Carta de guia de casados/Cautelas

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XXXI


Cautelas


Obrigam-se muito as casadas de que seus maridos lhes contem o que sabem, e o que ouvem, e o que passa pelo lugar. Que os homens sejam secos, é meio caminho andado para serem aborrecíveis, que sejam faladores, é todo o caminho andado para serem desprezados. Deve-se eleger um bom meio, de sorte que a mulher não cuide que seu marido a tem em conta pouca, nem que êle faça de maneira, que em outra semelhante seja tido dela. As mais logo trazem decorado aquele rifão : Quem me a mim quere bem, diz-me do que sabe, dá-me do que tem.

Guarde-se o discreto de contar a sua mulher as histórias passadas de seus amores, e de sua mocidade. Causam assim dous males ; dar a conhecer às mulheres a fraqueza de seu natural, e entenderem como há outras pelo mundo, que se deixam enganar fàcilmente.

Por nenhum caso se lhes sirva o prato de leviandade alheia ; e naquelas cousas tam públicas, que se não puderem negar, pelo menos se desculpem, ou se desviem. Mostre-se sempre horror a tais sucessos ; e havendo de praticar nêles, carregue a culpa, e causa à parte do marido, e a da mulher se desculpe. Dando assim a entender, que aquele que fôr bom marido, sempre terá mulher bôa, como de ordinário sucede, e êle o espera de si, e da sua.

Algumas vezes vemos, que a casada de grandíssima honra, trata, e acompanha confiadamente com outras de não tam igual fama. Haja nisto grande tento, e o melhor será escusá-lo de todo. A reputação é espelho cristalino ; qualquer toque o quebra, qualquer bafo o empana. Elas, quanto são mais seguras em seus procedimentos, se aventuram, pode ser, mais a tratar as que o não são. O vulgo sempre cego, não sabe distinguir, ou não quere, o bom do mau. As mais vezes quem atira não dá ali aonde atira, mas dá perto do logar aonde atira. Assim os maldizentes, indo a acusar a uma pessoa, não acertam logo ; e porventura infamam as que andam junto dela.

Valho-me sempre das cousas naturais, e assombro-me certo neste caso, considerando que uma só gota de tinta que caia em uma redoma de água claríssima, basta, e sobeja para a tornar turva : e que para aclarar, e deixar limpa uma redoma de tinta, não basta uma pipa de água clara. Assin costume ser a má, e a bôa fama, que a muito bôa não pode acabar de purificar a ruim, e a ruim logo empece à muito bôa. Noutro logar disputo eu largamente : ¿ porque se nos não pega a saúde assim como se nos pega a doença ? Notável cousa por certo ! Agora me contentarei com o dizer do nosso moral  : O bem não é como tinha, o mal pode ser que sim.

Aparte esta contenda a prudência do marido. Contava um, que costumava a se haver neste caso com excelente destreza. Instava de continuo à mulher, que visse, buscasse, e andasse com fulana, e fulana, de quem êle tinha satisfação ; porque com estas persuasões ficava adquirindo nova autoridade para estorvar que se não visse, buscasse, e andasse com fulana, e fulana, de quem êle não era satisfeito.

Gabar à mulher a formosura de outras, as mais delas o tem por descortesia ; assim o ar, a graça, e as mais bôas partes : mas como nisto não houvesse excesso, seria sofrido. Dêem-lhe todavia regra a condição, idade, parecer, e bôas qualidades da mulher própria ; porque as que dêstes dotes são abundantes, podem ser mais confiadas.

Um fidalgo praticando com sua mulher, na qual era sobeja a gentileza, e a discrição, que faltava nêle, exagerava por extremo a formosura, e qualidades de outra mulher. Sofreu a própria quanto pôde, e vendo sua demasia lhe disse : Não quisera mais para me vingar das invejas que me fazeis com fulana, que vê-la casada convosco, para vos não parecer nada disso, e para vêr como ela se havia quando vós me gabásseis outro tanto.