sendo aquele um dos maiores socorros que em seu pôrto entraram à custa de imenso trabalho meu; pela contrariedade dos tempos e falta de todos os meios necessários.

Justifiquei e assino particular o ânimo com que vinha, por só alcançar a honra de vassalo de V. Majestade fazendo por estudo de não pedir mercê alguma, por que desejava primeiro merecê-las.

Os postos para que V. Majestade foi servido destinar-me por sua real grandeza, se movia a fazer mercê dêles não por algum género de diligência minha.

Aqueles em que todos cuidaram poderia ser empregado, se desviaram. Eu observando como pude o semblante de minha fortuna, em nenhum posto falei jamais, e dalguns procurei humildemente escusar-me; por que conhecia convir assim naquele tempo, tanto ao serviço de V. Majestade, como à minha conservação, até que o mesmo tempo qualificasse meus procedimentos, com o que, a prazer de todos, podia merecer outros logares.

Fui depois, em fôro de soldado, servir a V. M. a Alentejo. O como servi e obrei em um ano de assistência, dirão os cabos debaixo de cuja mão servia. Vivos são, honrados são, estou pelo que disserem.

No mesmo dia em que eu estava diante dum esquadrão, governando-o contra os inimigos de V. M. estava alguma pessoa, — que desta prática já haverá dado a Deus conta — nesse Paço, persuadindo a V. M. me mandasse prender, por que eu sem dúvida, — a juízo da sua bondade — ia com ânimo de me passar a Castela.

Fundava bem esta sua suspeita em me haver eu escusado de testemunhar contra Francisco de Lucena aquilo que eu não sabia. E êste tal, queria por fôrça que eu o soubesse, com pena de me ter a mim, e querer que me tivesse V. Majestade, e o mundo naquela conta em que êle tinha aquele ministro.

Fui desta acção avisado, por que a prática não parou nos ouvidos de V. M. Então por satisfação minha, tomando a ousadia da verdade, escrevi a V. M. uma carta a que V. M. com singular clemência foi servido de me mandar responder com outra, firmada da Real mão, em 4 de janeiro de 1642, servindo-se V. M. de honrar-me tanto, que se acham nela escritas estas palavras: «me pareceu dizer-vos que de vossos procedimentos tenho a devida satisfação. E fico certo que em tudo o mais que se oferecer de meu serviço procedereis sempre muito como deveis às obrigações de quem sois, e à confiança que eu faço de vossa pessoa».

Não houve ocasião, conselho, negócio, ou confiança naquele exército, em que os cabos dêle a não fizessem de mim mui particular: pois será V. Majestade lembrado fui bôa parte para se resolver a campanha daquele ano, tam bem lograda, como todos viram.

Sabem todos se não deu fórma àquele primeiro exército sem meus papeis, parecer, e indústria. Examine-se bem quais destas acções foram simuladas. Veja-se em que faltei com a pessoa, com o juízo, e com a fazenda. E se para êstes empregos se achou outro mais diligente, ou mais oferecido.

Serviu-se V. Majestade depois de me mandar encarregar a condução de tôdas as tropas rendidas por suas armas em Castela, tirando-me para êsse efeito do exército em virtude duma sua Real carta, em que V. Majestade, depois de considerar a importância dêste serviço, houve por bem de que se continuasse.

«Confiando de vós, e do amor com que me servis, procedereis nesta ocasião como sempre fizestes em tudo o que se vos encarregou». E mais abaixo:

«Sendo certo que êste serviço que ora me ides fazer, se há-de avaliar em vossas pretenções como se fôra feito no exército, em que com tanta satisfação minha o estáveis fazendo». Foi esta carta escrita em Évora a 17 de setembro de 1643.

Representei eu então a V. Majestade as razões que havia para que V. Majestade me escusasse de misturar com aquela gente, por que sem falta, isto seria dar novas asas com que voasse ódio de meus inimigos.

V. Majestade o não houve assim por bem, mandando-me responder por bôca de seus ministros, podia estar seguro que a confiança que V. M. de mim fazia, se não embaraçava com semelhantes calúnias.

Concluido aquele negócio, que então era não de pequeno cuidado, se deu V. Majestade por tam servido do modo porque nêle me houvera, que fez mercê de mandar escrever por carta de 5 de Outubro de 1643, o seguinte:

«Agradeço-vos muito o trabalho, e o acêrto com que tendes, concluido êste negócio».

Algumas, e várias vezes me escreveu V. M. mandando-me assistir em algumas juntas, com os maiores ministros, sôbre matérias de guerra, política, e conveniência: como se vê dos bilhetes por que fui chamado, mado, que em meu poder tenho.

Vivos são, e ao lado de V. M. assistem alguns dos sujeitos que ali concorreram, e ouviram meus pareceres; testifiquem do zêlo, e amor ao real serviço com que sempre tratei aquelas matérias.

Pareceu a V. M. podia bem empregar-me a servi-lo na condução e cómodos dos soldados reformados de Flandres e Catalunha, que andavam na côrte; mandou-me assim V. M. por seu real decreto de 5 de novembro de 1611, e em muito breves dias, por minha indústria, despejei a côrte de requerentes, e povoei as fronteiras de reformados.

O expediente que depois se tomou sôbre seus soldos, conservando-se-lhes algum àparte, eu fui o primeiro que o arbitrei a V. M. por um papel, que para isso ofereci, muito tempo antes que se resolvesse.

E enfim se praticou na mesma fórma que eu o havia proposto.

Mandou-me V. Majestade por decreto de 16 de novembro de 1643 recebesse em seu serviço os soldados que andavam vagos na côrte, daquelas tropas dos rendidos de Castela, das quais por minhas diligências, desfiz mais de setecentos homens, que para o poder do inimigo não voltaram, e dêstes reconduzi a V. M. em menos de três dias, uma leva de quinhentos soldados vélhos, que fui remetendo aos almazens, segundo V. M. me ordenara.

Não é para esquecer (nem creio que a V. M. esquecerá), que achando-se quási tôda a nobreza dêste Reino na campanha de Badajoz, fui eu escolhido dos generais para vir dar conta a V. M. de bôca, dos designios e potências de suas armas, e receber de V. Majestade as ordens de como se servia, elas se empregassem em seus progressos.

Entendia V. Majestade ser obrigado a dar fórma de vida a Mamede Pereira de Lacerda, môço fidalgo de sua casa, filho de D. Maria da Cunha, camareira que hoje é da Rainha nossa Senhora.

Para êste efeito, sabendo que eu passava por mestre de campo para Flandres, e levantava gente neste reino, houve V. M. por bem escrever-me encomendando-me por carta sua e escrita em Vila Viçosa a…de… que pelas obrigações que tinha a Mamede Pereira, desejava V. M. que eu me encarregasse do seu cómodo: assisti-lhe de maneira, que sem que êle houvesse alguma hora saído da côrte de V. Majestade, o fiz prover duma companhia de infantaria, o levei e deixei em Flandres encaminhado a tal fortuna que se não resolveu êle deixái-a, nem ainda quando no crescimento da grandeza de V. M., se lhe estavam prometendo muitos aumentos.

Neste próprio tempo e ocasião me encarregou V. M. outro tal cómodo, para a pessoa de Teodósio Tavares, também criado de V. M.; e sem que êle houvesse servido na guerra, só por obedecer a V. M. o provi duma bandeira. Foi, e esteve em Flandres, donde veio digno de V. Majestade o fazer sargento-mór de um têrço desta cidade.

Foi V. Majestade encarregado do govêrno das arams dêste Reino; posto (ao que então se pode observar) solicitado pelos inimigos de V. Majestade em cujo exercício, a êste respeito, convinha haver grande vigilância. E por que aquelas matérias não eram muito presentes a V. Majestade, quis V. Majestade que lhe apontasse o modo por que se devia haver na direcção das armas; e sem embargo de estar ausente enviei a V. Majestade um papel pelo qual oferecia a V. Majeste de tôdas as advertências não só competentes ao posto, mas à conservação da autoridade de sua Real pessoa, que tam bem se logrou depois.

Dois dos maiores negócios externos competentes à conservação desta corôa, foi V. Majestade servido de me querer encarregar dentro em uma semana estando em Évora.

Um se serviu V. Majestade de comunicar-me em sua Real presença; outro me mandou V. Majestade tratar pelo secretário de estado, que por ambos haverem contido segrêdo não declaro, nos quais, não fiz a V. Majestade menor serviço (havendo representado minha insuficiência) de que o fizera encarregando-me de cada um dêles, donde nasceu encarregarem-se a outras pessoas capazes, que dêles deram mui bôa conta ; devido em alguma maneira àquela útil e humilde desistência que em mim acharam, fundado no conhecimento que de mim tinha de que V. Majestade se deu por muito satisfeito.

Êstes foram, senhores, meus progressos em dois anos e meio que assisti sôlto, na côrte, e no exército de V. M. Mande V. M. agora a meus émulos, que declarem quais foram os outros por que me caluniam. Quais foram meus desígnios vistos por minhas obras, ou vindicados por elas nestes seis anos de minha prisão.

Daqui donde não podia servir a V. M. com a pessoa na maneira que me era possível, jámais estive ocioso em seu serviço.

Achar-se hão nas secretarias de V. M. papeis, cartas, e lembranças minhas, prevenindo, lembrando, e pedindo a V. M. aquilo que, a meu fraco juízo, parecia mais conveniente nas presentes ocorrências.

Publicaram os inimigos dêste reino, e de V. M. livros, e inventívas contra a honra dêle e seu real direito, tomei a pena e me opus a seu desconcêrto, e escrevendo contra os émulos na maneira que o mundo sabe.

Por semelhantes serviços fez V. M. avantajadas mercês e pela escrita dum só livro, em matéria discutida, e abundante, se serviu V. M. de dar o seu desembargo do Paço ao dr. Francisco Vaz de Gouveia.

Do crédito que os estrangeiros deram a meus escritos, não é inventora a vaidade; mas testemunha a experiència, vê-se a conta que dêles se tem feito, achando-se alegados largamente em comprovação dos procedimentos violentíssimos dos émulos de V. M., donde êles, e sua voz, recebem a confusão que se conhece.

Apenas tive notícia de que V. M. gostaria vêr escritas as vidas dos sereníssimos Reis Portugueses, para correrem com suas medalhas pelo mundo, logo me dispus a fazer a V. M. êste serviço ; cuja execução está bem próxima, que por minha parte se não retarda.

Sucedeu o milagroso caso quando Deus nos guardou a vida de V. M. (que guarde, e prospere por muitos anos). Houve V. M. de o fazer assim manifesto às gentes, e houve esta própria pena de ser uma das que o publicaram, servindo-se V. M., que o meu papel por direcção de seus ministros fôsse aos ministros, Príncipes, e Nações amigas, em cujas linguas corre há muito convertido ; sendo êste um meio por onde novamente se conhece a justiça de V. M. pelo grande cuidado com que Deus guarda a sua pessoa, e inocência.

Havendo hoje neste Reino tantos sujeitos grandes, teve V. M. por bem, que sendo eu o menor dêles, me ocupasse em historiar a vida, e feitos do snr. Duque D. Teodósio que Deus haja seu pai sereníssimo.

Senhor, se estas são minhas acções exteriores, examinem-se minem-se as interiores; pelas quais logo o ânimo dos homens é reconhecido.

¿ Quais são os meus tratos ? ¿ Qual o ânimo? ¿ Que sofrimento ? ¿ Que pesar ou alegria com os bons, os maus sucessos públicos ? ¿ Que pessoas são as da minha amizade ? ¿ Que tais as razões que me são ouvidas ?

Constará que minhas correspondências são com os sujeitos mais graves dêste reino, e de maior religião, e virtude; que aqueles com quem tenho mais estreita amizade, e me fazem graça de a quererem ter comigo, são os ministros, e criados de V. Majestade mais confidentes, e mais para o serem.

Fóra de Portugal, aqueles que de mim tem alguma lembrança, e eu a conservo para com êles, são os embaixadores, residentes, secretários, e outras pessoas de quem V. Majestade faz tôda a conta, e estimação.

Meus comércios são as letras, e os livros, em que maior piedade, e honra se acha, como é notório.

Meu sentimento e alegria é aquele e aquela que um bom e zeloso vassalo deve ter nos prósperos, e adversos acontecimentos da sua pátria.

É constante, que sucedendo neste reino, depois que eu a êle vim, quási todos os casos de infelicidade (sem os quais não quis Deus conceder a glória de vermos a V. Majestade em seu trono) foi também êle, servido por sua infinita bondade, que havendo-se enredado naquelas matérias muitas pessoas com culpa, ou sem ela, não fui eu nenhuma dessas.

Não é menos certo que em nove anos de Portugal, em seis de prisão e em quási todos de perseguição foi sempre tam claro, e tam singelo, o meu procedimento que apesar do artifício dos émulos não houve nunca logar de me ocasionarem esta última ruína. ¿ Onde se achará, Snr., no mundo um mau que assim saiba, e assim possa reprimir a sua malícia ? ¿ E por que se não acabará de crer que é bom, quem por tantas obras, e por tantos anos o tem mostrado ?

¿ Que maldade não comete, quem contra um proceder tam justificado pretende opôr sombra de maliciosos pensamentos ?

Dou todos por testemunhas da moderação com que levo meus trabalhos.

¿ Acaso vêr-me enterrado vivo, no melhor da minha idade, quando pudera esperar possuir o que vejo desperdiçar aos outros, tirou alguma hora de mim uma só queixa, uma só palavra impaciente ?

Vendo encaminhar a uma total ruína minha justiça, e tendo por certo havia pessoas, que folgariam de ma não achar, e chegando a tanto, que ma não acharam, ¿ foi porventura tamanha causa bastante para que eu quebrasse êstes cadeados de bons respeitos que voluntàriamente havia lançado em minha própria bôca ?

Cansei a V. Majestade alguma hora, com petições de melhoras, ou alívio de prisão, senão que padecendo meus males, e trabalhos, me acomodei sempre de tal sorte com prisão que V. Majestade me assinou, que já pode ser que pela conformidade com que a levava, houvesse quem dessa temperança quisesse fazer artifício.

¿ Ouviu alguém o meu nome antes de agora pelos tribunais, acusado de algum delito ?

Esta observação é um dos incentivos que mais estimula a meus contrários, a fazerem hoje contra mim todo o esfôrço da sua malícia.

Sabem, que livrando-me Deus desta acusação, não acharam, nem acharão outra em que poderem empecer-me.

Não incluida só em Portugal a fama da violência, com que de meus inimigos era tratada minha justiça, voou tanto, que chegando aos ouvidos do Cristianíssimo Rei de França, como verdadeiro irmão, e fiel amigo de V. Majestade procurou concorrer com sua autoridade Real, escreveu a V. Majestade a seguinte carta, não sei se mais em recomendação da minha causa, que em desagravo da justiça dêste reino :


«Muito alto, muito excelente, muito poderoso Príncipe, nosso muito caro, e muito amado bom irmão, e primo.

O snr. D. Francisco Manuel, vassalo de V. Majestade, e que de presente está prêso na tôrre vélha de Lisbôa por causa duma falsa acusação, que lhe foi levantada por seus inimigos, os quais aproveitando-se de sua retenção com escurecer manifestamente a verdade, acertaram de maneira, que por êsse respeito êle foi condenado a servir a V. Majestade na Índia. Mas por quanto é fidalgo de merecimentos e que os serviços que nos fez, em nossos exércitos, nos convidam a compadecer-mo-nos da desgraça que lhe há sucedido, escrevemos esta carta a V. Majestade para lhe rogar com tôda a afeição que nos é possível, lhe queira conceder a graça que lhe é necessária, para que êle não satisfaça tal condenação, o que me será testemunho da conta que V. M. quer ter da minha recomendação, que por êste sujeito se emprega de tam bôa vontade como eu peço a Deus, muito alto, muito excelente, e muito poderoso príncipe nosso muito caro, e muito amado bom irmão, e primo, tenha a V. M. em sua santa e digna guarda.

Escrita em Paris a 6 dias de novembro de 1648. Vosso bom irmão e primo.

Luis.»

Foi tão atento ao grande decoro que devia à justiça de V. Majestade, que havendo eu recebido esta carta de el-rei cristianíssimo para V. Majestade de que com tanta razão podia confiar muito, desviei que ela se apresentasse a V. Majestade por mãos de algum ministro de França, oferecendo-a eu a V. Majestade pelas do secretário do expediente, afim de não obrigar a V. Majestade contra o seu ditame, a alguma correspondência com aquela corôa, ainda a trôco da minha utilidade.

Presentemente deixei de valer-me da intercessão dos Príncipes Palatinos, com quem tinha alguma conhecimento de Inglaterra, e da Rainha sua mãe, e irmãos quando me achei em Holanda, sendo de alguma maneira invitado com sua autoridade para êsse efeito, só por me não parecer justo oprimir as resoluções de V. Majestade com extraordinárias diligências.

Desejava, e desejo de alcançar o benefício de que necessita minha fortuna, ou da grandeza de V. M. ou da virtude da minha justiça.

Mas se depois de tam vivas razões particulares, podem ter logar as comuns, por singular favor peço a V. Majestade se sirva de mandar ouvir o que àcêrca de minha causa, procedimentos, e pessoa, diz o povo, de quem se afirma por sua bôca fala Deus.

Mande V. Majestade ouvir os soldados, os virtuosos , os amigos de letras; ouça V. Majestade os bons, como melhores que são e mais dignos de serem ouvidos, e de serem criados dos príncipes, ouçam-se aqueles em cujo poder estou há seis anos. Mande-se V. Majestade de todos êles informar àcêrca de minha vida, ditos, e feitos: mande V. Majestade contar o número de meus amigos, e de meus inimigos.

¿ Que artificio será aquele que tanto saiba fingir ? ¿ que indústria a que de tantos se recate, e a todos engabe ?

¿ Não é, Senhor, mais próprio, mais prudente, e mais cristão discurso, entender que erram um ou dois primeiro que tantos ? ¿ que se enganam os poucos antes que os muitos ? ¿ E que podem fingir os inimigos aquilo que não podem fingir todos ?

Um ano inteiro estive preparado para haver de ir ao Brasil (como se entendia) : não foi V. Majestade servido que assim fôsse. E com me vêr ficar incertamente, haver gastado, e ter perdido o pouco que tinha de meu, nem por isso fiz a V. M. alguma lembrança, nem outra diligência : não se ouviu que eu neste caso me queixasse mais da minha fortuna.

Era obrigado a crêr e sem dúvida cria, que no real peito de V. Majestade, se tinha tornado comigo resolução justa, e conveniente.

Seria grave crime meu, se sabendo (como sei) se não esquecesse V. Majestade das verdades que aqui refiro, esperasse da sua real mão, menos que uma deliberação em tudo de V. Majestade, como tôda de V. M. há-de ser ; e eu por essa a hei-de seguir, e venerar.

À vista desta modéstia, e quando cuidava me entrava a clemência pelas portas, e o fim dos trabalhos padecidos, me vejo de novo apertado, e oprimido, donde é bem para sentir mais a causa, que o efeito.

A confusa notícia que se me deu dos motivos desta novidade, é haver V. Majestade tido aviso, de que eu pretendia usar mal da confiança que de mim se fazia nesta prisão, e eu não desmereci, enquanto se passaram quatro anos que a gozei ; nem por algum excesso dei causa a repreensão, ou arrependimento de quem de mim a fazia.

Diferentes sobressaltos, mais urgentes perigos, tinha padecido minha justiça em todos os tempos passados, e em outros ânimos, que não eram o de V. Majestade, e mais fiei eu tanto dela, e do seu ânimo, que por nenhuma contingência me veio tal modo de remédio ao pensamento.

Pensamentos dificultosos são de provar ; mas só as obras tem por seus fiadores ; o que tenho obrado servirá de prova ao que tenho desejado.

Está hoje minha causa só pendente do arbítrio de V. Majestade, e ainda que essa razão me podia ter animado a lhe esperar bom sucesso, muito maior é a esperança que nasce das demonstrações, sendo V. Majestade servido de responder ao secretário do expediente, quando dêle recebeu a carta de el-Rei cristianíssimo, me assegurasse (como me assegura) se informaria V. Majestade com o mais favorável voto dos Acessores, ainda que êsse fôsse o único.

Esta própria luz observaram sempre da clemência de V. Majestade todos os ministros e pessoas grandes, que de mim compadecidos, ofereceram a V. Majestade como bons vassalos a lembrança da minha causa, por digna matéria, em que pudessem exercitar-se a grandeza e piedade como geral agradecimento. ¿ Quem seria logo tam sem fé, e sem juízo, que à vista desta real promessa, e destas benígnas demonstrações houvesse de acobardar-se ?

¿ Como quereria perder aquele mérito, que se tem por adquirido sem dúvida, em o passado sofrimento ? O desconto do que padeci em seis anos de prisão, a que as leis, a razão, e a piedade tanto olham, que o reputam por uma grande parte do castigo.

Não havendo V. M. por bem de me mandar ao Brasil, como se dizia, cuidava justamente, podia entender que V. Majestade como rei, senhor, e mestre nosso, se movia a ter maior compaixão de meus trabalhos, e não vinha em querer se me dilatassem em um tam remoto destêrro.

¿ Como se conforma esta esperança, tam justamente fundada, com a desesperação de que, sem alguma causa, fui caluniado ?

Presentíssimo é a V. Magestade, como nestes mesmos dias, atentos os grandes apertos, e faltas de fazenda em que me vejo, fiz rogar instantemente a V. Majestade, e instantemente da minha parte, pelo conde de Redondo, e depois pelo padre António Vieira, fôsse V. Majestade servido de me mandar passar desta tôrre ao castelo de Lisbôa.

Foi esta pretenção tanto nos próprios dias em que a V. M. parece se devia dar aviso de movimento (ou por melhor dizer de meus inimigos) que juntas recebi as novas de que a V. Majestade estava proposta a mudança de minha prisão ; e de que V. M. ordenava fôsse apertado nesta.

Foi sem falta, misericórdia e providência de Deus (que aos injustamente perseguidos não desampara) guardar-se para êste tempo esta calúnia ; por que fôsse ela mesmo quem por minha parte a convencesse.

Por que, Senhor, ¿ em que entendimento cabe, e pode ter entrada, que nos mesmos dias em que a V. M. disseram tratava eu de aproveitar-me das comodidades dêste logar, para me sair dêle, estivesse eu com repetidas instâncias nestes mesmos dias pedindo a V. M. me mandasse tirar daqui, e para parte donde parece que de todo se ficára impossibilitada a execução de tal pensamento, quando em mim o houvesse ?

Bem creio não duraria no ânimo de V. M. o crédito desta suspeita, (quando por minha desgraça o houvesse havido) mais que o que chegasse à memória de V. M. esta lembrança.

Eu deixei prémios por vir buscar a V. M., entreguei-lhe por eleição, e por amor a liberdade que possuía : nada disto se mudou, nem mudará em tôda a vida, porquanto nas pessoas de juízo, e cristandade, o castigo não induz desafeição da parte de quem o dá, nem da parte de quem o recebe : castiga o bom pai, e o bom senhor, e o que o não é deixa viver sem castigo ao filho, e ao súbdito, como que se lhe dá pouco da sua perdição.

Se eu o merecesse, e V. M. me castigasse, ânimo, o juízo me deu Deus para o saber agradecer ; se o não merecesse, e V. M. me castigasse, ânimo, e juízo me deu Deus para saber discernir as acções de V. M., das de meus inimigos ; e conhecer que sua malicia dêles inexcusavelmente obrigaria em vez de justiça a que contra mim se fizesse qualquer severa demonstração.

Tenho inimigos descobertos e encobertos, sabe-o, conhece-o, e conhece-os V. M. Tomo a Deus por testemunha de que não mereço ódio de nenhum, nem de ninguém. Todavia não descansam de fulminar meu dano. Não me vale para com êles, o calar, e o sofrer ; mas para com Deus, e para com V. M. muito espero que me valha.

Verem que V. M. se detém, en consentir a ruína que êles me desejam, é um novo estímulo, que está concitando a mais crueis efeitos sua ruim vontade.

Conheceram, que já aqui não tinham outra alguma causa, com que criminar o meu procedimento ; Inventaram esta, por ser a causa que mais levemente se deve crêr de um prêso, o desejo da liberdade ; sem saberem medir, que ela para mim por êste meio era mais dura que a prisão e destêrro, pois que me negava a esperança, que não perderei nunca, de alcançar algum tempo, a graça de V. Majestade, e o suave repouso da pátria, que sôbre tôdas as felicidades, é desejado dos homens.

Senhor, castigando-me V. M., perdoando-me, mandando-me para os fins da terra, tendo-me nêles, eu sou, e serei dos mais fieis, e verdadeiros vassalos dos que a V. Majestade amam, e obedecem.

Aquele que nunca faltou aos homens com a verdade, nunca enganou amigos, e conhecidos, nem ninguém do mundo, êste tal, senhor, é certo que tem feito largas provas para não haver de faltar a seu senhor, e a seu rei, a quem se deve mais verdade, a quem se ama mais, a quem se teme mais, e de quem mais que dos outros se espera e depende.

Mostrará o tempo o que prometo ; verá V. Majestade : saberão êstes reinos se Deus me der vida, se V. Majestade ma deixar empregar em seu serviço, que castigado, desprezado, e cheio de trabalhos procedo tam alegre, e tam constante em minha obrigação, como aquele que mais possue favores, e prémios.

Espero, já que no estado próspero não pude obrar de sorte que deixasse de parecer digno de castigo, que no estado de minha miséria obre de maneira, que a todos pareça digno de lástima, e perdão.

Ocasiões passadas houve, em que muitas vezes ofereci a V. Majestade o sangue, e a vida, que é sua. E assim como aquele que deve lhe não é lícito escusar-se de pagar sua dívida, a quem e a onde lhe manda seu acredor; assim também ao bom vassalo, não é lícito escusar de dar sua vida na parte, e como lhe manda seu senhor.

Isto conheço ; Isto promulgo. Isto protesto fazer.


IV


As ilações mais relevantes que se colhem dêste Memorial são: 1.ª que um certo Francisco Cardoso fôra assassinado em vindita do adultério cometido com a mulher de um dos assassinos, ou, mais provàvelmente, do condenado a galés, por ter mandado os outros; 2.ª que algum dos réus depusera que D. Francisco Manuel de Melo comprara os assassinos de Francisco Cardoso ; 3.ª que o réu se defendeu com testemunhas do maior crédito, provando, ao mesmo tempo, que o assassinado havia sido amante da mulher de um cúmplice já condenado como tal.

Estas razões, ainda robustecidas com outras, não impediram que D. Francisco fôsse condenado, na segunda instância, em degrêdo perpétuo para a Índia, e 2:600 cruzados de custas.

Não se compreende tamanha iniquidade. Há um braço omnipotente que obriga os juízes a condenarem, a despeito das quarenta testemunhas que no tribunal se afrontam com o inimigo misterioso do prêso.

A vida do obscuro criado de certo fidalgo não podia ser tam preciosa quanto a condenação inculca, já mais se o conjurado na morte dêle é fidalgo de tanto tômo e com tantos serviços assinalados.

Não se dispensa, pois, que D. João IV seja o perseguidor mal rebuçado que de dia para dia vai engrossando os ferrolhos que encarceram o seu, já noutros tempos tam fiel amigo e partidário. Vem logo a tradição desvelar o segrêdo, referindo que o rei, concorrendo à mesma dama com D. Francisco, se travara com êle, no escuro de um pátio, e, de espada arrancada, disputára o acesso ao camarim da requestada.

Dado que assim fôsse, ¿ que tem que vêr o assassínio de Francisco Cardoso com o recontro nocturno do rei e do fidalgo ? ¿ Desceria D. João IV a solicitar dos magistrados que o desforçassem, colorindo a vingança ? ¿ Revelaria o seu desonesto segrêdo, tendo à real mão outros expedientes de vingança mais sumários ? ¿ Não se teria dito no processo, ou não diria D. Francisco Manuel no Memorial que razões de suspeita puderam incriminá-lo na morte de Francisco Cardoso ?

É escureza que a tradição deixou entenebrecer-se mais com o dobar dos anos. Se alguns genealógicos a puderam desfazer, enfreou-os o respeito, o mêdo, a transigência com certos decoros, sinónimos de certas desonras. Não obstante, como os linhagistas, fechados em seus gabinetes, não se temiam de escrever as volumosas costaneiras que hoje os seus descendentes trocam a romances, ou por um jantar ― veniaga mais digna de indulto ― aconteceu que a história do autor da Carta de Guia de Casados ficou escrita minudenciosamente em um dos dez tomos de linhagens, que possuo, e foram escritos por Joseph de Cabedo e Vasconcelos, natural de Setúbal, e Manuel Monis de Castelo-Branco, natural de Vila de Fronteira, ambos contemporâneos de D. Francisco Manuel de Melo.

Antes de levantar de todo o capuz do mistério, quero dar a cópia da nota, que segue o meu traslado do Memorial, e que tem pontos de analogia com a do manuscrito do snr. dr. Aires de Campos, conforme a referida informação do snr. Inocêncio Francisco da Silva.

Diz assim:

ADVERTÊNCIA[6]

A sentença de que aqui se faz menção foi dada em uma segunda-feira, 2 de março de 1648, estando prêso (D. Francisco) na Tôrre da Cabeça Sêca, perto de 4 anos ; e, depois, em virtude dêste Memorial, a terceira instância que se lhe concedeu e outras diligências, estando mais 3 anos prêso, se lhe comutou o degrêdo da Índia para o Brasil, como consta da sua carta declamatória ao príncipe D. Teodósio. [7]

A morte que se fez foi a um Francisco Cardoso, criado do conde de Vila Nova, D. Gregório ; foram enforcados três homens por ela, e um que entregou o morto aos homicidas foi condenado a galés.

Item: dizem que a má vontade com que el-rei D. João IV se mostrou nesta dependência de D. Francisco, procedera de se encontrar com êle uma noite em a porta do pátio das Colunas que está nas casas contíguas ao Limoeiro, em que morava então a condessa de Vila Nova, (senhora de muito bem fazer a quem lho pedia) e porque tinha dado ponto, senha e hora, uma noite, a D. Francisco Manuel, e deu a mesma em tudo a el-rei, que também era opositor, não sabendo um do outro, pretendendo subir a escada ambos ao mesmo tempo, e não querendo ceder qualquer dêles, vieram à contenda das espadas, brigando igualmente com esfôrço, e ventura ; cansados, suspenderam a contenda, e, acudindo gente, se retiraram

ambos por não serem conhecidos ; sem embargo que el-rei conheceu a D. Francisco, e D. Francisco não conheceu a el-rei, nem sabia que era opositor àquela empresa.

Sucedeu depois a morte de Francisco Cardoso, criado da condessa, e a sua lhe sobreveio a ela dai a pouco tempo. Na prisão é que D. Francisco soube quem fôra o rival, e bem se mostra a sua inocência nos livros que compôs estando prêso, pondo em todos — quare ? — experimentando a ira do soberano com tanto rigor, não lho merecendo seus relevantes serviços, feitos a êle e à pátria, como refere. Se isto foi assim, mancha é na fama de tal príncipe, e tam heróico, que fórma paralelo com a de el-rei D. Manuel com Duarte Pacheco.


Esta nota abre alguma luz ; mas não nos desassombra a verêda, antes nos embaraça mais na relação que possa travar-se entre o rei, e D. Francisco, e o criado morto, e a condessa falecida pouco tempo depois do assassínio do criado.

É agora o ensejo de saír em pleno dia todo o enrêdo desta obscurecida tragédia.


V


D. Gregório Taumaturgo de Castelo-Branco, terceiro conde de Vila Nova de Portimão, guarda-mór da pessoa de el-rei D. João IV, e gentil-homem da câmara do príncipe D. Teodósio, casou com sua sobrinha D. Brázia de Vilhena, [8] filha e herdeira de D. Luis da Silveira, conde da Sortelha.

Ao segundo ano de casado, o conde veio no conhecimento de que os tios não são os melhores maridos das sobrinhas, ou as sobrinhas não amam tanto quanto respeitam os tios. A denúncia dos desvios conjugais da condessa foi-lhe feita pelo seu pagem Francisco Cardoso. O conde fez recolher a espôsa ao mosteiro de Santa Ana, onde saudades e desprezos a mataram, após dois anos de rigorosa reclusão.

Casou o conde, em segundas núpcias, com D. Guiomar da Silva, filha de D. Francisco de Faro, conde de Odemira, e de D. Mariana da Silveira.

Esta, bem que não fôsse sobrinha do marido, resvalou da inteireza dos bons costumes da casa brigantina donde derivava, e deu-se a uns funestos amores que Francisco Cardoso espiava com o zêlo de leal servo de seu infeliz amo.

Patente o delito, D. Gregório Taumaturgo, que, ao envés do seu apelido, não fazia o milagre de achar mulher honrada; rompeu na ruim deliberação de matar a sua, com as necessárias cautelas. Assim o fez, mediante peçonha, que a dilacerou em poucas horas de agonia. Rumorejou-se, ao tempo, naquela inopinada morte, e atribuiu-se a mêdo dos parentes de sua mulher a saída do conde para Castela, donde se repatriou em 1640.

Casou o conde, terceira vez, com D. Mariana de Alencastre, filha de D. Lourenço de Alencastre, comendador de Coruche, e de Inês de Noronha.

Foi D. Mariana de peregrina formosura, e a mais cantada dos poetas fidalgos daquele tempo. D. Gregório não estava já em anos de poesia nem de amores, para tanto insistir em terceira experiência. Frizava-lhe já menos mal o epigrama que D. Francisco Manuel de Melo lhe fizera a êle ou a outro de análogo sestro :

Semprônio se descasou
de Lésbia, dela tal ser ;
porém, nada escarmentou :
tomou Lívia por mulher,
sôbre ela logo gritou.
Júlio, o sogro, acode à filha,
bradam todos; e um doutor
quer pôr em paz a quadrilha,
dizendo que era o sabor
que se tomou da vazilha. [9]

Esta terceira condessa parecia querer que a memória das suas antecessoras fôsse absolvida, ou então vingá-las da cruêza do marido.

Entre vários amadores, aceitou os requebros do rei, por que era D. João IV, e os de D. Francisco Manuel de Melo, por que era gentil, môço de trinta anos, corajoso e poeta, o primeiro e mais galã de quantos então abrilhantavam os saraus da primeira fidalguia.

Não é verdade que a condessa de Vila Nova de Portimão désse hora e senha ao rei e ao fidalgo conjuntamente. A hora era de D. João IV ; mas D. Francisco, cioso e desconfiado, espreitava um rival quem quer que fôsse.

Estava êle acantoado no pátio do palácio, espaçoso vestibulo, que se chamava o «Pátio das colunas» perto do Limoeiro, no terreno onde, mais de século e meio depois, o secretário da Regência, Salter de Mendonça, edificou o seu palácio, sôbre as ruínas do outro, arrasado pelo terramoto de 1755.

D. João IV entrou ao escuro recinto ; e, quando subia a espaçosa escada, deu tento de um vulto, e do tinir da espada no talabarte. Arrancou da sua sem proferir palavra ; mas conheceu o adversário com quem ia havê-las, por que D. Francisco perguntou ao desconhecido quem era.

O rei tinha bem de memória a voz do homem com quem, a miúdo, e aprazivelmente praticava.

Brigaram algum tempo, ferindo-se ligeiramente, e cessaram de esgrimir, quando no patamar da escada lampejou o clarão de uma luz, com que a sobressaltada condessa acudia ao tilintar dos ferros. Então, fugiram ambos a um tempo, e cada um por sua betêsga mais à mão. O conflito passou ignorado do marido para não desmentir o provérbio, e de tôda a gente, exceptuados os dois paladinos ; mas só um dêstes possuía o trama completo da aventura.

No entanto, D. Francisco Manuel, acirrado pelo ciúme, descurou as vigilâncias com que se houvera até à certeza de ser atraiçoado. As assiduidades descautelosas expuseram-o à espionagem de Francisco Cardoso, que, àquele tempo, havia sido galardoado com a mordomia da casa.

Teve o conde aviso da perfídia, e interrogou a condessa com a severidade prenúncia de alguma catástrofe. D. Mariana de Alencastre, ameaçada na vida, afastou de si D. Francisco Manuel, revelando-lhe que Francisco Cardoso os espreitava e deletara ao conde.

Êste Cardoso andava de amores adulterinos com uma Catarina de Enxobregas, mulher de um arrendatário de foros da casa de Vila Nova, chamado Marco Ribeiro. Sabedor de sua desonra, êste marido peitou três criados que mataram a ferro o mordomo do conde.

Os assassinos foram presos ; e, postos a tormento, declararam quem os mandara. Não obstante, o conde, comunicando o seu terceiro revés a el-rei, atribuiu a morte do seu fiel criado e amigo a D. Francisco Manuel, por sugestão da condessa, cujo crime o mordomo assassinado lhe denunciara. O rei não impugnou a hipótese, antes a robusteceu consentindo no mesmo alvitre. Postos novamente a torturas os assassinos, a dôr, e a insinuação dos inquiridores, arrancaram-lhes a calúnia que envolvia D. Francisco Manuel de Melo na cumplicidade. Prêso, processado e condenado, o inocente estava irremediàvelmente perdido.

Todavia, o conde, descontente com vingança tam apoucada em comparação das que já tinha de vêze, como guardasse ainda algum resíduo do veneno que matára D. Guiomar da Silva, ministrou-o a D. Mariana de Alencastre com igual êxito, vindo assim a condessa a morrer pouco tempo depois do denunciante.

Não podemos já desejar mais claridade no mistério que tanto deu que meditar e conjecturar no decurso de quási dous séculos e meio. Traslado-o pouco menos de textualmente copiado do códice genealógico de Cabêdo, que diz ter conhecido todos ou quási todos os figurantes da horrenda história, nomeando por seus nomes até os três matadores que morreram na forca, depois de haverem dito no oratório que não conheciam de nome nem de vista D. Francisco Manuel de Melo.

Êste desgraçado não esteve prêso sete ou oito anos, na Tôrre Vélha, como dizem os seus biógrafos ; mas sim dôze como êle mesmo diz em uma de suas cartas : «Nos primeiros seis anos da minha prisão escrevi vinte e duas mil e seiscentas cartas. ¿ E que será hoje, sendo dôze os de prêso, seis os de desterrado, e muitos os de desditoso ?» [10]

Sofreu penúrias no cárcere, por que foi esbulhado de suas rendas. Provam a sua extrema pobreza as seguintes passagens da correspondência : «Sinto só o vêr-me em maneira que nem para estar aqui nem para sair daqui vejo meios ; por que, faltando-me os com que me hei-de sustentar, não tenho sagrado a que apele, nem na paciência própria… Sirva-se V. M. me mandar uma manta de lenha, que com essa incerteza estou desaviadíssimo para o inverno ; e, segundo isto vai, levo geito de lhe queimar aqui todo o pinhal… Os livros folgara muito de comprar, quando os houvesse ; mas estou mais para vender êstes que para comprar outros». [11]

As justiças zombavam dêle como de todos os encarcerados ; mas, com êste prêso, o escárnio era mais de quebrar ânimo e esperanças, por que era D. João IV quem escarnecia : «Agora me mandaram crêr que me querem soltar. O mesmo me prometeram a semana passada. Já não me entendo com palavras de príncipes. Pode ser que com a semana se passe a memória de promessa». [12]

Ao fim de dôze anos, D. Francisco Manuel de Melo saiu da célula penitenciária da Tôrre Velha para o destêrro, não a cumprir sentença lavrada no infame processo, senão a dessedentar a rancorosa sêde do rei. A pena de degrêdo para a África era assim comutada, sob color de indulto.

Saiu a vítima do inexorável devasso para o Brasil em 1655. No ano seguinte, morreu cá o rei, e desde logo o desterrado obteve licença de voltar á pátria. [13]

Não tinha êle, porém, na pátria saüdades ou afectos que docemente lhe acenassem. O melhor da existência, a pujança da mocidade devorára-lha, desde os trinta e três até aos quarenta e cinco anos, a amargura infinita da prisão, aquele inferno da alma inocente posta em juízo no banco de três assassinos, e por sôbre tudo isto a compaixão e saüdade de Mariana de Alencastre, orta violentamente por sua causa.

Divagou D. Francisco pela Europa, e assentou residência em Roma, onde permaneceu sete anos. Aí começou a publicação de suas obras em nova e esmerada edição ; mas, escasseado de recursos e protectores, levantou mão desta consoladora ocupação.

Pressentindo o avizinhar da morte, deu-lhe o coração rebates de saüdade de Portugal, como quem se acingia ao desejo de haver na terra da pátria a bastante para lhe agasalhar, em derradeira hospedagem, o coração anavalhado de angústias.

Chegou a Portugal em fins de 1665 ; escondeu-se em ermo não bem averiguado aí por perto da Tôrre onde estivera prêso, e lá faleceu em 13 de outubro de 1666 aos 55 de idade, tendo nascido a 23 de novembro de 1611.

«Foi sepultado em S. José de Ribamar, donde provàvelmente a civilização e o progresso já atiraram os seus ossos, ou para o Tejo, que fica vizinho, ou para algum depósito de imundícies que sirvam para adubar terras de pão pelo vale de Algés, ou da Ribeira de Jamor». [14]

D. Francisco Manuel de Melo morreu solteiro ; deixou, porém, um filho natural, de nome D. Jorge, que pereceu, oito anos depois de seu pai, na batalha de Senef. Diz Joseph de Cabedo que a mãe de D. Jorge era uma senhora do Pôrto, que vivera com D. Francisco em uma quinta do seu gentil namorado à margem direita do Douro, em um sítio chamado Entre-ambos-os-rios. Desta quinta falou, em dias mais felizes, o poeta a D. João IV em uma graciosa petição rimada, que o leitor encontra a pag. 209 da Viola de Tália, edição de 1664.

Pelo que toca a D. Gregório, conde de Vila Nova de Portimão, há a certeza de que não casou com quarta mulher. Deu-se a menos arriscados amores, amistando-se com Helena da Cunha, sua criada, de quem houve um filho, que também se chamou D. Gregório de Castelo-Branco, e herdou de seu pai uma comenda de Cristo, e o restante que podia herdar.

O título extinguiu-se com a pessoa daquele 4.º conde que eu respeito na sua infelicidade, e até no desabrimento do seu desfôrço ; mas reprovo-lhe a covardia da vingança, que tirou do amante da espôsa assassinada, imputando-lhe com infames cavilações a morte do mordomo. Como quer que fôsse, se a algum homem do século XVII preluziram as teorias de Alexandre Dumas, nisto de matar as descendentes de Nod, foi a D. Gregório , que, por amor desta milagrosa previsão, foi talvez predestinadamente chamado «Taumaturgo». Não sei quando êle morreu, nem se morreu na desconfiança de que o seu rei o desonrára, fazendo-lhe do pátio sala de esgrima nocturna, e bordel da alcova nupcial.

O duque de Bragança não era esquivo destas gratificações aos que lhe tinham cingido o diadêma, a despeito da covardia, que a história abjecta chamou prudência. Êste pecado do adultério é uma seráfica virtude comparado ao estigma de parricida que a crítica, em dias de mais luz e hombridade, gravará na fronte do pai do príncipe D. Teodósio, o querido da fidalguia, do exército e do povo.

Ora, daquele corpo e daquela alma do algoz coroado de D. Francisco Manuel de Melo, saíram Afonso VI e Pedro II, e o mais que veio e vier, até que Deus se amercie dêste globo com um segundo dilúvio, se é que a casa de Bragança não tem de entrar em nova arca, por causa da espécie zoológica.

  1. Veja Panorama (de 1840) pag. 170 e 294.
  2. Veja Biblioteca Lusitana, tom. II. Ensaio biog. crítico, tom. VIII, e Dic. bibliogr., tom. II, pag. 437 e seguintes.
  3. Panorama citado.
  4. Dic. bibliogr.
  5. Barbosa Machado apontando na Biblioteca lusitana as obras inéditas de D. Francisco Manuel cita um manuscrito intitulado: Justificação de suas acções ante Deus, ante Sua Majestade e ante o mundo contra as falsas calúnias impostas dos seus inimigos.

    Dêste inédito tirou Herculano dois excertos, que publicou no Panorama em 1840, pelo seu valor autobiográfico. Barbosa o considerou um Memorial dirigido a D. João IV, e como tal o tomaram Camilo e Prestage, porque nas cópias da Justificação, lhe encabeçaram êsse título. São duas peças diferentes: D. Francisco Manuel de Melo, na sua Carta de 28 de Janeiro de 1650 ao Conde Camareiro-mór, deciara: «eu fiz dois papeis, um longuíssimo (porque não pude acabar menos com a minha dôr) outro brevíssimo, mas certíssimos ambos.» O extenso, que é a Justificação, que se divulgou por cópias particulares, foi substituído por um resumo, condição a que teve de submeter-se D. Francisco Manuel de Melo, para poder ser lido pelo ministro e na melhor esperança pelo rei. Êste Memorial: — ao mui alto e muito poderosa rei nosso senhor D. João IV, aos doutissimos e meretíssimos Senadores por Sua Majestade consultados, — ficou absolutamente ignorado, e descoberto pelo Dr. Prestage no Arquivo da Casa da Silvã, ficou publicado no seu livro D. Francisco Manuel de Melo, pag. 223 e 234. Prestage pôs-lhe a rubrica de — Primeiro Memorial de D. Francisco Manuel de Melo e cita em tôda a sua obra a Justificação como 2.º Memorial, que não foi, sendo aliás escrito antes do pròpriamente Memorial. E mesmo era absurdo que em ambos os Memoriais, um em que se diz prêso há cinco anos, e noutro prêso há seis anos, no espaço de um ano recopíasse a Carta de Luís XIV intercedendo pelo seu livramento, e suprimisse o facto, até hoje ignorado, do falso testamento do seu criado João Vicente. O Memorial dirigia-se aos Juízes da Terceira Instância, que julgaram em 22 de Março de 1650, antes de completar os cinco anos de prisão.

  6. A nota marginal que aparece transcrita em algumas cópias manuscritas da Justificação com o título de Advertência, ja tinha sido publicada por Inocêncio em 1859 no Dicionário Bibliográfico por comunicação do insigne filólogo. Dr. Aires de Campos encontrada em um dos seus manuscritos ; Camilo transcreveu o texto dado por Inocêncio o que autenticava a verdade do manuscrito a que dava publicidade, mas ainda assim o meticuloso crítico lembrou-se de julgar essa Advertência como invenção romanesca de Camilo. Prestage encontrou-a copiada também no Tacito português, inédito de D. Francisco Manuel de Melo conservado na Biblioteca nacional. Camilo não soube utilizar a luz contida na Advertência, para determinar qual das três Condessas de Vila Nova, que fôram sucessivamente espôsas de D. Gregório, foi a dama objectivo do duelo nas trevas entre D. João IV e D. Francisco Manuel. A morte do criado do Conde Vila

    Nova foi em 1643, depois do duelo : «Sucedeu depois a morte de Francisco Cardoso, criado da Condessa…»

    Era então D. Branca da Silveira, a 2.ª espôsa do Conde de Vila Nova, que faleceu em 3 de Abril de 1649 (diz a Advertência : a sua lhe sobreveiu a ela daí a pouco tempo).

    Infelizmente Camilo não tendo notado estas circunstâncias, entregou-se às cegas ao êrro dos linhagistas Cabedo de Vasconcelos e Monís Castelo-Branco.

  7. Está impressa no volume intitulado Aula Política, Curia militar, Epistola declamatória, etc., de D. Francisco Manuel de Melo, desde pag. 109 até 132.
  8. Ao aproveitar a preciosa notícia das Linhagens compiladas por Cabedo e Monte Castelo-Branco, Camilo seguiu as interpolações na sucessão das três Condessas de Vila Nova ; começa pela segunda, errando-lhe o nome D. Brázia de Vilhena, casada depois do regresso do tio a Portugal, de Castela, onde estivera refugiado, em 1640. Passa para a primeira espôsa D. Guiomar da Silva, envenenada por D. Gregório, pelo que fugira para Espanha ; e dá a terceira espôsa D. Mariana de Alencastre, que casára depois de 1650 e que sobreviveu ao Conde de Vila Nova falecido em 1662, convolando ela a segundas núpcias, Camilo veio a conhecer êste último facto na Boémia do Espírito, mas continuando a considerar esta terceira Condessa, que também se chamou Condessa de Figueiró, o motivo da rivalidade de D. João IV com D. Francisco Manuel de Melo, exercendo sôbre êle a vingança do prepotente.

    Assim Camilo, depois do envenenamento de D. Guiomar da Silva, põe às costas de D. Gregório mais o envenenamento de D. Mariana de Alencastre, que lhe sobreviveu matrimoniando-se outra vez.

    Prestage, não se entendendo no melo destas complicações inerentes aos facto que se tornam lendários, deixou intacto o problema capital da Vida de D. Francisco Manuel de Melo.

  9. Obras metricas, pag. 234.
  10. Carta 1.ª do autor aos leitores — Cartas.
  11. Carta XCIII.
  12. Carta XXXI, da 3.ª Centúria.
  13. Camilo supõe que o regresso de D. Francisco Manuel do degrêdo do Brasil foi porque obteve licença de voltar à pátria, depois da morte de D. João IV em 1656. Sob a regência da rainha D. Luisa de Gusmão, que instigava o marido, continuou o degrêdo de D. Francisco Manuel de Melo, que por um impulso natural quebrantou o degrêdo em Março de 1658 e veio para Portugal, Só pela aclamação de D. Afonso VI, o seu ministro Castelo Melhor, por êsse título mandou passar-se-lhe alvará de reabilitação e perdão de quebrantamento do dengrêdo, em data de 30 de Julho de 1662, Tivemos a fortuna de achar êste documento na Chancelaria da Ordem de Cristo, que escapára às insistentes pesquizas de Prestage.

    Por esta reabilitação social é que se explíca a missão de que foi encarregado D. Francisco Manuel em 1663 de ir negociar o casamento de D. Afonso VI. Esta parte da sua vida, que para Camilo era apenas uma divagação pela Europa, tendo saído de Roma para Paris por meados de 1665 (não assentou residência em Roma por sete anos), vindo à falecer em Lisboa em 13 de Outubro de 1666 com 58 anos. (Corrige Camilo, por só agora se saber que nascera eu 1608, pelo assento descoberto por Prestage.)

  14. O snr. A. Herculano, Panorama citado.